Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A Prefeitura de São Paulo deveria abandonar a concessão da Zona Azul, contratando apoio na fiscalização automatizada, cobrando o preço correto pelo serviço.
14 de fevereiro de 2019Um bom argumento às concessões é o ganho de eficiência proporcionado pelo setor privado em áreas nas quais o poder público teria dificuldade de atingir resultado social equivalente. Nesse sentido, um ótimo exemplo é o projeto para o Estádio do Pacaembu, que seria transformado em um espaço muito mais democrático e vivo com gestão e investimentos privados.
A mesma complexidade operacional e de investimentos não existe na gestão da Zona Azul de São Paulo, que a Prefeitura também planeja conceder em Abril de 2019. Ainda que se tratem de 41.000 vagas em vias públicas, com previsão de superarem 50.000, o serviço se resume essencialmente à venda de autorizações temporárias (R$ 5 por hora) e à fiscalização — hoje feita através de fiscais da Companhia de Engenharia de Trânsito (CET). Dada a magnitude, está longe de um sistema simples e sem defeitos, mas um parceiro privado pouco agregaria para além do que o governo municipal tem condições absolutas de fazer.
O principal ganho de eficiência esperado com a concessão é a otimização da fiscalização aos usuários. Ao invés de centenas de fiscais espalhados pela cidade, multando manualmente, o Edital prevê 26 carros e 27 motos com câmeras informando para a CET a placa dos carros estacionados sem pagar a tarifa estipulada. Confirmada a ausência de pagamento pelo poder público, aplica-se a multa. Usando tecnologia, aumenta-se o incentivo aos motoristas pagarem a Zona Azul ao invés de arriscarem tomar uma multa mais pesada (o enforcement, como dizem em inglês). Com menor evasão, mais receitas para o sistema.
Talvez pareça, mas esse modelo não é nada inovador, e a CET está testando sua aplicação por conta própria. Ou seja, se o principal ganho se der por maior fiscalização, o poder público pode operar o serviço sem repassar boa parte da margem de arrecadação para um parceiro privado. A Prefeitura não precisa conceder a Zona Azul para melhorar sua fiscalização, assim como não faz sentido privatizar as ruas para instalar radares de velocidade.
Enquanto muitos falam sobre o subsídio para o transporte público e alternativas como rodízio, a Zona Azul é solenemente ignorada pela maioria dos urbanistas, gestores públicos e pelos cidadãos. É, digamos, o patinho feio da mobilidade urbana. Não deveria: como Donald Shoup tem mostrado há décadas, políticas públicas direcionadas aos estacionamentos em vias podem ter efeitos tão interessantes como o popular pedágio urbano.
Para começar, é preciso cobrar o preço correto pela Zona Azul — o necessário para que uma ou duas vagas por quadra fique livre, de acordo com Shoup. Obviamente, o valor muda de acordo com a região e o horário do dia. Usando o Google Street View, pesquisei dezenas de estacionamentos privados localizados nas áreas com mais vagas de Zona Azul paulistana.
Enquanto o serviço público custa R$ 5 por hora, motoristas pagam em média R$ 13,25 em estacionamentos particulares (ou 2,65 vezes mais). Trata-se essencialmente de um subsídio público a usuários privados, que optam pelo carro, muitas vezes desacompanhados, enquanto produzem gás carbônico e prejudicam o trânsito da cidade.
Comparação relevante: o preço da Zona Azul é menor que um bilhete de ida e volta de transporte público (agora em R$ 4,30 por trecho), e dado que 62% dos motoristas dirigem menos de 10 quilômetros, sobra até para pagar a gasolina. A Prefeitura reclama do subsídio aos ônibus (muito maior, é verdade), mas se cala quando quem ganha são donos de carros, aumentando a desigualdade.
Se com as ineficiências de hoje a Zona Azul arrecada quase R$ 100 milhões por ano, pelas minhas contas, cobrando o preço correto e com a fiscalização automatizada esse valor poderia triplicar, com pouquíssimo investimento. A demanda por vagas em ruas depende, claro, de uma série de fatores, e um sistema de precificação que considere essas variações, como fez São Francisco, na Califórnia, poderia ser muito útil, ainda que complexo.
Talvez argumentem que a iniciativa privada teria mais facilidade em acertar a tarifa. Suspeito que investidores estariam mais preocupados com o lucro do que com o preço-ótimo para a cidade, com toda a razão. E, aparentemente, a Prefeitura também pensa assim, e manteve sob o poder público a responsabilidade de qualquer alteração no valor da tarifa. O Edital também já prevê que o preço atual (R$ 5,00) será apenas reajustado anualmente pela inflação. Se isso já estivesse sendo feito, aliás, a tarifa já seria de R$ 6,50 — ou R$ 30 milhões por ano aproximadamente — a última atualização foi apenas em 2014.
