As esquinas por que passei
Como as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
Os usos do meio-fio no grandes centros urbanos devem ser inventariados e gerenciados para acomodar seus múltiplos usos.
1 de fevereiro de 2021Carros por aplicativo, bicicletas, patinetes, serviços de entrega e acessos a garagens competem pelo mesmo espaço entre as calçadas e as faixas de tráfego. Tradicionalmente utilizado para estacionamento e circulação de veículos, o meio-fio é um recurso escasso e em disputa — e a gestão desse espaço para acomodar seus múltiplos usos tornou-se um desafio inadiável nos grandes centros urbanos.
No século passado, engenheiros de tráfego tinham como objetivo conformar o ambiente viário urbano para acomodar o crescimento exponencial dos carros privados. Em prol do carro, a busca pelo aumento da capacidade viária consumiu até o espaço dos pedestres nas calçadas.
Desde os últimos anos, cidades ao redor do mundo enfrentam o desafio de compatibilizar a circulação de modos de transporte e serviços com características muito diversas. Felizmente, as mesmas tecnologias que viabilizam carros por aplicativo e bikes compartilhadas podem fornecer a gestores e planejadores urbanos dados sobre os usos que as pessoas fazem do espaço viário, subsídios para um gerenciamento mais dinâmico do acesso ao meio-fio.
Enquanto no Brasil a substituição do estacionamento junto ao meio-fio por usos como faixas para ônibus ou bicicletas ainda gera polêmica, algumas cidades já incorporaram a discussão sobre as múltiplas vocações do meio-fio ao seu planejamento de mobilidade. Algumas táticas têm sido utilizadas com resultados positivos:
Primeiro foram os aeroportos que tiveram de se adaptar à chegada dos carros por aplicativo, criando novas áreas para esses serviços em seus já disputados acessos. Agora, cidades fazem o mesmo. Washington, San Francisco e Chicago têm implementado zonas de embarque e desembarque em avenidas com grande fluxo de pessoas. As PUDOs (pick-up/drop-off zones) também podem redirecionar embarques e desembarques para vias próximas, menos movimentadas. As experiências mostram sinais positivos, contanto que empresas de carros por aplicativos respeitem e estimulem o uso dessas áreas.
Em San Francisco, as tarifas para estacionar junto ao meio-fio são mais baratas em áreas menos disputadas e mais caras em áreas concorridas. Com o auxílio de sensores que detectam a ocupação das vagas, o poder público pode aumentar ou diminuir a tarifa de cada zona de acordo com a demanda. As informações sobre vagas e preços são disponibilizadas online, de modo que motoristas perdem menos tempo — e causam menos prejuízo ao trânsito — na busca por vagas.
Transferir para as calçadas o que se quer tirar da via — sejam áreas de embarque e entregas ou as próprias ciclofaixas — pode tornar mais precária a circulação do pedestre. É preciso regramento para patinetes e bicicletas compartilhadas, tal como a delimitação de áreas destinadas para o estacionamento desses veículos. Esse cercamento pode ser físico ou eletrônico e georreferenciado — neste caso, o usuário é informado pelo aplicativo sobre zonas recomendadas para o estacionamento.
Washington vai mais do que dobrar a oferta de bikes e patinetes em 2020 e inclusive dispõe de programa de acesso gratuito para pessoas em determinada faixa de renda, promovendo assim a equidade ao acesso e uso da inovação. Para que o aumento da frota não prejudique pedestres, está implantando 100 zonas de estacionamento junto ao meio-fio.
Dados abertos ou provenientes de empresas da nova mobilidade em parceria com cidades fornecem aos gestores subsídios para delimitar intervenções como as áreas de embarque e desembarque (é claro que o anonimato das informações sobre motoristas e passageiros deve ser garantido).
Para redirecionar a avalanche de solicitações de viagens em avenidas movimentadas para transversais mais tranquilas, San Francisco utilizou dados da Lyft sobre os locais onde os usuários do aplicativo solicitam viagens. Os testes deram certo, reduzindo congestionamento e aumentando segurança.
A imagem acima integra o artigo Coding the Curb (“programando o meio-fio”, em tradução livre), em que a empresa de mobilidade Passport afirma que a integração de dados dos vários serviços de mobilidade pode gerar inteligência, qualificar a gestão e conduzir a cidades mais habitáveis e equitativas. “Ao fazer a gestão de todos os modos de transporte a partir de um hub central de controle, incluindo regras, tarifas e regulações, as cidades ganharão eficiência e poderão oferecer soluções mais inovadoras com mais agilidade”, aponta a publicação.
O pior cenário de uma avenida é o que permite carros estacionados de um lado do meio-fio, transportando zero pessoas, e uma calçada estreita e com pavimento inapropriado do outro. Infelizmente, é o que ainda predomina nas cidades brasileiras. O melhor é o que atende os preceitos da Lei de Mobilidade, que determina a priorização dos transportes ativo e coletivo sobre o individual motorizado. Este cenário contempla calçada adequada e ciclofaixa que, além da bicicleta, consegue abrigar as inovações da micromobilidade.
A crescente demanda pelo uso de aplicativos e o aumento dos serviços de entrega torna urgente o regramento do uso do meio-fio e das calçadas. Não apenas para acomodar as inovações do presente e do futuro, mas para corrigir equívocos passados. Para além dos serviços de entrega e das novas opções de mobilidade, a gestão do meio-fio do século 21 deve garantir prioridade, fluidez e atratividade a formas mais sustentáveis de transporte, e redemocratizar o uso das calçadas.
Artigo publicado originalmente em WRI Brasil em 13 de janeiro de 2021.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarComo as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
Enquanto Nova York adia seus planos para reduzir o congestionamento, o sucesso de políticas de taxa de congestionamento em outras cidades prova que essa medida não é apenas inteligente — é popular.
As intervenções em assentamentos precários em bairros de maior e menor renda mostram que a política pública se dá de maneira distinta. Cabe questionarmos: o que leva a esse cenário? Quais forças devem influenciar a decisão de se urbanizar favelas em certos bairros e não em outros?
Para comemorar o aniversário de 10 anos, selecionamos artigos importantes de cada ano de existência do Caos Planejado.
A transformação da cidade de Medellín teve como inspiração um projeto brasileiro, mas é difícil reproduzir o modelo colombiano para obter resultados semelhantes aqui.
Garantir o direito das crianças ao brincar nos espaços urbanos vai muito além da construção de parques e playgrounds.
Nem tudo o que é prometido em termos de infraestrutura e serviços acaba sendo entregue pelas intervenções. Já a sensação de segurança, endereçada indiretamente pelas obras, pode aumentar, apesar de os problemas ligados à criminalidade persistirem nas comunidades.
Confira nossa conversa com Ricky Ribeiro e Marcos de Souza sobre o Mobilize Brasil, o primeiro portal brasileiro de conteúdo exclusivo sobre mobilidade urbana sustentável.
A criação de novas rotas de transporte informal pode ajudar a atender às necessidades de deslocamento de muitas pessoas.
COMENTÁRIOS