Entrevista: Grandes lotes prejudicam o espaço público de São Paulo

Entrevista: Grandes lotes prejudicam o espaço público de São Paulo

"Um grande lote cercado de muros vai ter uma calçada morta, e consequentemente uma rua morta", afirma Thaty Galvão.

7 de dezembro de 2023

Nos últimos anos, a cidade de São Paulo, através de leis como o Plano Diretor Estratégico e a Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, tem tomado medidas para melhorar a relação entre os edifícios que ocupam grandes lotes e o espaço urbano. Entre os instrumentos urbanísticos que estão sendo incentivados, temos os seguintes:

Limites para Dimensões de Lote

Essa medida visa regular o tamanho dos terrenos dentro de uma área específica, contribuindo para uma distribuição mais equitativa e eficiente do espaço urbano. Limites para dimensões de lote podem promover uma ocupação mais coerente e integrada, evitando extremos que possam comprometer a estética e a funcionalidade da região.

Restrição Quanto à Extensão de Muros

A imposição de restrições à extensão de muros visa criar ambientes urbanos mais abertos e convidativos. Ao limitar a altura e a extensão dos muros, as autoridades buscam fomentar uma sensação de comunidade, promovendo a interação entre os espaços públicos e privados. Essa abordagem contribui para a formação de bairros mais acessíveis e socialmente integrados.

Incentivo à Fachada Ativa

O incentivo à fachada ativa é uma estratégia que visa dinamizar a vida nas ruas, especialmente em zonas comerciais. Ela estimula a criação de edifícios com frente interativa para as ruas, incorporando elementos como vitrines, entradas e espaços de acesso público. Essa prática busca tornar as áreas urbanas mais atrativas, melhorando a experiência dos pedestres e fomentando a atividade econômica.

Eliminação da Exigência de Recuos Frontais

A eliminação da exigência de recuos frontais refere-se à redução ou remoção das áreas obrigatórias de afastamento entre a edificação e a via pública. Essa medida pode ser adotada para otimizar o uso do solo, permitindo uma ocupação mais eficiente e compacta, e tornando a região mais agradável para quem caminha.

Fruição Pública

A fruição pública refere-se à disponibilização de espaços urbanos para o uso coletivo. Isso envolve a criação de áreas verdes, galerias, praças e outras instalações de lazer junto aos edifícios, com acesso livre e gratuito à comunidade. 

Em sua dissertação de mestrado Fronteiras e divisas: qualidade urbana no distrito da Vila Mariana em São Paulo, a pesquisadora Thaty Galvão analisou o impacto desses incentivos na produção imobiliária da capital paulista. Embora tenha havido alguns avanços, a arquiteta permanece cética quanto à capacidade da Lei de regular a qualidade urbana da cidade. 

Thaty Galvão também chama a atenção para um problema pouco discutido: a inserção de lotes de grandes dimensões em bairros já consolidados. Principalmente nas últimas duas décadas, tem aumentado substancialmente a construção de condomínios com várias torres completamente cercados, que são quase cidades dentro da cidade. Segundo a pesquisadora, a Lei erra ao permitir esses grandes lotes em áreas densamente povoadas.

Confira abaixo a nossa entrevista com a pesquisadora Thaty Galvão

Caos Planejado: Por que a interface entre o térreo do edifício e a rua é tão importante para criar uma cidade com qualidade urbana?

Thaty Galvão: É nessa interface que ocorrem as trocas humanas. A cidade é feita de pessoas, e onde essas pessoas interagem? Justamente naquilo que eu chamo de fronteiras, que são as áreas onde conseguimos ter interação entre as partes interna e externa da edificação.

CP: Você poderia dar exemplos de elementos arquitetônicos que tornam o espaço urbano  mais amigável?

TG: Toda entrada de edifício residencial e comercial traz movimento para a cidade. Não é só o comércio no térreo que constituí uma fachada ativa. Elementos como portas, portões, janelas e vitrines também contam, porque estimulam as trocas entre o edifício e a rua. Um grande lote cercado de muros vai ter uma calçada morta, e consequentemente uma rua morta, com as implicações a que isso leva.

A imagem mostra a calçada arborizada de um condomínio residencial
Apesar da arborização na calçada, empreendimentos como esse não tem aberturas para o espaço público, e afastam o movimento nas ruas.

CP: Como a regulação urbanística pode ser alterada para melhorar esse contato com as calçadas?

TG: Das medidas que São Paulo tem adotado, para mim a mais relevante é estabelecer limites mais rígidos para a dimensão dos lotes em zona urbana. O zoneamento ainda permite lotes enormes, maiores que 10.000 m², e é muito difícil compatibilizar essa interface com o tecido do bairro.

Essa questão do tamanho dos lotes nunca é levada adiante nas discussões sobre o Plano Diretor Estratégico (PDE) ou da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (LPUOS). Isso gera uma cadeia, pois quando optamos entre um lote pequeno ou grande, disso resulta a extensão da testada, resultando no tipo de ocupação, que resulta no uso que esse lote vai ter, que resulta na quantidade de acessos que teremos.

CP: Os incentivos à fachada ativa não são suficientes para solucionar o problema?

