Por que o uso do transporte público em Curitiba ainda é tão baixo?
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
A complexidade do funcionamento dos mercados de imóveis em São Paulo contrasta com a fragilidade das narrativas difundidas, permeadas de equívocos e generalizações.
23 de janeiro de 2020Desde o ano passado vem sendo veiculadas reportagens com denúncias relativas a presença do “crime organizado” — e particularmente do Primeiro Comando da Capital (PCC) — na produção e controle de loteamentos irregulares nas periferias da Região Metropolitana de São Paulo, especialmente em áreas de proteção ambiental. A estas se somaram inquéritos e prisões, que desde o incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida no centro de São Paulo também construíram a narrativa de que ocupações são uma nova fonte de recursos do “crime organizado”.
A complexidade do funcionamento dos mercados de imóveis em São Paulo contrasta com a fragilidade das narrativas difundidas, permeadas de equívocos e generalizações. A começar por apresentar um fenômeno — a existência de mercados “paralelos” de moradia em São Paulo — sem mencionar a causa fundamental — os processos de banimento e negação de direitos a que foram e são submetidas indivíduos e famílias que, sem acesso à políticas habitacionais ou reconhecimento dos vínculos com o território que ocupam, alimentam historicamente mercados fora das normas, nas fronteiras entre o legal e o ilegal.
Para começar, a prática de abertura de loteamentos irregulares, clandestinos ou ilegais, não é nenhuma novidade na metrópole paulistana. Pelo contrário: a ocupação extensiva e acelerada sobre glebas rurais ou ambientalmente protegidas com restrições ao loteamento nos extremos da mancha urbana são a forma histórica como se deu o processo de urbanização da metrópole há pelo menos meio século. Este mercado imobiliário “fora das normas”, extremamente dinâmico, foi capaz não só de gerar prosperidade e riqueza para os agentes envolvidos, como também sempre se desenvolveu em diálogo com agentes do Estado, principalmente através do poder público local, seja via administrações regionais ou subprefeituras, seja via mandatos parlamentares. A exploração deste negócio — econômico mas também político-eleitoral — é inclusive uma das bases da atual configuração política da metrópole onde verdadeiras dinastias controlam o território e, consequentemente, a política.
O mapa abaixo ilustra essa realidade na capital em 2016. Dados oficiais da prefeitura identificavam na época quase 2 mil loteamentos irregulares, com aproximadamente 390 mil lotes estimados pela Secretaria Municipal de Habitação. O panorama dos demais municípios da Região Metropolitana não é diferente; entretanto, não existem dados abertos que identifiquem e quantifiquem o fenômeno na escala da metrópole.
Se a existência de um mercado imobiliário paralelo pujante não é nenhuma novidade, seria o emprego da violência — identificado de forma simplista com o crime organizado — o elemento novo? A década de 1990 é reconhecida pelo aumento crescente da violência nos territórios populares. “Chefões’, “xerifes”, “valentões”, “justiceiros” não são apenas denominações ligadas a personagens do mundo do crime mas à expansão de um repertório e de uma linguagem de mediação e organização social que foi ganhando novos contornos, envolvendo tanto policiais quanto não policiais no exercício da manutenção de uma nova ordem nas periferias. A presença do PCC neste processo é, sem dúvida, central. Como apontado por uma literatura já produzida sobre esta organização, é fundamental compreender sua especificidade: com estrutura descentralizada, opera como uma sociedade secreta — até comparada por parte de alguns estudos à maçonaria — em que os “irmãos” possuem certa autonomia em seus negócios particulares, ou “corres”. Parte destes negócios é o que se denominou nas últimas décadas de “empreendedorismo popular”; em função da reestruturação produtiva e do esgotamento da forma assalariada como modo de inserção e de integração dos “trabalhadores”, são práticas que se valem da expansão dos mercados (legais e ilegais) populares, em arranjos que se somam e se embaralham ao trabalho precário, formas locais de sobrevivência e práticas ilícitas.
Isso quer dizer que é preciso ser mais cauteloso antes de afirmar que, se existem indivíduos com ligações com o PCC em loteamentos irregulares ou ocupações, então os recursos provenientes das transações imobiliárias estão sendo centralizados pela facção como uma nova frente de extração de renda. Por isso, antes de afirmar categoricamente que a facção controla o mercado ilegal da terra, é urgente entender os contornos dos atuais conflitos fundiários e a violência estrutural nos territórios populares — inclusive a violência praticada pelo Estado — com e sem PCC.
A consequência de narrativas que reduzem e achatam processos tão variados, ignorando a própria história da produção do espaço urbano da RMSP, fortalece e legitima o discurso que classifica toda e qualquer forma de existência na cidade que não é a propriedade privada individual registrada como “criminosa” — o que tem valido tanto para aquelas praticadas pelas maiorias silenciosas quanto para as promovidas por movimentos sociais organizados como estratégia de sobrevivência e acolhimento dos banidos, mas também como ato político. Ademais, a divulgação destas narrativas também contribui para a manutenção de um enorme silêncio sobre a perpetuação e perversidade das relações de poder na metrópole, que dependeram e continuam dependendo da expansão deste modelo.
Finalmente, como já afirmamos no início deste texto, o que é possível afirmar com certeza é que, se até hoje há um intenso mercado imobiliário popular onde atuam agentes variados, inclusive estatais, permeado por atos e transações ilegais e cada vez mais pela violência, é porque o Estado falha na promoção de um modelo de cidade que responda às necessidades da população. Para que seja possível atuar de forma efetiva no combate à práticas criminosas e violentas na produção e gestão dos espaços da cidade, é preciso que se compreenda suas causas, a trama e atores envolvidos, as diferentes formas que assumem e as dinâmicas urbanas que são engendradas em toda sua complexidade. Inventar culpados, como sempre, ajuda a construir a cortina de fumaça para manter tudo como está.
Artigo publicado originalmente no LabCidade em 15 de janeiro de 2020.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarConhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
O projeto Re-ciclo tem ajudado a melhorar a coleta seletiva de lixo e a rotina dos catadores na capital cearense.
Confira nossa conversa com Samira Elias e Rodrigo Fantinel sobre espraiamento, densidade e custos de infraestrutura.
A pedestrianização pode trazer benefícios econômicos, sociais e urbanos, como comprovam exemplos de sucesso em diferentes cidades.
Além de gerarem sombras e melhorarem a qualidade do ar, as árvores também podem contribuir para ruas mais duráveis, custos de energia mais baixos e redução do risco de enchentes.
Manter grande parte dos imóveis as margens do mercado “regular” é vantagem na hora de precificar com sobrepreço os imóveis ditos “regulares” e de quebra tirar grande rentabilidade as custas disso entre as pessoas com maior capacidade financeira.
Muitas vezes, os planos diretores tem justo esse direcionamento.