Podcast #102 | Déficit Habitacional e a Fundação João Pinheiro
Confira nossa conversa com Frederico Poley sobre o déficit habitacional no Brasil e a Fundação João Pinheiro.
Qual foi o impacto da desregulamentação e privatização das empresas estatais de ônibus para o mercado do transporte coletivo britânico?
8 de abril de 2021Em 1985, o governo de Margareth Thatcher aprovou o Transport Act que, exceto para Londres e Irlanda do Norte, introduziu relativa competição dentro do mercado de transporte coletivo urbano por ônibus e privatizou as empresas estatais de ônibus, dentre outras disposições. Esta legislação permitiu a competição nas ruas, exigindo dos operadores um simples registro com oito semanas de antecedência, não havendo exclusividade de mercado.
No entanto, alguns subsídios e ajudas governamentais foram mantidos e a autoridade de transportes local (município, por exemplo), caso descontente com o arranjo final do mercado, poderia reorganizar a rede e lançar uma licitação ou contratar um operador para determinada linha ou mesmo para toda a rede. Em 2000 e depois em 2017, algumas alterações foram introduzidas na legislação, dando maior controle estatal sobre os transportes e permitindo cooperação entre operadores. Desta forma, o poder local pôde implementar infraestrutura específica para transporte público, tais como melhores pontos, terminais de ônibus e faixas de ônibus.
O percurso visando maior competitividade no sistema adotado pelo Reino Unido tem muito a ensinar. Thatcher defendia que a desregulação do mercado levaria a redução dos subsídios e a maior competição no mercado. No entanto, hoje os níveis de subsídio estão iguais ao patamar pré-1986 e cinco empresas dominam 70% do mercado.
Porém, ao mesmo tempo que o governo desregulou e desinvestiu no sistema de transporte coletivo de ônibus, ele subsidiou massivamente o transporte individual e a desregulação incidiu exclusivamente sobre os sistemas de ônibus urbanos e não sobre os sistemas ferroviários urbanos. Isso fez com que, a longo prazo, as autoridades locais interessadas em melhorar o seu sistema de transporte optassem por sistemas VLT ao invés de BRT, a primeira solução custando, muitas vezes, muito mais que a segunda. Somado a isso, a demanda do transporte por ônibus já vinha caindo desde antes da desregulação.
No entanto, é importante ressaltar que os custos de operação diminuíram, as frequências aumentaram e, no fundo, houve pouca competição do ponto A para o ponto B, apesar de várias empresas terem linhas de ônibus sobrepostas, mas com origens ou destinos diferentes, evitando assim a necessidade de baldeação. Ainda hoje ocorre, em algumas cidades, uma certa “Penny War”, ou “Guerra do Centavo”, onde veículos competem por passageiros na mesma via, mas de forma civilizada. No fim das contas, quem se beneficia é o passageiro.
Quanto mais densa uma rede de transporte coletivo, melhor. Quanto mais conexões, passageiros e serviços, mais barata fica a sua operação. Este fenômeno é chamado de Efeito de Mohring, onde a entrada de um novo passageiro no sistema beneficia, teoricamente, os passageiros atuais.
O Efeito de Mohring é um benefício de rede e de escala: quanto mais pessoas optam pelo transporte coletivo, maior será a oferta através do aumento da frequência e consequente diminuição dos tempos de espera. Ou seja, a decisão pessoal de uma pessoa de deixar o carro em casa e optar pelo ônibus, a longo prazo e combinada com todas as decisões de outras pessoas, levará a um aumento na oferta de transporte coletivo.
No entanto, o efeito de Mohring só ocorre caso o contrato entre a prefeitura e a concessionária explicitamente incentive a adaptação constante da oferta, tendo em conta o crescimento da demanda. A concessionária poderia então ter interesse em aumentar a frequência dos ônibus nas paradas, porém na realidade brasileira, a demanda por transporte coletivo tem diminuído, sendo a péssima qualidade do serviço concessionado e o aumento do poder de compra e taxa de motorização da população algumas das razões.
Em um sistema mais competitivo, o efeito de Mohring seria potencializado, devido à maior flexibilidade dos pequenos empreendedores em responder às demandas dos passageiros, criando um ciclo virtuoso de aumento da frequência e diminuição dos tempos de espera causados pelo crescimento da demanda.
Se olharmos o efeito de Mohring pelo lado do passageiro e, novamente, assumindo que o mesmo tem um comportamento racional, o passageiro vai embarcar no primeiro ônibus que estiver passando. O aumento da demanda também tenderia ao aumento da oferta mas, desta vez, o incremento da frequência de veículos será responsabilidade de vários operadores competindo entre si, ou seja, o efeito de Mohring em particular e as economias de escala da rede de transporte não estarão limitadas a um sistema monopolista, podendo acontecer igualmente num sistema baseado na competição.