Mesmo se adotasse um valor acima da inflação, buscando um preço-ótimo na gestão de vagas (o que deveria fazer), a Prefeitura estaria abrindo mão de valiosas receitas, uma vez que não há previsão de reequilíbrio econômico automático por esse motivo no contrato. Em resumo, se deixar as tarifas como estão, o governo abre mão de parte importante da política de mobilidade; se, por outro lado, alterar as tarifas, abre mão de receitas também fundamentais.
Cobrando e fiscalizando de maneira eficiente, o poder público diminui a poluição e o risco de acidentes, melhorando o trânsito, principalmente por evitar que motoristas fiquem rodando a cidade atrás de uma vaga subsidiada.
Além disso, onde hoje para uma tonelada de metal sobre rodas cabe uma área de convivência (os parklets), uma ciclofaixa ou mesmo um BRT. Todos são investimentos melhores do que o subsídio para o transporte individual motorizado.
Sob gestão privada, tende a ser muito mais complexo implementar políticas públicas diferentes das acordadas, a começar pelo fato de existir uma outra parte envolvida (e com muita influência). De forma muito interessante e se antecipando a um dos potenciais problemas, o Edital estipula um valor fixo por vaga adicionada ou retirada no futuro, a ser recebido ou pago anualmente ao parceiro privado. Se em teoria isso facilita negociações e dá um valor objetivo para cada espaço, os benefícios indiretos de outras políticas públicas podem ser difíceis de mensurar. Ao final, gestores públicos podem preferir simplesmente não implementar uma ação e arcar com o ressarcimento ao parceiro privado por só ver o custo direto no orçamento — o que naturalmente não é o ideal, mas comum.
Sob o ponto de vista de uma política de mobilidade urbana mais ampla, outro ponto negativo do projeto de concessão é o tempo estimado do contrato: quinze anos. Se muito melhor que os 30 anos previstos inicialmente, é preciso considerar (e incentivar) que no curto prazo seremos muito menos dependentes de carros e suas vagas. A inovação radical são os veículos autônomos, que especialistas preveem para os próximos dez anos, mas aplicativos de transporte já estão tendo impactos diretos no sistema. Um estudo da 99 estimou que, sozinha, a empresa já reduziu a demanda por estacionamentos em pelo menos 78 mil vagas (não só em Zona Azul), podendo chegar até a 420 mil no futuro próximo. A Prefeitura deveria buscar ter menos vagas de estacionamento em vias públicas, sem deixar de cobrar o valor correto onde ainda são necessárias. Menos espaço para carros, mais para outras políticas urbanas.
Com um enorme buraco em suas contas, o governo espera receber R$ 1 bilhão ao longo dos quinze anos da concessão. Desse valor, R$ 600 milhões entrariam até o final de 2020, e o restante em pagamentos anuais de cerca de R$ 30 milhões, entre outorgas e impostos. Além disso, a Prefeitura pretende economizar quase R$ 50 milhões em investimentos, que seriam feitos pelo parceiro privado, e outros R$ 270 milhões em desonerações da CET.
Evidentemente, as finanças são sempre importantes, em especial em um cenário de crise como é o atual. A concessão da Zona Azul, no entanto, não é a resposta para os problemas de São Paulo. A principal preocupação da gestão atual é o déficit anual da previdência municipal, de R$ 6 bilhões por ano. Isso representa dez vezes a outorga inicial, que, como o nome diz, só acontece uma vez, no começo do contrato. Dessa forma, a Prefeitura está se inspirando em milhares de paulistanos: está vendendo o jantar para pagar o almoço — e, se depender da Concessão da Zona Azul, ficará com fome à noite, sem suas receitas futuras. Em Chicago aconteceu exatamente isso, e o caso se tornou o pior exemplo de privatização da história.
Considerando os argumentos apresentados, a Prefeitura de São Paulo deveria abandonar o projeto de concessão da Zona Azul, contratando o apoio na fiscalização automatizada e, principalmente, cobrando o preço correto pelo serviço. Além de melhores resultados financeiros, pode ser um ótimo caminho para melhorar a mobilidade urbana.
Mais dados, informações e argumentos estão disponível neste link.
João Melhado é economista, Mestrando em Administração Pública, com foco em Política Urbana, pela Universidade de Columbia.
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