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Leio intrigado no UOL que bilionários do Vale do Silício planejam construir do zero uma cidade perfeita na Califórnia. Mas o que, afinal, seria uma cidade perfeita?
De acordo com a matéria, o local contaria com bons serviços públicos, seria caminhável, sustentável, arborizado, seguro, teria casas de diferentes preços e tamanhos, todas integradas com comércios, escolas e restaurantes.
Além disso, a cidade ainda contaria com empregos bem remunerados para os seus moradores; e as escolas formariam pessoas da região para que elas também trabalhassem nas empresas locais.
“Bolha ou oásis?”, questiona o título da matéria. “Utopia ou distopia?”, pergunto eu. A cidade, afinal, é uma organização dinâmica, sempre em transformação; um verdadeiro caos planejado: até podemos definir diretrizes para nortear o desenvolvimento que desejamos, mas seu rumo inevitavelmente será afetado por circunstâncias difíceis de se prever ou controlar.
A despeito do caráter utópico-distópico do projeto dos magnatas da tecnologia, princípios relacionados a caminhabilidade, sustentabilidade, arborização, segurança, uso misto, facilidade de acesso a empregos e serviços, diversidade de tipos e tamanhos de imóveis parecem bastante razoáveis para a construção de locais capazes de proporcionar qualidade de vida a seus moradores.
Li certa vez uma crônica (vasculhei em tudo quanto é canto da internet, mas infelizmente não encontrei o raio do artigo) na qual o autor defendia que a única forma de solucionar os problemas urbanos de São Paulo seria botar fogo na cidade para depois reconstruí-la do zero, mais ou menos conforme acontecera com Chicago.
Chicago, de fato, se tornou “um bom exemplo de urbanismo moderno” segundo o arquiteto e urbanista Paulo Sá Vale em artigo publicado aqui no Caos Planejado; e a reconstrução após o grande incêndio de 1871 desempenhou um papel fundamental no processo de renovação urbana da cidade.
Com “um sistema de rápida ligação entre o centro e suas áreas adjacentes” desenvolvido a partir das diretrizes do Plano Burnham, iniciado formalmente em 1906, “a cidade conseguiu mesclar as áreas residenciais e as áreas comerciais de forma funcional e eficiente, beneficiando tanto as classes mais favorecidas […] quanto as classes menos favorecidas, que tinham rápido acesso ao trabalho – independentemente se moravam no centro adensado de Chicago ou em bairros populares distantes”, escreve Sá Vale.
“Vale destacar que as construções possuíam alto índice construtivo e nenhum afastamento legal até então, sendo a maioria das regulações referentes somente ao estilo arquitetônico de cada edificação”, continua.
“Por fim, vale salientar que o uso misto e a alta densidade – que o plano não buscou alterar – contribuíram para tornar Chicago uma das mais atraentes cidades americanas do século XX”, concluí o autor.
Desconfio, contudo, que, em São Paulo, nem mesmo a reconstrução do zero seria condição suficiente para a criação de uma cidade com mais qualidade de vida para os seus moradores.
Pelo contrário, o mais provável, me parece, é que muitos dos nossos maiores equívocos urbanos fossem reproduzidos e repetidos em larga escala, conforme sugere a grande maioria dos “bairros planejados” da cidade e arredores [“bairros planejados” com aspas mesmo, pois, ainda que sejam assim chamados, provavelmente não seriam classificados como tal pela ADIT Brasil – Associação para o Desenvolvimento Imobiliário e Turístico do Brasil].
Poderia explorar aqui talvez o caso mais famoso de todos, o Alphaville, construído nos municípios de Barueri e Santana do Parnaíba e, na sua concepção original, dividido entre zonas exclusivamente industriais, comerciais, residenciais, sendo estas últimas formadas por casas protegidas por muros e guaritas, distante dos empregos e dos comércios e mesmo do transporte público, em um modelo pouco sustentável em que os moradores são dependentes do automóvel para todo e qualquer deslocamento.
Em resumo, um simulacro de subúrbio americano, uma vez que todas as casas sem grades ou muros estão dentro de grandes condomínios cercados e vigiados.
Vou apresentar, porém, dois loteamentos mais recentes localizados na Zona Oeste da cidade e que conheço melhor: o Colina de São Francisco, no Rio Pequeno, e o Jardim das Perdizes, na Água Branca.
O loteamento Colina de São Francisco, lançado em 1996 pela Gafisa e já concluído, conta com pelo menos 1.500 apartamentos distribuídos em 54 torres de 9 andares, e se configura como uma verdadeira “ilha de alto padrão”, conforme analisado na dissertação de mestrado da Maria Malquíades Costa Maio.
Apesar de contar com ruas sem saídas e vias nas quais predomina o trânsito local, todos os prédios são recuados, isolados no lote, cercados por muros e grades, sem fachada ativa.
Pode-se dizer que os apartamentos, embora variem ligeiramente de tamanho e número de dormitórios, são todos voltados para o mesmo tipo de público.
A falta de integração do “bairro” com o transporte público faz com que as vias sejam tomadas por carros estacionados de visitantes e prestadores de serviços. Os moradores, por sua vez, dependem do carro mesmo para pequenos deslocamentos do dia-a-dia, como ir à padaria ou levar os filhos à escola, resultando em graves problemas de congestionamento na região.
A despeito da concentração de pessoas de alta renda, os prédios são exclusivamente residenciais, com espaço para comércio restrito a uma espécie de strip mall típico dos subúrbios norte-americanos, repleto de vagas de estacionamento, na entrada principal do “bairro”.
