Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O jeito como aprendemos a construir, planejar e gerir cidades teve o modernismo como seu principal norteador, o que permanece enraizado em nossa legislação.
3 de junho de 2019O modernismo deixou de existir como movimento da arquitetura e urbanismo desde, pelo menos, os anos 1980. Na arquitetura, movimentos como o metabolismo japonês e o desconstrutivismo ajudaram a superar os resquícios da arquitetura moderna. No urbanismo, nomes como Jane Jacobs e Christopher Alexander, ainda na década de 1960, contribuíram para sepultar as premissas do urbanismo moderno.
Todavia, apesar de mais de 50 anos do trabalho de Jane Jacobs e Christopher Alexander, assim como a superação da arquitetura moderna como estilo arquitetônico, é comum ainda falarmos sobre a arquitetura e o urbanismo moderno. Mas afinal, por que falar sobre eles ainda é importante?
De maneira geral, podemos atribuir esta relevância a três fatores principais: equívoco de interpretação dos acontecimentos históricos, a influência do modernismo no urbanismo brasileiro e — talvez o mais importante — o legado das ideias modernas na forma como gerimos e enxergamos a cidade.
O primeiro ponto a ser esclarecido nessa questão é a conceituação dos termos. Moderno pode estar atrelado tanto ao movimento cultural surgido no início do século XX, que perdurou até meados do mesmo século, influenciando as mais diversas artes — incluindo a arquitetura —, como simplesmente sinônimo de “atual”. Na literatura urbana, apenas o primeiro conceito é válido.
Ou seja, a cidade moderna foi aquela criada e fundamentada a partir dos remodelamentos urbanos na Europa e implementação de medidas do planejamento urbano moderno.
A cidade moderna está, portanto, ligada diretamente à industrialização da sociedade ocidental, sobretudo Europa e Estados Unidos, em que a relação de trabalho e produção alterou nosso contexto enquanto sociedade, incluindo a forma como construímos e ocupamos as cidades.
Entre suas principais características, podemos despontar o crescimento de arranha-céus, a criação dos subúrbios e a expansão do automóvel como meio de locomoção. Todavia, nossa sociedade não é mais moderna.
Vários autores do campo da sociologia, como Bauman, afirmam que vivemos na era da pós-modernidade. Embora seja difícil criar um marco, ainda mais por estarmos em uma época tão próxima, a era da pós-modernidade teria se iniciado em meados da segunda metade do século XX, com a abertura dos mercados e a revolução digital.
Segundo Bauman, a pós-modernidade é caracterizada pela alteração da sociedade de produção para sociedade de consumo. Além disso, as relações sociais se tornaram mais efêmeras, digitais, e a humanidade mais dependente da tecnologia.
No campo do urbanismo, o geógrafo David Harvey é outro que afirma que estamos na era da pós-modernidade, com início por volta do final da década de 1960 e começo da década de 1970, alimentado, sobretudo, pelo movimento antimoderno da década de 1960, que irradiou por várias esferas do conhecimento, incluindo o urbanismo, sob influência de nomes como Jacobs e Alexander.
Desse modo, quando tratamos de cidade moderna de forma técnica, não estamos falando sobre as nossas cidades atuais mas sim sobre aquelas construídas entre o século XIX e século XX. Todavia, seu legado não se desprendeu magicamente após a transição da modernidade para a pós-modernidade.
Seu legado permaneceu, seja de forma explícita, como no ambiente construído, seja de forma implícita, enraizada nas leis e na formação de urbanistas e demais profissionais que trabalham com a cidade.
Por fim, vale destacar que o contexto de nossa sociedade e das nossas cidades é muito diferente daquele vivido ao longo da primeira metade do século XX.
As transformações que estão ocorrendo atualmente eram inimagináveis naquela realidade, seja pelo avanço institucional, seja pelo avanço tecnológico, ou mesmo pela mudança da forma com que nos comunicamos e enxergamos o mundo. Castells, importante teórico da comunicação, afirma que a geração atual se comunica de forma diferente das anteriores, o que caracteriza como “cultura digital”.
As mudanças em nossa sociedade, portanto, não são frutos, necessariamente, de movimentos hierárquicos tradicionais, mas ocorrem principalmente em plataformas digitais, onde os jovens sentem-se mais à vontade para se comunicar à sua maneira.
Desse modo, realizam a vontade inerente de toda geração jovem: rebelar-se contra a ordem estabelecida. Para tal, utilizam as plataformas digitais, que ao contrário das instituições tradicionais, não foram criadas para a submissão, mas para a liberdade.
Nessa realidade, a internet torna-se a plataforma natural para os agentes de transformações, que não estão incorporados na presença de um líder, mas em um conjunto de indivíduos espalhados por toda a sociedade.
Para averiguar essa transformação, basta verificar as últimas revoluções que ocorreram em nossas cidades: aplicativos de mobilidade, seja para automóveis, motos, bicicletas ou mesmo patinetes elétricos. Além disso, movimentos como a Primavera Árabe tiveram como plataforma principal não sindicatos ou outras instituições tradicionais, mas as redes sociais.
O que é a arquitetura se não a reprodução, o desenvolvimento e a criação de uma linguagem própria, em que fatores como cultura, história e outros elementos são fatores preponderantes para criação do estilo a ser desenvolvido? Afinal, não se engane, uma construção não é um elemento vazio de significado, mas transmite mensagens que correspondem tanto a realidade de cada época, como de sua sociedade e, por fim, do seu construtor.
