A realidade do direito e o direito da realidade: o direito à laje
Imagem: Fabian.Kron/Flickr

A realidade do direito e o direito da realidade: o direito à laje

O Governo Federal sancionou a lei 13.465, em 2017, que regulariza o uso de lajes em propriedades urbanas. Mas será que é suficiente?

26 de janeiro de 2018

Temos uma noção vaga do que é uma laje. Sabemos como ela se parece — construída sob vigas ou pilares que dividem um pavimento de outro, ela costuma abrigar novas construções, como novos cômodos de uma casa. Para além de possíveis definições técnicas, sabemos que elas existem. Ela é, afinal, parte integrante dos imóveis de milhares de brasileiros.

Por outro lado, do ponto de vista jurídico, a nossa legislação não adota uma definição técnica sobre o que seria a laje. Na “Lei do Direito à Laje”, o “direito de laje” foi adicionado ao rol de direitos reais do Código Civil, mas sem que, para isso, tivesse sido feita uma definição própria dela. O professor de direito Flavio Tartuce descreve “direito de laje” como “direito real sobre a unidade imobiliária autônoma erigida sobre a propriedade de outrem”. É uma perspectiva possível.

Porém, antes mesmos de entendermos a própria definição legal do que seria o “direito de laje”, devemos primeiro entender o que a legislação brasileira diz sobre limitações ao uso da propriedade. O artigo 1229 do Código Civil cria limites para o uso de uma propriedade. Tais limites são citados como “úteis ao seu exercício”. Significa que um proprietário pode, sim, construir um imóvel sobre o seu, mas precisa fazê-lo de maneira que ele possa utilizar essa área.

Dito isso, já podemos compreender como o “direito de laje” poderá ser exercido na prática. Outro artigo do Código Civil declara que “o proprietário de uma construção-base poderá ceder a superfície superior ou inferior de sua construção a fim de que o titular da laje mantenha unidade distinta daquela originalmente construída sobre o solo.”

Imagine, então uma casa, construída por Dona Maria. A legislação atual não permite que dona Maria construa nada além dos limites “úteis ao seu exercício”, como já vimos. Por outro lado, a mesma lei permite a dona Maria exercer seus direitos de construção ou transmissão a terceiros. Na prática, essa limitação da propriedade permite que o proprietário da laje tenha os mesmos direitos do proprietário do imóvel “original”, mas de forma autônoma.

Por que devemos pensar em um direito de laje? (Imagem: Julio Cesar Leite)

Inclusive, sobre autonomia, a ideia de “unidade distinta” também merece ser melhor explicada. Voltamos ao exemplo anterior: imagine agora que dona Maria construiu um imóvel acima do seu, usando, portanto, sua laje para isso, e vendeu a nova construção para sua vizinha, Lurdes. Dona Lurdes possui, agora, autonomia em relação ao proprietário do piso inferior (a Dona Maria), mas essa independência precisa ser também física. Ou seja: o portão que dá acesso à casa de Dona Maria precisa ser diferente do portão que dá acesso à casa de dona Lurdes.

Seguindo esse raciocínio podemos dizer que a legislação permite até mesmo a ideia mais refinada de “tripartição da propriedade”. Neste caso, o direito de laje agrupa três outros conceitos: a propriedade do solo (o chão em que o imóvel está firmado, com seus fundamentos, encanamento e esgotamento), propriedade da superfície (a própria casa de Dona Maria, no exemplo anterior) e propriedade de subrelevação (a nova propriedade de Dona Lurdes), abrindo margem para interpretações sobre como seria a transferência da laje caso não haja essa separação física entre as propriedades. De todo modo, nos parece claro que a emergência do direito de laje e sua legitimidade formam um exemplo de como o Estado não é (e nem pode ser) a fonte única de direito.

