Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Se, por um lado, a legislação de rampas durante os anos 60 nos EUA representou uma vitória em termos de acessibilidade, o efeito colateral de suas restrições tem transformado a categoria em uma espécie de Babel arquitetônica.
1 de agosto de 2014Tim Nugent é o herói desconhecido da rampa de acessibilidade. Em sua serie de livros “Elements of Architecture” — que propõe uma narrativa da arquitetura a partir dos elementos usados por todo arquiteto, em qualquer lugar ou época — Koolhaas e seu think tank da Harvard School of Design preferem não gastar tanto tempo em ícones da inclinação como Wright e Niemeyer.
Optando por uma perspectiva cujo principal interesse é o conjunto construído — não seus arquitetos — a história deste elemento dedica quase um quarto de suas páginas à biografia de uma pessoa relativamente distante da disciplina, um ativista cujo legado alterou completamente a natureza da rampa, suas possibilidades e seu alcance.
A atenção dada a Tim não é aleatória, a legislação criada por ele nos anos 60 (ANSI 117.1) foi guia para os códigos de acessibilidade na Alemanha, Russia e Índia, além de uma serie de outros lugares onde sua referência não é explicitamente citada. A globalização da rampa, através de uma linguagem extremamente universal, é parte de seu legado e resultado direto de sua pesquisa.
Nugent também ilustra o papel emblemático desempenhado pela guerra nos caminhos da arquitetura — a aceitação internacional de sua lei está diretamente ligada ao número de veteranos deficientes no período. Graças a ele, construções atualmente podem ter sua idade medida em inclinação.
Não há dúvida sobre a legislação de acessibilidade ser uma conquista para deficientes físicos. Baixa demanda ligada a difíceis pré-requisitos de espaço tornam a conquista de Nugent — ao menos nessa escala — improvável em um ambiente livre de determinações governamentais.
Do ponto de vista do espaço construído, entretanto, a legislação — ao menos em sua totalidade restritiva crescente, pois nos 50 anos de sua existência a máxima inclinação permitida diminuiu pela metade — tem dado resultado a várias realidades kafkianas. Elas emergem na relação entre a simplicidade legal e a complexidade característica da diversidade de espaços existentes.
Ao não permitir margem para decisões de bom senso, a lei de rampas — assim como qualquer outra — leva inevitavelmente a decisões de pragmatismo estúpido. A rampa de £40.000 — em uma residência de £95.000 — tem 10 patamares e 60 metros de comprimento. Feita para a casa de Claire Lally ela é apenas o ápice destes excessos.
Lelé — arquiteto brasileiro conhecido pela funcionalidade de seus edifícios — escreveu nada mais que o óbvio sobre o fato de suas passarelas não serem acessíveis (legalmente): se pessoas tivessem de caminhar 100 metros para chegar ao outro lado da rua elas simplesmente não usariam o equipamento, pondo em risco a si mesmas.
Somado a isso, a restrição legal imposta sobre qualquer superfície inclinada simplesmente excluiu a categoria do campo do design. Com exceção dos museus de arte contemporânea, as rampas como projeto se tornaram um pensamento pós-arquitetônico, um anexo, “você pode comprar uma pré-fabricada por 60 euros”. Em sua atual condição de plugin, a rampa permite acesso mas carece de identidade.
Nugent permitiu o acesso a construções, mas sua legislação é um passo atrás no acesso à Arquitetura. Para um portador de necessidade especial, a experiência de qualidade arquitetônica e urbana ainda é limitada, em grande parte, a superfícies em nível. Escapar desta Babel construtiva é de extrema importância — universalidade de acesso não precisa significar universalidade de código.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarAs mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com o objetivo de impulsionar a revitalização do centro, o governo de São Paulo anunciou a transferência da sua sede do Morumbi para Campos Elíseos. Apesar de ter pontos positivos, a ideia apresenta equívocos.
Confira nossa conversa com Diogo Lemos sobre segurança viária e motocicletas.
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
COMENTÁRIOS