O que o Parque Ibirapuera em São Paulo tem a ver com o Nobel de Economia?
Na perspectiva do desenvolvimento econômico, vemos que alguns aspectos da configuração urbana de São Paulo são excludentes.
Um bom transporte público cria imenso valor para a comunidade ao seu redor, até para quem não é usuário. O que pode reforçar o argumento pelo seu subsídio.
30 de julho de 2018Um bom transporte público cria imenso valor para seus usuários, que recebem viagens melhores. É uma amenidade, assim como boas escolas, acesso a um bom sistema de saúde e ar puro. Desta forma, ele cria valor na comunidade ao seu redor, até para quem não é usuário: lojistas que aumentam suas vendas quando há mais acesso ao seu negócio, trabalhadores que conseguem empregos criados por cidadãos que têm mais acesso aos centros urbanos, e proprietários que conseguem vender seus imóveis a valores mais altos.
Todas essas externalidades positivas reforçam o argumento pelo subsídio ao transporte público. Entretanto, no caso do impacto no preço das propriedades, é tentador usar a valorização dos terrenos no financiamento direto de operações de transporte público; em algumas situações, isso entra em planos para criar um desenvolvimento orientado ao transporte sustentável (DOTS) e impulsionar o seu uso. Em ambos os casos, essa é uma maneira ruim de subsídio, além de oferecer uma fácil oportunidade para corrupção.
Essa “captura de valor” das externalidades positivas ocorre de formas diferentes:
• No Japão, a maior parte das ferrovias privadas desenvolvem as áreas que elas servem, com lojas de departamento no áreas urbanas e habitações em áreas periféricas.
• Em Hong Kong, o governo vende terrenos ainda não desenvolvidos para o operador do metrô, hoje privado, para criar moradias de alta densidade.
• Nos Estados Unidos e, cada vez mais, no Canadá, governos locais usam o chamado “Tax Increment Funding”, ou TIF, para construir infraestruturas públicas cobrando taxas de impacto em empreendimentos que se beneficiam delas ou programando títulos contra crescimentos esperados através de impostos sobre propriedades.
Nos casos de Hong Kong e Japão, trens urbanos são rentáveis. Não é o caso da “captura de valor” subsidiar um transporte público que, se não fosse por ela, perderia dinheiro; isso não impediu Jay Walder, então chefe do MTA de Nova York (Metropolitan Transportation Authority, empresa pública responsável pelo transporte público do estado), de defender o modelo MTR de Hong Kong como a melhor maneira de financiar o transporte público de Nova York. A verdade é que os projetos imobiliários têm margens maiores que as operações de veículos ferroviários, motivo pelo qual JR East, a mais urbana das remanescentes ferrovias nacionais japonesas, pretende também entrar no jogo e desenvolver centros comerciais perto das suas estações principais. No entanto, as operações ferroviárias nesses países são lucrativas, isso devido a uma combinação de altos níveis de lotação e baixos preços de operação.
O caso japonês é inteiramente privado e, até onde eu saiba, não envolve corrupção. Diferente do caso de Hong Kong. O Estado vende a terra para o MTR à taxa de terras periféricas não desenvolvidas. O MTR então desenvolve essa terra, aumentando seu valor. Outros empreendedores estariam dispostos a pagar muito mais, já que eles poderiam construir habitações de alta densidade com a ligação com o centro possibilitada pelo MTR. Dessa maneira, o governo acumularia os lucros vindos do valor maior das terras. No lugar disso, ele passa discretamente esses lucros ao MTR.
Enquanto a mídia ocidental exalta Hong Kong como um exemplo de sucesso, a mídia local critica a corrupção envolvida. É isso que o South China Morning Post tem a dizer sobre o modelo:
“O modelo ferroviário e de propriedade nunca foi nada além de uma ilusão pela qual apenas burocratas de Hong Kong poderiam se sujeitar. Ele se baseia na estranha noção de que você não pode atribuir um valor a uma propriedade até que você se livre dela.