Dessa maneira, é impossível pensar no movimento moderno sem relacioná-lo com as ideias propagadas no início do século XX, a justificativa científica e cultural que serviu como alicerce para a implementação das ideias modernas que moldaram nossas cidades até os dias atuais.
O impacto foi ainda mais sentido em países periféricos, como o Brasil, pois aqui as cidades ainda não estavam solidificadas e, portanto, havia bastante espaço para elas crescerem, fato que se consolidou ao longo do século XX. Das Vilas Operárias aos Conjuntos Habitacionais financiados pelo Banco Nacional de Habitação, a arquitetura e urbanismo moderno foram os principais norteadores.
Desse modo, a separação da cidade por função e o privilégio ao automóvel em detrimento de outros modais de transporte — inclusive o transporte a pé — foram medidas oficiais de nossa política urbana. Além da construção física de bairros inteiros e, em alguns casos, até de cidades, como nossa Capital Federal, o urbanismo moderno moldou também nossa legislação urbana, de modo que Plano Diretor e Zoneamento foram se ajustando ao ideal de modernidade presente em cada período da evolução do pensamento urbanístico contido na academia e na esfera política.
Simultaneamente a esse processo, tivemos a abertura das escolas de Arquitetura e Urbanismo no Brasil. Algumas faculdades existiam desde o século XIX, mas estavam reclusas a um público muito reduzido.
A abertura de novos cursos de arquitetura ao longo do século XX, como na Universidade Presbiteriana Mackenzie, se deram no início e consolidação das ideias modernas, e, posteriormente, no auge do modernismo, propagando as ideias modernistas Le Corbusianas, absorvidas e adaptadas por Lucio Costa.
Ou seja, toda a primeira formação de arquitetos brasileiros tinha grande influência do modernismo e respeitavam as recomendações da Carta de Atenas, visto que, nosso maior urbanista, Lucio Costa, mundialmente conhecido, era fortemente influenciado pelo modernismo Le Corbusiano, seja na arquitetura, seja nas proposições urbanas.
Entre os projetos de Lucio Costa, destaca-se, na arquitetura, o edifício Gustavo Capanema — antigo Ministério de Educação e Cultura, projetado em conjunto com o jovem Niemeyer. No campo urbanístico, a cidade de Brasília e plano para a Barra da Tijuca são os principais exemplos.
Além disso, há vários outros projetos não executados, como Novo Polo Urbano, em São Luís, Alagados, em Salvador, ambos no Brasil. Também há projetos feitos para cidades no exterior, como o projeto da Nova Capital da Nigéria e Corniche — Orla Marítima de Casablanca.
Assim sendo, o modernismo se enraizou na formação dos novos arquitetos e urbanistas. Nossas primeiras legislações, no que tange a política urbana, foram inspiradas nas ideias modernas. Dessa forma, o jeito como aprendemos a construir, planejar e gerir cidades se deu com a utilização do modernismo como principal norteador, fato que permanece enraizado em boa parte da nossa legislação urbana.
Para atestar a veracidade dessa informação, basta averiguar quantas de nossas cidades ainda zoneiam a cidade por função, impedem a construção no pavimento térreo, buscam a criação de bairros e unidades habitacionais independentes, entre outras influências da arquitetura e urbanismo moderno, defendidas na Carta de Atenas — separação da cidade por função, livre circular, conceito de unidade de vizinhança — melhor desenvolvido por Lucio Costa com as Superquadras.
Sendo assim, quando falamos sobre modernismo, não estamos necessariamente fazendo uma historiografia do movimento moderno no que tange a arquitetura e urbanismo mas sim constando as maiores influências no período de maior crescimento e transformação das nossas cidades, além da formação de uma parte considerável de profissionais de arquitetura e urbanismo.
Além, evidentemente, dos teóricos do urbanismo moderno — como Lucio Costa e Le Corbusier —, é importante conhecer seus críticos, como Jacobs e Alexander, que ajudaram a revolucionar o urbanismo, influenciando o surgimento, nas décadas seguintes, de movimentos como o urbanismo emergente e o novo urbanismo.
Somente dessa forma podemos ser capazes de associar quais são os traços do urbanismo moderno que, ainda que involuntariamente, carregamos na forma que enxergamos a função do urbanismo. E somente após esta etapa somos capazes de refletir se essas imposições são positivas, negativas ou apenas um apego cultural e técnico da nossa formação cultural e acadêmica, na forma que pensamos e entendemos a cidade enquanto cidadãos, profissionais ou estudantes do tema.
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COMENTÁRIOS
O modernismo e o pós modernismo nos deu uma arquitetura vazia, monstruosa. Prédios que parecem caixas de vidro na melhor das hipóteses ou restos de um acidente onde as estruturas colapsaram e mais atualmente estruturas que remetem a entranhas alienígenas. A funcionalidade em detrimento da estética, a elevação de ideais sombrios de coletividade nos dando duas escolhas: uniformização pasteurizada de um lado ou a repugnância de criações que apelam para o choque e ousadia que o uso de novos materiais permitiram realizar, tudo isso movido por dinheiro e cujo resultado final foi a esterilização da beleza.
Concordo plenamente. Mas pior do que no quesito estético, foi o estatismo que o modernismo justificou e consolidou em nossas cidades. Brasília é o maior exemplo de como o estado pode construir e trazer um caos tendo como base o modernismo: uma cidade burocrática e segregadora. O dirigismo estatal localizou por função cada quadra, deixando a mobilidade muito difícil de ser fluída. O transporte público é péssimo. O concreto armado aparente deixa a cidade com uma estética nada agradável e a falta de arborização faz da capital um inferno em dias quentes. Enfim, Brasília não valeu os custos.