Olhando para trás, o principal problema de desregular os sistemas de ônibus no Reino Unido não foi as medidas pró-mercado em si mas sim o desprezo pelo relevante papel do poder local na nova estrutura legal. Para algumas cidades e contextos urbanos, pode fazer sentido um sistema de ônibus totalmente privatizado e atomizado, já para outras o papel do estado é essencial.
É interessante notar que o governo de Thatcher preservou Londres da privatização: nesta cidade, o poder local tem um papel importantíssimo na definição e na gestão do sistema de ônibus, se assemelhando com os sistemas encontrados em outros países europeus. Na Europa, no sentido diametralmente oposto ao adotado pelo Reino Unido, a União Europeia passou legislação em 2007, onde o poder local pode desempenhar um papel fulcral como autoridade de transporte.
Hoje em dia, outras opções de regulação e aumento da competição no provimento do serviço de transporte urbano passam invariavelmente por soluções tecnológicas. A ideia de regulação de Curb Rights (direitos de meio-fio, em português) propõe uma solução que não limita excessivamente a competição no mercado, endereçando, no entanto, o lado pernicioso dessa mesma competição.
Basicamente a ideia do Curb Rights se assemelha ao sistema de slots nos aeroportos, onde um avião tem um portão de embarque disponível somente durante determinado período. A ideia obriga a que todos os operadores de transporte não só tenham veículos e motoristas, mas também pontos de parada, onde eles, obrigatoriamente, devem parar para embarque e desembarque de passageiros, não podendo parar em qualquer outro lugar ao longo do meio-fio.
A alocação dessas paradas poderia ser feita por um leilão municipal, onde os operadores usufruem direitos de calçada por um determinado período. Algum tipo de policiamento seria necessário para reforçar os direitos de calçada. Os direitos de meio-fio são já comuns nas nossas cidades: ao longo do meio-fio de uma avenida há certamente espaços para carga e descarga de mercadorias, estacionamento de longa, média e curta duração, bem como o ponto de ônibus. Cabe agora testá-los para demais modalidades de transporte coletivo.
O desenho de redes de transporte público coletivo se baseia em diminuir os custos de operação e não, necessariamente, maximizar a utilidade ou conforto para o passageiro. O poder público olha para a rede como um todo e não para cada serviço ligando um par origem-destino. Sempre no intuito de buscar economias de escala, segue-se a lógica de troncalização e baldeação, buscando cada vez mais a criação, muitas vezes forçada, de corredores de alta demanda, que depois distribuem em interfaces os passageiros para serviços de média/baixa demanda.
Não há nada de errado em planejar uma rede de transporte como referido acima. Aliás, é uma boa prática aproveitar as economias de escala provenientes de corredores de transporte de alta demanda. A água da sua casa passou por várias “estações” e fez várias “baldeações” antes de chegar à sua torneira. Seria economicamente insustentável que cada moradia tivesse uma ligação exclusiva à fonte de coleta de água.
O problema é que, no transporte coletivo, trata-se de pessoas e não de produtos, que tem uma preferência (normalmente negativa) em relação à viagens diretas ou que exigem transferências. A restrição de serviços atomizados e de soluções de transporte coletivo mais atrativas e de nicho para a população, deixando somente o sistema integrado concessionado, indiferente aos incentivos do mercado, operar, levou as pessoas a buscarem uma alternativa mais direta, como o carro particular.
Há razões, no entanto, para limitar a competição nas ruas e defender a competição pelas ruas. Durante o século XX e ainda nos dias de hoje em alguns países em desenvolvimento, muitas foram as cidades vítimas da competição predatória pelos passageiros entre diversos operadores, comportamento este que deve ser evitado pois gera externalidades negativas de várias ordens. Era necessário algum tipo de regulação, pública ou privada, para inibir a competição predatória nas ruas, mas fechar totalmente o mercado à iniciativa privada, condição que temos hoje, foi um erro. Uma contradição comum do setor público é barrar a competição nas ruas defendendo o argumento de que vai “piorar o fluxo de tráfego” e “aumentar a poluição”. Se as prefeituras estivessem realmente preocupadas com o engarrafamento e poluição elas iriam promover a competição nas ruas e não a barrar.
