Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Mitigar as inundações urbanas com projetos de infraestruturas verdes, como pavimentos permeáveis e zonas húmidas.
13 de novembro de 2023Enquanto escrevo esse texto uma chuva torrencial toca a janela do quarto. Aqui, no sul do Brasil, há semanas não sabemos o que é a luz do sol. Em várias cidades o volume de chuva já superou o total acumulado dos demais meses do ano. Alagamentos, inundações e deslizamentos são notícias corriqueiras nos jornais regionais. Neste cenário caótico, um estudo apresentado pela Confederação Nacional dos Municípios afirma que, entre as chuvas intensas no sul e a seca no norte do país, 5,8 milhões de brasileiros foram diretamente afetados pela catástrofes em 2023, incluindo casos de perda de vidas, desalojamentos e prejuízos econômicos significativos.
O prognóstico, infelizmente, também não é dos melhores. A versão nacional do renomado relatório de mudanças climáticas do IPCC, documento organizado pelo Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas (PBMC) já alertou: o Brasil, assim como outros países da América Latina, não apenas ficará mais quente com as mudanças climáticas, como também verá seu regime de chuvas mudar drasticamente. Ou seja, aqui no sul, é melhor nos acostumarmos com o barulho da chuva na janela, assim como o norte deve esperar secas históricas.
Neste cenário, onde as mudanças climáticas tornam os eventos cada menos previsíveis, o crescimento desordenado das cidades piora ainda mais o panorama dos desastres naturais. A questão das inundações, especificamente, está cada vez mais presente nos centros urbanos, visto que, a falta de planejamento e sistemas de drenagem inadequados afetam diretamente o uso do solo, com sua consequente impermeabilização.
Este problema, claro, não assola apenas os países da América Latina, é uma questão mundial presente em seminários e debates de diferentes localidades. Nesse sentido, cada país tem lidado com a questão a sua maneira. Na Europa, por exemplo, é possível perceber um investimento considerável em pesquisas e tecnologias de ponta para mitigar as catástrofes geradas pelas inundações. Contudo, apesar de termos muito o que aprender com outros países, as cidades latino-americanas têm alimentado o panorama global com estratégias criativas e potentes, que refletem as características geográficas presentes nessa região.
Quando se aborda a questão das inundações urbanas, as primeiras táticas de mitigação que surgem são justamente aquelas relacionadas à infraestrutura verde. Alinhados ao conceito de “cidades esponja”, projetos desse gênero incorporam pavimentos permeáveis e reintroduzem pântanos e paisagens aquáticas naturais para combater inundações e adicionar instalações recreativas.
O Parque Rachel de Queiroz, na capital do Ceará, Brasil, é um interessante exemplo a ser citado. Ele faz parte de uma iniciativa que, quando completa, oferecerá mais de 200 hectares de espaços naturais à cidade de Fortaleza.
Este trecho em específico, trata-se de uma área de preservação municipal alagadiça, por isso, o projeto adotou a drenagem como eixo estruturador. Após estudos hidrológicos, foram propostas 9 lagoas interconectadas que realizam um processo de filtragem natural das águas do rio próximo e de galerias pluviais, através da técnica das wetlands.
Os caminhos entre as lagoas conduzem os frequentadores para áreas de permanência estruturadas com diversos equipamentos de cultura, esporte e lazer. Aliado ao plantio de mais de 600 espécies de árvores nativas, o projeto lidou com a diminuição dos alagamentos frequentes no terreno pela sobrecarga no sistema de escoamento das águas pluviais oferecendo ainda um espaço público de qualidade para sua população.