Deste modo, se você concede ao MTR a terra acima das suas estações, esses locais repentinamente e magicamente adquirem valor e os rendimentos cobrem os custos de construção das linhas ferroviárias. Não é maravilhoso? Nós ganhamos o MTR de graça.“
Stephen Smith discutiu o assunto em 2013, quando ainda escrevia para a NextCity. Ele explicou a história pelo ângulo da corrupção local, o fato das operações do MTR serem rentáveis por si só, e a falta de terrenos não desenvolvidos que o Estado teria para vender na maior parte das cidades de primeiro mundo. Ao mesmo tempo, um dos seus argumentos sobre custos de construção não parece muito relevante: os custos de construção de Hong Kong são provavelmente parecidos com os de Londres e certamente maiores que os de Paris, e praticar captura de valor em Paris seria um desastre de renovação urbana.
Stephen também aborda exemplos americanos. Sem terras estatais para vender à agência de transporte público a preços abaixo do mercado, as cidades dependem dos impostos de propriedade, cobrando às vezes taxas especiais aos incorporadores para projetos de DOTS. Stephen fala sobre problemas de escala com a extensão da linha 7 do metrô de Nova York, financiada pelo TIF, mas há vários outros. O terminal Hudson Yards da linha 7, por exemplo, acabou sendo menos necessário do que se pensava inicialmente, exigindo que a cidade cedesse incentivos fiscais.
Mas há problemas mais fundamentais com a abordagem. O maior deles é a qualidade da governança. O TIF é uma opção atraente nas jurisdições americanas, conhecida por rechaçar o aumento de impostos para o pagamento direto de serviços. Isso significa que, assim como aconteceu em Nova York, é tentador para as cidades a promessa de aumentar a arrecadação com impostos sobre a propriedade e com a emissão de títulos, sendo que o aumento de impostos ou corte de serviços para o pagamento de juros caberá aos próximos governos. Essa discrição torna mais fácil a construção de projetos ruins. Além do governo prometer taxas com excelente custo-benefício, ainda pode continuar emitindo novos títulos caso exceda seu orçamento, o que significa que não há incentivo para o controle de gastos.
O TIF também induz a cidade a usar o zoneamento para criar escassez de terra, resultando em taxas maiores para o desenvolvimento de determinadas áreas. Stephen reclama que Nova York encontrou uma série de problemas na discussão sobre o adensamento de Midtown East, um dos poucos locais em Manhattan onde existe o interesse na construção de altos edifícios empresariais sem qualquer incentivo fiscal; o novo plano de zoneamento, em andamento desde que ele estava escrevendo para a NextCity em 2013, foi aprovado apenas em 2017.
Outro local semelhante é provavelmente o Meatpacking District, perto do campus do Google construído na 8th Avenue, agora o centro tecnológico da cidade. Lá não existe a construção de altos edifícios empresariais devido ao poder dos NIMBYs* residenciais de alta renda.
Se a cidade flexibilizasse o zoneamento nessas regiões e permitisse às empresas que precisam de uma localização privilegiada instalarem seus escritórios nessas áreas, seria ainda mais difícil atrair construções para áreas de menor demanda, como a Hudson Yards em Midtown West. Midtown East e o Meatpacking District estão repletos de linhas de metrô, mas não há novos planos de construção, o que significa que a cidade não faria uma TIF na região.