Nas cidades brasileiras há duas grandes alternativas para se transportar, o carro particular e o ônibus. Não há nada entre eles, ou seja, antes o cidadão comum ia de ônibus, agora vai de carro, contribuindo ainda mais para “piorar o fluxo de tráfego” e “aumentar a poluição”. Se existisse uma alternativa intermediária que combinasse o conforto do carro particular com o custo-benefício do ônibus, tais como o transporte alternativo ou microtransporte, certamente haveria menos engarrafamentos, poluição e acidentes. O setor público não hesitou em limitar o transporte alternativo, mas não tem o mesmo ímpeto em limitar o carro particular. O caos causado pelo transporte alternativo deu-se muito pelo incentivo ao carro particular, esse último ocupando gratuitamente o limitado espaço viário das cidades.
Outro argumento comum é que a competição nas ruas “vai aumentar a insegurança rodoviária”, causando mais acidentes. É verdade que a competição predatória e cherry picking/cream skimming sobre ruas públicas traz insegurança, no entanto, há formas de regular essa competição sem cercear substancialmente o espírito empreendedor, tais como a proposta Curb Rights e a proposta de infraestrutura virtual.
A restrição da competição no transporte coletivo contribuiu para o seu declínio em qualidade levando muitos jovens no Brasil a optarem por um outro meio de transporte, a moto. A moto no cenário urbano brasileiro, é um verdadeiro flagelo. Novamente o setor público criou um problema tentando resolvê-lo, aumentando assim o número de acidentes e a mortalidade jovem.
O Estado, novamente, tentando mitigar as externalidades do mercado, acaba por criar outras: tanto no Brasil como no exterior, os empreendedores do transporte alternativo são de classe média baixa e de baixa escolaridade, com poucas competências profissionais, sendo o transporte alternativo uma grande oportunidade para o primeiro emprego ou mesmo para a primeira empresa, visto que muitos dos veículos são dirigidos pelos proprietários.
No entanto, é preciso admitir que cada mercado tem suas especificidades e não há uma solução igual para todos. Mercados com demandas menores podem facilmente ser atendidos por sistemas atomizados, já aqueles que apresentam demandas maiores precisam de sistemas integrados e de média/alta capacidade.
É também difícil comparar o sistema desregulado de Lima ou Nairóbi com o sistema regulado e organizado ao detalhe nas cidades alemãs ou suíças. É igualmente ingênuo achar que o sistema de Lima é melhor ou pior que o de Zurique quando as duas cidades são completamente diferentes, a começar por dois fatores que se complementam, a taxa de motorização e renda per capita média. Os habitantes de Zurique têm alternativas, logo o transporte coletivo estatal precisa ter certos padrões para convencer a população a deixar o carro em casa, os de Lima provavelmente não possuem.
Importa ainda destacar uma recente simulação efetuada pelo International Transport Forum para a cidade de Lisboa comprovando que um sistema minimamente coordenado de vans, táxis e micro-ônibus, muito semelhante a ideia de microtransporte, combinados com uma rede de metrô subterrânea e trens suburbanos, iria trazer melhores resultados à população do que as redes atuais baseadas em troncalização e baldeação. Conclusões semelhantes foram apresentadas por Apta, mostrando que os novos sistemas compartilhados contribuem para o uso do transporte coletivo em geral ao invés de concorrer com ele, diminuindo assim os custos com transporte e uso do automóvel.
Para finalizar, o Brasil também apresenta soluções arrojadas de transporte público que contemplam a iniciativa privada dentro de um sistema concessionado de transporte. É o caso do sistema Citybus 2.0 em Goiânia, que oferece um serviço de nicho de transporte coletivo, semelhante aos sistemas de microtransporte. O que diferencia o CityBus das demais startups internacionais da área é a forma de entrada no mercado: a responsável pelo projeto é a empresa concessionária do sistema de transporte urbano por ônibus de Goiânia, a HP Transportes. Essa maneira de ingresso no mercado provou-se de grande sucesso e pode ser facilmente replicada em outros municípios brasileiros. Somado a isso, a HP agiu de forma inteligente: ao invés de gastar recursos desenvolvendo a interface tecnológica do sistema, se associou a Via, uma empresa de microtransporte de grande sucesso internacional.
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Parabéns pelo artigo!
Vocês poderiam divulgar as referências? Eu me interessei pelo assunto.
Obrigado, Patrícia! Quais referências você se refere? Você pode acessar os papers etc. nos links que estão destacados ao longo do texto.
Abraços,
Anthony
O CityBus 2.0 de Goiânia está suspenso temporariamente. Os motoristas ganhavam pouco e ficaram semanas sem receber, no meio da pandemia, fazendo até greve.