TG: Hoje a discussão é muito em torno de criar regras para essa fachada ativa, dizendo que assim pode, assim não pode, não pode em desnível, e o nível tem que ser um metro acima, um metro abaixo, etc. Todo mundo quer monitorar essa fachada ativa, mas a Lei continua permitindo lotes acima de 10.000 m², como se isso não fosse reverberar na cidade. A fachada ativa não consegue ser solução para 100% da cidade.

A imagem mostra a fachada de um condomínio residencial.
Este empreendimento na Vila Mariana, construído em 2004, é quase totalmente cercado por muros.

CP: Sua dissertação cita uma série de regras em que a Lei tenta humanizar esses lotes de grandes dimensões. Essas regras são complicadas e cheias de pormenores. Na sua opinião, existem instrumentos que a Lei poderia adotar para garantir que esses lotes tenham uma boa relação com a cidade? Ou o melhor é que eles não sejam permitidos? 

TG: Veja bem, o problema é a gente tratar como regra o que deveria ser uma exceção. Necessariamente, nós vamos ter alguns lotes desse tamanho na cidade, e eles precisarão ser cercados. É o caso dos terrenos onde funcionam universidades, hospitais, órgãos públicos, etc. Mas esses casos deveriam ser uma raridade.

CP: Ou seja, os lotes de grandes dimensões só deveriam ser permitidos em casos excepcionais. No caso de eles ainda assim serem permitidos como regra, como hoje em dia, o que mais pode ser feito para melhorar a inserção desses terrenos na cidade?

TG: Em primeiro lugar, limitar a extensão dos muros. A Lei já aponta o caminho certo quando diz que os muros podem ocupar no máximo 25% do perímetro que está em contato com a rua.

O problema é que essa regra só vale para lotes maiores que 10.000 m². Um lote com 9.900 m² pode ser totalmente murado! E mesmo um lote de 5.000 m² já causa um impacto enorme na cidade. Para mim, esse limite de 25% na extensão dos muros deveria valer para lotes de qualquer dimensão, a depender da extensão da sua testada. 

A imagem mostra a extensa fachada de um prédio.
Neste empreendimento, a própria fachada do prédio forma um muro em relação à calçada.

CP: Esses grandes lotes, com mais de 10 mil m², são permitidos por toda a cidade?

TG: Na maioria das zonas eles são permitidos. Por exemplo em uma ZM, que é uma zona de miolo de bairro, a dimensão mínima permitida é 125 m², e a máxima é 20 mil. Então ao lado de uma casinha você pode ter um empreendimento desse tamanho. É possível ter alguma qualidade urbana em um bairro formado por lotes de tamanhos tão díspares? Em lote residencial de 20 mil m² vão ser feitas várias torres. Até entendo que alguns empreendimentos terão um tratamento urbanístico para se adequar ao entorno. Mas isso, infelizmente, não será a regra.

São poucos os casos onde um terreno tão grande deveria ser permitido.  Não é factível ter lotes desse tamanho no centro da cidade, por exemplo. Para bairros que já estão consolidados, um lote de 10 mil m² já é temerário.

CP: Nós vemos que os planos diretores às vezes criam regras muito complicadas para tentar melhorar essa relação entre o edifício e a rua. Mas o problema é que é muito difícil criar uma fórmula objetiva para garantir a qualidade urbanística. Como resolver esse dilema?

TG: Na maioria das vezes, os arquitetos usam a Lei como a “forma de um bolo” e não como parâmetro para verificação posterior de um projeto elaborado. Os bons exemplos de arquitetura do passado não são resultado de imposições da legislação. Mas resultado da própria prática de projeto. 

Hoje, os arquitetos são obrigados a partir de uma série de normativas para terem seus projetos aprovados. O que não tem resultado necessariamente em boas interações entre interior e exterior das edificações.

Antigamente, em um terreno de 500 m² dava para fazer um “predinho”, porque o coeficiente de aproveitamento permitia. Além disso, não era obrigatório deixar recuos em relação ao limite do lote. Então não importava muito se o lote era grande ou pequeno. 

Hoje em dia, o mercado precisa capturar terrenos enormes para obter mais área computável, senão o projeto não tem viabilidade financeira. Os lotes pequenos não são mais viáveis por causa da legislação. Por isso o mercado acaba sendo direcionado para os megaempreendimentos, que só empresas grandes conseguem construir.

A imagem mostra a calçada em frente a um pequeno prédio.
Prédios em lotes pequenos, como esses na Rua Humberto I, criam uma diversidade de comércio e fachadas na rua. O grande número de acessos gera movimento de pessoas e aumenta a sensação de segurança.

CP: Esses “predinhos” em lotes pequenos eram muito comuns em São Paulo até os anos 1970. O que esses edifícios antigos oferecem para a cidade do ponto de vista urbanístico?

TG: Um atributo importante é que a testada (face do lote voltada para a rua) não era tão grande. Havia vários edifícios com testada de 10 a 20 metros, ou até menos. E os edifícios ficavam alinhados com a frente do lote, com a porta de acesso abrindo diretamente para a calçada. Isso faz com que haja mais prédios em cada quarteirão. Além de aumentar a variedade visual, o que torna a cidade menos monótona, aumenta a quantidade de acessos aos prédios, com pessoas entrando e saindo, o que faz nos sentirmos mais seguros.

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