Embora as áreas alagadiças sejam estratégias interessantes quando se trata da mitigação das inundações nos centros urbanos, elas nem sempre são estruturas factíveis devido a realidade de cada cidade. Sendo assim, as grandes extensões de áreas verdes públicas assumem o protagonismo, visto que, por si só, já trazem a tão importante permeabilidade do solo. Nesse sentido, corredores verdes urbanos de grande extensão, como os aplicados em Medellín, na Colômbia, assim como o Parque Linear do Córrego Grande, em Florianópolis, Brasil, ou a proposta para os Corredores Ecológicos em Bogotá, Colômbia, são estratégias de diferentes escalas e impactos, mas que procuram igualmente trazer (ou preservar) a vegetação para dentro dos centros urbanos, aumentando os índices de permeabilidade do solo e consequentemente a absorção da água.
Na mesma linha das infraestruturas verdes, é possível destacar também a criação das hortas urbanas, como mostra essa iniciativa realizada no norte do Brasil ou, de forma mais discreta, os próprios telhados verdes, como no projeto do Centro Cívico Universidad de los Andes, em Bogotá, que mesmo não representando uma área verde pública, como no caso dos outros exemplos, auxilia na absorção das águas da chuva e mitiga os problemas de inundação em cidades fortemente densificadas onde já não há espaços verdes disponíveis.
Além das inundações causadas por eventos pluviais, muitas cidades latino-americanas também sofrem com os alagamentos de origem costeira ou fluvial. Para enfrentar este problema os governos geralmente têm repetido soluções usuais como “engordamento” das faixas de areia nas praias ou a construção de muralhas marítimas.
Em ambos os casos, vale ressaltar que se tratam de estratégias protetivas (evitativas) enquanto os debates mundiais estão voltados a medidas mais adaptativas em relação as águas. Como exemplo disso, é possível citar o projeto Membrana Anfíbia e Cidade-Parque no Recife, Brasil, o qual consiste na criação de um Parque Ecossistêmico na frente oceânica urbana, transcendendo a ideia de uma infraestrutura de contenção puramente técnica.
Essa membrana se acomodaria no relevo marinho e seria formada a partir de processos antrópicos (de intervenção humana) mas, também, naturais (como as correntes marinhas que organicamente podem ajudar a moldar o novo território), articulando-se por meio de três parques conectados.
Ao abordar esse tema, vale comentar também sobre as estratégias que, apesar de não se ocuparem diretamente em apresentar mecanismos para evitar as inundações, conseguem lidar com a situação de uma maneira que represente menos danos a comunidade. O skatepark de Cañales, no México, é um exemplo interessante pois o projeto arquitetônico foi desenvolvimento levando em consideração os antecedentes de inundações recorrentes no local. Sendo assim, toda a área esportiva coberta foi elevada, garantindo que, em caso de alagamentos, a água chegue somente até o perímetro exterior do complexo, não danificando a estrutura e seu devido funcionamento.
O Centro Comunitário LAMOCC, no caribe colombiano, também foi projetado com o intuito de responder às emergências ocasionadas pelas mudanças climáticas, que na região implicam o aumento do nível do mar e as consequentes inundações. Como resultado de um concurso público, o projeto mesclou técnicas vernaculares (estrutura de madeira e telhado de palha) com métodos contemporâneos (base elevada em concreto) para oferecer uma estrutura resistente à elevação da água. O espaço, além disso, serve tanto para congregar a comunidade como para refúgio nos episódios de inundações.
Infraestruturas verdes, parques ecossistêmicos ou arquiteturas preparadas para lidar com as inundações são apenas algumas das tantas estratégias que são sendo aplicadas em âmbito regional ou global. De qualquer forma, é importante notar que as estratégias anti-inundações específicas podem variar de cidade para cidade com base nas condições locais, orçamentos e recursos disponíveis.
Além disso, uma abordagem abrangente, que combine várias técnicas considerando soluções de curto e longo prazo, é muitas vezes a forma mais eficaz de enfrentar as inundações nas cidades latino-americanas, levando em conta também a colaboração entre governos, comunidades locais e organizações internacionais para implementar e sustentar com sucesso estas estratégias.
Publicado originalmente em ArchDaily em novembro de 2023.
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