Lições da ciclovia da Afonso Pena, em Belo Horizonte
A pesquisa em Belo Horizonte mostra que muitas resistências comuns às ciclovias são, na verdade, equivocadas e sem fundamento.
O governo interferiu na Copa para evitar um cenário caótico e construir um “legado” para as cidades. Entretanto, o resultado que se viu foi o contrário.
13 de junho de 2014Nunca passaria pela minha cabeça ver um campeonato de futebol como algo que pudesse ser destrutivo. A Copa do Mundo no Brasil, no entanto, me fez mudar de ideia: o que era para ser um espetáculo esportivo se tornou uma política pública — e um desastre social.
Comecei questionando a avaliação pública de que a Copa extrapola a esfera privada pela sua escala. É divulgada a ideia de que, sem desmandos de políticos, turistas gerarão caos em aeroportos, hotéis e no sistema de transporte, enquanto gangues preparam ataques criminosos, sendo um prejuízo enorme para a nossa imagem internacional. Mas não foi a própria interferência política que selecionou cidades despreparadas para os jogos?
Quando o Brasil foi escolhido como sede, nenhum estádio estava de acordo com as exigências da FIFA, mas o governo prometeu um redirecionamento artificial de recursos públicos para adequar o que fosse necessário. Ou seja, não foi o caso que o evento privado extrapolou a sua esfera, mas o setor público que o considerou indispensável para sua política, influenciando na sua realização.
Mas digamos que o evento estivesse marcado sem interferência política, com os próprios clubes investindo na melhoria dos seus estádios. Será que veríamos uma catástrofe?
Grandes aglomerações urbanas, sedes de estádios com tal preparo, são locais ideais para receberem grandes eventos. Metrópoles são resilientes neste sentido por contarem com relações cruzadas entre uma variedade de fornecedores e empreendedores.
Os hotéis se preparam para o aumento da demanda ajustando seus preços para lotar sua infraestrutura com o máximo de eficiência. Proprietários de imóveis se cadastram em sites como o AirBnB, por onde podem facilmente serem locatários de curta duração.
No entanto, o governo normalmente interfere nesse preparo, como a recente notícia do combate aos “preços abusivos” dos hotéis no Rio de Janeiro: um desconto obrigatório aos turistas, gerando insegurança para quem investe e empreende.
O AirBnB também cai na irregularidade já que é comum a proibição de atividades comerciais em zonas residenciais, além de requerer a abertura de uma empresa para essas transações, inviabilizando o que era para ser algo rápido e acessível.
Falando sobre a Copa, a presidenta Dilma afirmou que “é muito caro fazer transporte coletivo. Se não for parceria, ou se a União não botar dinheiro, não sai”. Mas seria apenas uma questão financeira ou existem outros entraves? Operadores de transporte coletivo e taxistas não podem aumentar o número de veículos nas ruas, criar rotas novas, e muito menos aumentar o preço de suas tarifas para equilibrar o aumento da demanda durante o evento.
Empreender e inovar no setor de transportes, seja aéreo ou terrestre, é uma tarefa ora para os insanos ora para os poderosos, tamanha a barreira de entrada regulatória nestes setores. Pequenos empreendedores de micro-ônibus são comuns na região da Ásia-Pacífico ou da América Central, mas raramente são legalizados em cidades brasileiras.
Além disso, aplicativos que permitem o compartilhamento de caronas são proibidos por serem uma ameaça às corporações de táxi vigentes. Por fim, no tocante ao planejamento da cidade como um todo, o maior desafio não está no investimento em infraestrutura, mas sim nas legislações municipais que regulam a forma urbana, a proximidade dos pontos de atração e a competitividade do sistema de transportes.
Assim, depois de direcionar o evento para cidades despreparadas e restringir sua adaptação natural, surgem as prerrogativas “econômicas”: a Copa do Mundo seria uma chance para o Estado “liberar” recursos para infraestruturas importantes, incentivando a economia. Mas as 41 obras de “mobilidade urbana” somam em torno de R$8 bilhões e compreendem em grande parte viadutos — indutores de tráfego ao prejudicar o pedestre e coletivizar os custos de quem usa transporte individual — e os BRTs, ou Bus Rapid Transport.
A abordagem busca votos e não resultados, já que a população, em geral leiga em transportes, vê qualquer obra, independente da tecnologia ou do custo, como um benefício para a mobilidade urbana. Pouco é divulgado, mas o BRT (uma espécie de metrô de superfície usando ônibus no lugar dos trens) piorou o sistema de transportes como um todo em casos emblemáticos como Lima e Bogotá, onde já foi implementado.
Um dos motivos foi a eliminação e a proibição de importantes rotas de ônibus e micro-ônibus do sistema antigo para gerar demanda para o BRT. Além disso, a centralização do sistema o torna frágil tanto a mudanças políticas como a alterações na demanda das rotas, garantidas para qualquer cidade.
