A Smart City no seu bolso: de centros de comando a aplicativos descentralizados
Imagem: Dakiny/Flickr.

A Smart City no seu bolso: de centros de comando a aplicativos descentralizados

Ao invés de oferecer serviços específicos presenciais, governos municipais poderiam se abrir e padronizar seus dados de modo a permitir um dinâmico mercado de aplicativos que ofereçam serviços públicos.

26 de janeiro de 2016

As cidades, na maior parte da história humana, eram burras. Pelo menos, é o que o movimento Smart Cities leva você a acreditar. Nos últimos anos, um coro entre corporações multinacionais tecnológicas, políticos antenados e empreendedores otimistas — numa mistura exótica de antigos jogadores de SimCity, muito provavelmente — começou a cantar sobre o potencial da tecnologia para resolver os problemas urbanos. Através da implementação de tecnologias como infraestrutura física aumentada, centros de comando e trocas de informações, os proponentes das Smart Cities defendem que a tecnologia da informação oferece solução para problemas clássicos como coleta de lixo, saúde pública e congestionamentos. Enquanto as variações ideológicas do movimento são diversas, o foco em soluções top-down (“de cima para baixo”, ou “centralizada” neste texto) ultimamente distrai observadores urbanos da revolução da Smart City bottom-up (“de baixo para cima”, ou então “descentralizada”) que já está em curso.

Em seu livro de 2014 Smart Cities: Big Data, Civic Hackers and the Quest for a New Utopia, o acadêmico Anthony M. Townsend mostra uma imagem problemática do modestamente intitulado Centro de Operações Inteligentes do Rio de Janeiro. Desenvolvido pela IBM, o centro atua como um hub para centenas de câmeras de segurança e sensores. Na melhor das hipóteses, o centro atinge pouco além disso, nas palavras de Townsend, “parecendo inteligente”. Na pior, o centro parece uma regressão à centralização do século passado. As explorações de Townsend sobre Songdo, na Coreia do Sul, uma cidade construída para ser tanto planejada de modo centralizado quanto “inteligente”, dificilmente reprime essas preocupações. A discussão deixa o leitor com um ceticismo saudável quanto às soluções centralizadas para Smart Cities.

Outras críticas fizeram com que a abordagem top down das Smart Cities parecessem menos com 1984 e mais como algo saído de Brazil, de Terry Gilliam. Em algumas de suas postagens recentes, a economista Emily Washington aponta para os desafios apresentados por iniciativas precárias e pela falta de sinais do mercado, tanto para políticos quanto para servidores públicos de alto-escalão. Por razões similares, ambas as partes carecem dos incentivos para implementar soluções de Smart City que criam valor de longo prazo para os residentes urbanos. Ao operar fora de um sistema de lucro e perdas, ambos os grupos trabalham na lógica do próximo emprego, seja ele um próximo termo nas eleições ou uma confortável posição no setor privado.

Sem o sistema de preços para disciplinar os gastos e transparecer os valores criados, aspirantes a planejadores de Smart City esbarram nos mesmos problemas que os planejadores econômicos do século vinte, construindo planos complexos e rígidos que rapidamente declinam na ineficiência. Como Emily coloca, o setor público “gasta para ganhar apoio público, poder, ou aumentar suas oportunidades financeiras após sair de seus cargos”, ao invés de criar real valor para os supostos beneficiários de seus projetos. Com frequência, simplesmente “parecer inteligente” é mais do que suficiente para que oficiais públicos garantam esses benefícios. O resultado é uma infraestrutura extravagante e repetitiva, inovação mínima em serviços públicos e um estado geral de administração municipal pouco inteligente.

Centro de Operações da Prefeitura do Rio. Smart City.
Centro de Operações da Prefeitura do Rio. (Imagem: EmbarqBrasil/Flickr)

Por todo o foco em soluções centralizadas, no entanto, muito da conversa se esvaiu da verdadeira revolução urbana que está em curso. Na verdade, é provável que esteja acontecendo agora mesmo em seu bolso. Possibilitada pela plataforma oferecida pelos smartphones, um crescente ecossistema de aplicativos está solucionando problemas urbanos maiores enquanto conversamos. Não encontra um táxi? Há diversos aplicativos para isso. Não tem certeza do melhor caminho? Mesma história, e vão levar em conta até mesmo as condições de trânsito em tempo real. Tentando conhecer novas pessoas em sua comunidade? A real pergunta é: você prefere convidar alguém para sair ou conhecer um grupo de entusiastas de Star Wars? Esses dois propósitos requerem aplicativos separados — por enquanto — mas ambos estão lá.

Ao combinar a instituição aberta de um mercado de aplicativos com a tecnologia dos smartphones, aplicativos permitem que soluções para os problemas urbanos se desenvolvam de baixo-para-cima. Ao invés de fluírem de prefeituras empoeiradas e escritórios corporativos desconfortavelmente limpos, a verdadeira revolução Smart City até agora surgiu dos esforços de milhões de desenvolvedores de aplicativos e usuários trabalhando juntos num ambiente amplamente livre e voluntário. Entender como isso acontece pode revelar como governos urbanos podem ser trazidos ao processo de criação de Smart Cities.

Aplicativos têm solucionado tantos problemas urbanos pois seus desenvolvedores operam num mercado. Como em qualquer mercado em funcionamento, usuários têm suas necessidades e desenvolvedores se coçam para resolver estes problemas, seja para ganhar algum dinheiro ou adquirir uma reputação. Desenvolvedores de software têm incentivos fortes e imediatos para produzir respostas úteis a problemas comuns — nomeadamente, lucro e perdas. Quando um desenvolvedor chega a um modo inteligente de, por exemplo, identificar os melhores restaurantes em sua vizinhança, criam um valor para os moradores e imediatamente recebe os benefícios de oferecer esse novo serviço.

