Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Muitos engenheiros não conseguem se colocar no lugar de um pedestre ao planejar as redes de transporte.
26 de janeiro de 2015“Não importa o quanto você apoie o transporte público, dirigir um carro todos os dias pode moldar o seu pensamento em maneiras poderosas e subconscientes.” — Jarrett Walker
Todo início de ano aqui em Portugal, logo na primeira semana de janeiro, há um pequeno encontro/conferência dos estudantes de mestrado e doutorado da área de transporte. É sempre uma oportunidade de networking. Neste ano a palestra principal foi dada por um engenheiro civil da prefeitura de Lisboa, chefe do departamento de mobilidade urbana.
Foi uma palestra muito interessante, falando sobre as grandes mudanças que a capital portuguesa vem passando na área da mobilidade urbana (para quem quiser saber mais sugiro este link). Até o momento em que tratou da mobilidade ciclável. Ele apresentou as diversas “ciclovias” (ou “ciclocoisas” como um amigo diz) totalmente vazias, dizendo, um bocado desapontado: “Eu não entendo, ninguém anda de bicicleta em Lisboa, se gastam fortunas nessas infraestruturas para bicicletas e os ciclistas simplesmente não as usam!”
É óbvio que ele não tem culpa: afinal, ele entrou para a prefeitura há dois ou três meses e, na verdade, estava apresentando o “ponto da situação” da cidade e os desafios que ela tinha pela frente. Não foi ele quem mandou construir as ciclocoisas. No final da palestra consegui falar com o engenheiro, que se mostrou um cara bem legal, cabeça aberta e com vontade de mudanças. Eu lhe fiz somente uma pergunta (que eu já sabia a resposta): “Caro engenheiro, a respeito das ciclovias que você mencionou na apresentação e do problema da falta de demanda, foram feitas contagens de ciclistas ou inquéritos a ciclistas antes da construção dessas infraestruturas?”
Ele respondeu: “Não. Não foram feitos inquéritos e nem contagens.”
Infelizmente não tive oportunidade de estender a conversa, mas a resposta dele me fez confirmar uma “suspeita” que eu há tempos tinha, que já tinha lido neste livro e neste site: engenheiros, arquitetos, economistas, planejadores etc. de transporte não andam nem de bicicleta e nem de ônibus!
É incrível a quantidade de péssimas soluções que surgem quando o meio de transporte principal não é o carro. Ciclovias sobre calçadas, sem iluminação e esburacadas. Pontos de ônibus sem informação e sem proteção aos passageiros, terminais de ônibus sem acesso pedestre etc. Parece que esses profissionais congelam quando chega a hora de fazer algo diferente. Eles não conseguem se colocar no lugar de um pedestre, não sabem como é incômodo para um pedestre não conseguir manter um percurso linear na calçada, pois está tudo ocupando seu caminho: lixeiras, sinalização, bancos, ciclovias, carros, saídas de prédios e mesas de bar.
Ainda há outra questão que merece ser discutida: a mensagem de impressão ou opinião política que acompanha a entrega desses maus projetos. Más ciclovias e calçadas passam uma mensagem top-down do Governo para os cidadãos: “Ciclistas e pedestres, vocês não importam! O tempo de vocês é menos importante que o tempo dos motoristas.”
Conheço um economista urbano de Dresden e que já viveu em Florianópolis que também me disse que quem projeta as redes de ônibus no Brasil definitivamente não as usa. São pessoas que só andam de carro e a única variável que eles têm em mente é velocidade, querem que o ônibus ande rápido (como o carro deles), ao invés de, por exemplo, controlar a frequência, uma variável que só quem anda diariamente percebe como é importante.
Esta “falta de tato” dos engenheiros de transporte ficou bem visível nas cidades-irmãs planejadas de Milton Keynes (Inglaterra) e Almere (Países Baixos), duas cidades construídas de raiz na década de 70 com projetos multimodais. Uma teve sucesso, a outra, nem tanto.
Mas não vamos perder as esperanças, pois o Brasil começa a ter bons exemplos. Sorocaba (SP), que conta com 85% da malha de ciclovias interligada, e Rio Branco (AC), que começou com ciclovias na periferia ao invés de no centro, são alguns deles. A decisão de Rio Branco é muito inteligente: Na periferia as velocidades são muito maiores, então a segregação dos fluxos é necessária por questões de segurança rodoviária. O centro, mais congestionado e naturalmente mais multimodal, é mais lento e mais seguro.
Apesar de toda discussão que tem gerado o Plano Cicloviário de São Paulo, tenho fé nele. A bicicleta faz há muito tempo parte da “paisagem urbana” brasileira mas infelizmente sempre foi marginalizada. Quem sabe agora as coisas comecem a mudar. São Paulo ainda tem grande poder disseminador no Brasil, e o que se faz lá (seja para o bem ou para o mal) acaba sendo copiado pelo resto do Brasil.
No fim das contas, se esses engenheiros não quiserem mesmo subir no selim, então pelo menos visitem Amsterdã ou Copenhagen. Se não puderem, que visitem estes sites, pois já seria um bom começo.
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