Segundo a exposição de motivos da medida provisória convertida na lei 13.465 de 2017, o poder público tem a necessidade de promover a “regularização fundiária de favelas”. De fato, a regularização fundiária de comunidades e outros agrupamentos urbanos é uma meta perseguida pelos poderes públicos desde a Constituição de 1988, passando pelo “Estatuto das Cidades” até do recentíssimo programa “Minha Casa, Minha Vida”.


De todo modo, nos parece claro que a emergência do direito de laje e sua legitimidade formam um exemplo de como o Estado não é (e nem pode ser) a fonte única de direito.


A história do Brasil, inclusive, está repleta de programas de “regularização fundiária”, a maioria deles, infelizmente, mais a serviço do higienismo social do que da real melhora da qualidade de vida das pessoas. Neste texto de autoria de Anthony Ling podemos perceber que os moradores das comunidades são cidadãos com suas particularidades. Nessas comunidades, os moradores têm seus sonhos de construir e empreender, e nutrem seus desejos de crescimento pessoal e profissional. Eles são, enfim, donos de suas próprias histórias. As lajes, enquanto desdobramentos imobiliários comuns nessas comunidades, são parte chave de um mercado em franco crescimento, mas ainda inibido pela zona cinzenta deixada pela regulação.

Desse modo, a hipótese de um direito de laje serve como garantia do direito de uso de uma propriedade construída pelas pessoas e que poderá ser comercializada, uma vez que tiver sua legitimidade reconhecida. Entretanto, a realidade impõe vários problemas, pela incerteza das consequências práticas dessa lei.

À sombra da lei: o caos e ocaso dos direitos de propriedade. (Imagem: Cazesawaya)

Para além desse possível novo “marco” na legislação, uma série de perguntas podem ser feitas. Sabemos que, por força de lei, o proprietário de um imóvel é aquele registrado como titular no Cartório de Registro de Imóveis. Como ficarão, então, os imóveis sem a certeza de um proprietário “nos termos da lei”? Não poderão ter suas lajes cedidas? Não serão regularizados? E como ficará a situação quando não há divisão clara, e sim um espaço comum compartilhado entre vizinhos?

Hernando de Soto, economista peruano conhecido por seu trabalho em economia informal, aponta o confuso sistema de propriedade privada de países em desenvolvimento — em que não há registro ou mapeamento das próprias propriedades — como um dos principais motivos pelo caos dos direitos de propriedade. Na Indonésia, como Soto mesmo nos conta, é o latido dos cachorros que separam uma propriedade da outra.

O resultado da criação de uma legislação que não define exatamente o que ela protegerá, mesmo visando tornar a vida das pessoas melhor, pode acabar implicando em uma piora das condições dessas mesmas pessoas. Não são raros os exemplos de que leis sancionadas com boas intenções com textos para lá de obscuros que causam mais embaraço e, por conseguinte, piora na qualidade de vida das pessoas por conta de seu custo direto no bolso, além dos próprios valores faraônicos da formalização dessas propriedades.


O resultado da criação de uma legislação que não define exatamente o que ela protegerá, mesmo visando tornar a vida das pessoas melhor, pode acabar implicando em uma piora das condições dessas mesmas pessoas.


O legislador deixa de observar a vida prática dos moradores de centros urbanos — aqueles que realmente desejam efetivar a construção e venda de suas lajes. O resultado? Eles vão continuar fazendo exatamente isso, da maneira como o faziam antes: na penumbra.

Devemos reconhecer a importância da laje e dos direitos que o proprietário dela possui. Do mesmo modo, temos que reconhecer a existência de tal direito, até mesmo na prática, sendo exercido por milhares de moradores em diferentes comunidades pelo país — antes mesmo do advento da lei já sancionada. Contudo, as medidas a serem adotadas não podem significar uma piora na qualidade de vida dos proprietários e moradores desses espaços, sobretudo porque, como todos nós, foi ali que eles escolheram florescer uma vida de esperança.

Robert George Otoni de Melo é advogado formado em direito pela PUC-SP. Seu texto, apresentado nesta página, ficou em 4º lugar no Concurso de Artigos do Caos Planejado.

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