Resultado: nem as calçadas largas e arborizadas, a presença de praças e até de um parque conseguem diminuir a monotonia que é caminhar por ali.
Cenário semelhante pode ser encontrado no “bairro” Jardim das Perdizes, complexo de uso misto e aberto lançado pela Tecnisa em 2013 em uma área de 250 mil metros quadrados entre o Viaduto Pompeia e a avenida Marquês de São Vicente.
Novamente temos torres isoladas nos lotes, distantes umas das outras, cercadas por grades, muros e pouco integradas ao belo parque (também gradeado) que faz parte do empreendimento.
Os benefícios esperados do “uso misto” no bairro são comprometidos pelo fato de que temos torres exclusivamente corporativas ou residenciais, distantes umas das outras, sendo que as residenciais não contam com fachada ativa.
As torres corporativas, por sua vez, até contam com fachada ativa, mas se encontram bastante distantes dos demais prédios e recuadas em relação à calçada da avenida Marquês de São Vicente, também dando às lojas e às vagas do térreo uma configuração típica de strip mall, que privilegia o acesso de carro.
Sei que muitos alegarão que a configuração dos dois “bairros planejados” é reflexo direto dos Planos Diretores anteriores a 2014. E, ao menos em parte, eles até têm razão. Entendo, porém, que ajuda a entender muito melhor as características desses espaços a reflexão apresentada por Paulo Sá Vale em seu artigo sobre Chicago.
Diz ele que “uma cidade é resultado direto de seus construtores. Às vezes, parte significativa deles está intimamente ligada com a arquitetura, e o significado de sua construção torna-se mais profundo, com transmissão de valores, cultura, visão de mundo – além da visão pessoal do arquiteto sobre edificação, cultura e sociedade. Dessa forma, a arquitetura pode ser tanto um elemento de reafirmação cultural, quanto de contracultura”.
No caso dos dois “bairros planejados” de São Paulo, o que grande parte dos urbanistas contemporâneos tende a encarar como equívoco pode representar, na verdade, uma estratégia para criar mesmo “ilhas de alto padrão” e evitar ao máximo a convivência com a diversidade, com pessoas “estranhas”, reforçando-se, com isto, a segregação, uma das principais características da capital paulista.
No caso do Jardim das Perdizes, nem mesmo a proximidade em relação ao corredor de ônibus da Avenida Marquês de São Vicente parece melhorar o cenário: a relação do “bairro planejado” com as ruas e avenidas do entorno torna o acesso a pé pouco convidativo – em todas às vezes que fui ao Parque Jardim das Perdizes, por exemplo, fiquei com a sensação de que praticamente todos os visitantes deviam ter chegado ali de carro (sempre foi muito difícil encontrar vagas de estacionamento).
Os dois “bairros planejados” representam, assim, a perfeita união do ideal dos subúrbios americanos com a lógica do condomínio e a arquitetura do medo paulistana: monotonia, segurança, muitos carros e pouca gente na rua. Dois pequenos Alphavilles implantados no meio de São Paulo. Duas tristes e pouco inspiradas visões do paraíso. Dois desastres urbanos nos quais ainda predomina a lógica do automóvel. Enfim, duas grandes oportunidades desperdiçadas de se tentar transformar concentração de gente e dinheiro em lugares vivos, criativos e interessantes.
É claro que há ótimos modelos de bom urbanismo quando falamos de “bairros planejados”, especialmente fora de São Paulo. Em artigo publicado pelo Movimento Somos Cidade, por exemplo, Felipe Cavalcante chama atenção para o surgimento nos últimos anos de “diversos projetos de bairros planejados de alta qualidade, que estão implantando as melhores técnicas do urbanismo, voltados para a criação de lugares vibrantes e que priorizam as pessoas”. A Cidade Pedra Branca, em Palhoça (SC), é atualmente a principal referência no país. Outro bom exemplo é o Parque Una, em Pelotas (RS).
Desconheço, contudo, bons projetos em São Paulo. Condomínios no Alphaville, na Granja Viana, ou loteamentos como Colina de São Francisco e Jardim das Perdizes trazem exemplos das características ainda predominantes desse tipo de ocupação do solo na capital paulista e arredores.
Sem incentivos públicos (e vontade dos moradores, é claro), fica difícil acreditar na regeneração desses espaços. Resta, assim, torcer para que futuros “bairros planejados” de alto padrão em São Paulo ao menos levem em consideração muitos dos princípios norteadores da tal cidade perfeita idealizada pelos bilionários do Vale do Silício, tão admirados pelas nossas elites locais (princípios semelhantes estão organizados e detalhados no ótimo Manual de Bairros Planejados – Como construir uma cidade para pessoas da ADIT).
Temo, porém, que meu desejo seja ainda mais utópico do que o misterioso projeto dos magnatas norte-americanos da tecnologia.
Vitor Meira França é economista pela FEA-USP e mestre em economia pela EESP-FGV.
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Muito prazer em conhecer o Caos Planejado.
Venho trabalhando há tempos essa temática com minhas turmas de graduação em A&U como as de pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional.
As referências citadas são velhas conhecidas mas o Caos Planejado uma grata surpresa!
Pedro Ribeiro Moreira Neto
Por. Dr. da Univap – Universidade do Vale do Paraiba
Muito prazer em conhecer o Caos Planejado.
Venho trabalhando há tempos essa temática com minhas turmas de graduação em A&U como as de pós-graduação em Planejamento Urbano e Regional.
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Pedro Ribeiro Moreira Neto
Por. Dr. da Univap – Universidade do Vale do Paraiba