O problema de financiamentos via DOTS, que exigem a restrição de desenvolvimento longe das áreas de investimento, também funciona ao contrário: encoraja o transporte orientado ao desenvolvimento. Em 2007, Dan Doctoroff, então vice-prefeito e agora chefe do Sidewalk Labs do Google, se opôs ao Second Avenue Subway, alegando que a área já estava desenvolvida. O Second Avenue Subway acabou sendo construído, mas a extensão da linha 7 omitiu uma parada em uma área que já estava desenvolvida por excesso de gastos, já que a Bloomberg priorizou Hudson Yards. Isso não se restringe a Nova York: São Francisco está mais interessada em um metrô para Parkmerced do que em um metrô sob Geary, a mais movimentada rota de ônibus, mais movimentada do que a estação de metrô de superfície que serve Parkmerced hoje. Cidades americanas menores propõem conectores centrais, visando promover o redesenvolvimento dentro e ao redor do centro da cidade. Isso, por sua vez, significa ignorar os bairros de baixa renda, onde não há interesse no desenvolvimento de novos edifícios, exceto como parte de um processo de gentrificação.
Esses problemas são para investimentos direcionados. Mas quando há um uso mais generalizado do DOTS, o TIF acaba sendo um imposto sobre os usuários de transporte público. As cidades constroem estradas sem cobrar impostos especiais sobre o desenvolvimento ao seu redor, que ocorre seja por estar perto da rodovia ou por estar longe do transporte público. Quando constroem transporte público, às vezes cobram impostos sobre o desenvolvimento orientado ao transporte, o que na prática significa que eles estão dando aos investidores e residentes incentivos fiscais para se localizar longe desse serviço.
Hong Kong não é o modelo ideal para qualquer plano de DOTS; seus problemas de corrupção são imensos, mas são um grande atrativo para os americanos (e outros ocidentais anglófonos), seduzidos pelo fascínio do estrangeiro exótico, como um analfabeto pré-moderno que atribui magia à palavra escrita. Em vez de replicar seu aspecto mais questionável, é melhor analisar modelos que sejam atraentes mesmo para os fiscais de corrupção locais.
Isso significa financiar o transporte público e outros serviços com impostos transparentes e amplos. Paris usa um imposto sobre a folha de pagamento, variando a taxa de modo a ser maior na cidade (2,95%) do que nos subúrbios (1,6%). Todos os odiarão, especialmente pessoas que não usam o transporte público e não o consideram diretamente necessário para suas vidas. É por isso que eles funcionam. Eles obrigam a agência responsável pelo transporte a prestar serviços eficientes, a evitar a oposição dos eleitores que se sentirem lesados e a administrá-la bem, a fim de afastar oposições. Eles não deixam espaço para desperdício, nepotismo ou desvio de recursos, precisamente por serem difíceis de passarem despercebidos.
É fácil entender por que os políticos evitam essas fontes de financiamento. O déficit da governança local nos EUA é imenso, e o do Canadá é apenas um pouco melhor. Ninguém quer perder uma eleição por aumento de impostos, mesmo em cidades onde o espectro político vai do centro para a esquerda. A captura de valor parece uma ideia boa e inovadora para financiar o governo sem odiar a taxação, e seus abusos são ocultados. Mesmo que isso force os moradores da cidade a suportar taxas não muito claras (nunca as chame de impostos!), ela ganha elogios para os políticos que a propõem. Não admira que continue apesar de seus fracassos.
Texto publicado originalmente no site Pedestrian Observations em 7 de setembro de 2017. Traduzido para o português por Gabriel Lohmann, com revisão de Anthony Ling.
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Oi Franco, obrigado pelo comentário!
Entendo que o autor esteja evidenciando problemas com a captura da valorização do solo que muitas vezes podem passar despercebidos e que, normalmente, são menos comentados.
Não imagino que ele esteja se referindo especificamente ao IPTU ou ao ISS, até porque ele não está fazendo uma análise específica do tributo no Brasil. Meu entendimento é que poderia sugerir a criação de um imposto ou taxa que seja destinado ao sistema de transporte público, considerando os exemplos que ele deu no texto, que imagino que pode ter formatos legais diferentes em cada cidade, estado ou país.
Abraço,
Anthony
Difícil entender esse argumento. O autor quer que tributação geral seja utilizada para financiar o transporte público ou que ele seja sustentável só com as tarifas?
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