Além dos incentivos, o setor público carece de outro componente importante do mercado de apps: tentativa e erro. Os primeiros aplicativos a permitir troca de informações em tempo real entre moradores urbanos não foram Facebook e Twitter. Ao contrário, estes emergiram triunfantes de uma série de experimentos falhos ou ainda em andamento para conectar pessoas, desde o Friendster ao SixDegrees. Mesmo assim, apesar da dominância de alguns apps, os maiores como Facebook e Twitter ainda competem num mercado dinâmico de novas e emergentes redes sociais que oferecem novos serviços aos usuários. Aplicativos como Instagram e Snapchat surgiram da hipótese que usuários preferiam compartilhar fotos ao invés de textos. Apps como WhatsApp e Line revolucionaram as mensagens de texto ao oferecer ajustes finos ao velho sistema de SMS. Ao permitir a tentativa e erro, o mercado de apps permite não apenas a inovação constante, mas também respostas em tempo real para as diversas necessidades de cidadãos conectados.

Quando alguns tipos de incentivo são encontrados no governo, os serviços oferecidos ainda são, por sua própria natureza, monopolísticos. Vamos dizer que você perca um documento: se tiver sorte, haverá várias centrais de atendimento públicas espalhadas pela cidade, mas a mesma burocracia permeia todas elas. Como em qualquer monopólio, tais centrais são tipicamente ineficientes, oferecendo serviços tão ruins que são imediatamente associadas a uma burocracia frustrada. Dada a falta de competição e experimentação, há poucas chances dessas centrais aumentarem a qualidade ou a eficiência de seus serviços de forma substancial.

Mesmo em serviços aparentemente diretos, como comunicar informações sobre títulos ou audiências públicas, monopólios públicos continuam atuando de forma insatisfatória. A evidência desse problema é revelada quando se tenta concluir mesmo a tarefa mais rudimentar, como requisitar documentos em um cartório. Sem um mercado aberto no qual os oferecedores do serviço podem competir e inovar, os serviços oferecidos pelo poder público inevitavelmente fracassam.


Ao invés de oferecer serviços específicos presenciais, governos municipais poderiam se abrir e padronizar seus dados de modo a permitir um dinâmico mercado de aplicativos que ofereçam serviços públicos.


Uma possível solução Smart City emergente para esse tipo de problema discutida em detalhe por Samuel Hammond vem na forma do “governo como uma plataforma”. Ao invés de oferecer serviços específicos presenciais, governos municipais poderiam se abrir e padronizar seus dados de modo a permitir um dinâmico mercado de aplicativos que ofereçam serviços públicos. Ao prover desenvolvedores com Interfaces de Programação de Aplicação (APIs), governos poderiam permitir que inovadores com os incentivos certos tentem novas formas de oferecer serviços aos residentes urbanos. Não tem certeza de quais escolas públicas seus filhos podem entrar? Há três aplicativos para isso. Precisa de informações precisas sobre como conseguir as permissões necessárias para abrir seu negócio? Procure em qualquer aplicativo de zoneamento que funcione para sua cidade. Como o smartphone funciona como uma plataforma para um mercado de aplicativos que provê serviços, governos locais poderiam funcionar como uma plataforma para empreendedores competirem na resolução de questões urbanas.

Não há necessidade de utopia tecnológica: a Smart City está sendo construída de baixo para cima, por meio de esforços descentralizados de desenvolvedores de aplicativos e usuários. Nos últimos 10 anos vimos a vida urbana se transformar em múltiplas maneiras. Os próximos 10 anos podem ser tão transformativos quanto, com algumas mudanças de políticas que já deveriam ter sido feitas. Onde mercados de aplicativos — especificamente na forma de economia compartilhada — se contorcem diante de regulações antiquadas, governos locais deveriam adotar inovações sem necessidade de permissões e desenvolver regras mais inteligentes para garantir a segurança pública. Onde o setor público ainda cumpre um papel importante, deve aprender do sucesso dos mercados de aplicativos. Ao fazer a transição de provedor de serviços para provedor de plataformas, governos locais poderiam potencialmente desencadear as energias criativas para que milhões de residentes urbanos desenvolvam soluções para os desafios locais.

As cidades estão crescendo, e na medida em que crescem, precisam adquirir a capacidade de se adaptar e inovar ao oferecer serviços aos moradores. Entre agora e 2050, 2,5 bilhões de novos habitantes se mudarão para cidades. Se já estamos nos esforçando para resolver problemas básicos como congestionamentos e saúde pública, é improvável que venha a ficar mais fácil. As cidades certamente precisarão integrar tecnologias emergentes em seus planos de cima-para-baixo; taxas de congestionamento e extinguir o uso do papel se destacam como questões já atrasadas. Ainda assim, essas inovações de cima-para-baixo devem ser complementadas por uma mudança institucional que permita a inovação de baixo-para-cima. Ao olhar atentamente ao que permitiu que mercados de apps transformassem a vida urbana, oficiais públicos podem fazer as mudanças necessárias para garantir a contínua melhora da qualidade de vida urbana. A “cidade burra” está morrendo. A questão agora é: o poder público permitirá que a Smart City emerja em seu lugar?

Este artigo foi originalmente publicado no site Market Urbanism em 10 de janeiro de 2016. Foi traduzido por Lucas Magalhães, revisado por Anthony Ling e publicado neste site com a autorização do autor.

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