Para abordar um sistema complexo e descentralizado como o trânsito, é necessário pensar em soluções que são, também, complexas e descentralizadas, ao invés de simplificadas e centralizadoras como as nossas obras de mobilidade. Além disso, qualquer sistema que requer a restrição forçada de seus concorrentes para uma boa operação será, desde a largada, um fracasso.
Mas a grande “infraestrutura” que o país ganha são estádios de futebol que, segundo o Instituto Ethos, receberão quase R$9 bilhões em recursos públicos. E qual é a utilidade prevista para muitos destes estádios após o evento? Nenhuma, pois estão em cidades que simplesmente não tem torcidas ou times para ocupá-los.
O “Ninho de Pássaro”, estádio construído em Pequim para as Olimpíadas de 2008, enfrenta exatamente o mesmo problema, e hoje organiza cômicos passeios de Segway para desesperadamente gerar qualquer tipo de retorno.
O diretor do comitê organizador da Copa brasileira mostrou falta de bom-senso quando, ao questionado como evitaria os “elefantes brancos”, sugeriu utilizar os estádios para festas de casamento. Mais recentemente, a Arena da Amazônia foi considerada para se tornar um presídio provisório após o evento, uma improvisação em escala literalmente monumental.
Percebi, assim, que gastar dinheiro não significa gerar riqueza, muito menos resolver problemas antigos de uma nação. Com a Copa do Mundo, apenas aumentam-se as justificativas estatais para a centralização de poder e para a cobrança de impostos — de onde o governo tira seus recursos — e na verdade não existem impostos “presos” para serem “liberados”. Assim, nossa economia não é “estimulada”, apenas redirecionada para outras finalidades, saindo da esfera das preferências pessoais dos cidadãos passando para decisões governamentais a nível federal.
Neste redirecionamento reina a ineficiência e a corrupção, pois uns gastam o dinheiro de outros, com a opção de arrecadar mais caso seja insuficiente: o contrário da lógica do setor privado, com exemplos que não poderiam ser mais claros. Obras como a expansão dos aeroportos de Curitiba e de Salvador, do estádio em Porto Alegre e as obras no porto em Fortaleza praticamente dobraram seu orçamento inicial. O Estádio Mané Garrincha, em Brasília, promete ultrapassar o custo de R$2 bilhões: já se foram R$1,78 bilhões e licitaram contratos de mais R$350 milhões para obras no seu entorno.
No entanto, a tentativa de produzir um “legado” não tem apenas um custo financeiro, mas também social e de valor inestimável, talvez o maior de todos os prejuízos gerados pela Copa do Mundo. A Articulação Nacional dos Comitês Populares da Copa (Ancop) em parceria com a ONG Conectas calcula que 250 mil pessoas serão despejadas de suas casas por causa das obras. A grande maioria mora em comunidades informais, com o azar de terem nascido em um terreno em uma área pública ao invés de uma área privada. Este fato por si só elimina seu direito ao usucapião, o título de propriedade da terra por ocupação e uso prolongado, direito que já teria sido adquirido décadas atrás caso a terra não fosse pública. A maioria das comunidades sofrendo com os despejos não são assentamentos recentes, mas verdadeiros bairros que já deveriam ter sido reconhecidos e formalizados muito tempo atrás. A mais antiga delas, do Morro da Providência no Rio de Janeiro, após um século sem receber seus títulos de propriedade nem qualquer tipo de investimento público, hoje recebe de R$75 milhões para a construção de um teleférico cuja principal função é a visita de turistas: ao invés de resolver os problemas é gerado um espetáculo para a elite, removendo as pessoas e as casas no caminho.
O documentário “Casas Marcadas” revela que a Secretaria Municipal de Habitação do Rio de Janeiro marcou centenas de casas com códigos para, em seguida, sem negociação ou qualquer contato pessoal, enviar retroescavadeiras para colocá-las abaixo. Propriedades vendidas nestas comunidades, mesmo restritas ao seu mercado informal interno e com construção precária, atingem valores de R$100 mil. No entanto, as indenizações públicas aos moradores que perdem suas casas — quando recebem alguma coisa — raramente ultrapassa R$ 10 mil, uma escala de valor dez vezes menor. Não só isso, já são centenas as denúncias de violência e coerção da polícia aos moradores que desafiaram aqueles que tentaram tirá-los, mas sem sucesso. Agora imagine esta cena se repetindo, com poucas variações, por todas as cidades que se preparam para a realização da Copa do Mundo. Ao serem literalmente removidas, da noite para o dia, sem alternativa de moradia, se agrava a situação já assustadora de desigualdade e exclusão social que o país se encontra.
O governo brasileiro interferiu na Copa do Mundo para evitar um cenário caótico e para construir um “legado” para a sociedade. O resultado que se vê até o momento é o contrário do que se prometeu: caos e a construção de um legado de destruição.
Artigo escrito para publicação na revista impressa do IAB-RS, também publicado em inglês no site Daily Caller.
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