Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Em “Arbitrary Lines: How Zoning Broke the American City and How to Fix It”, Nolan Gray aponta os efeitos nocivos do zoneamento e oferece alternativas práticas para a sua superação.
5 de janeiro de 2023O zoneamento é a principal técnica de regulação urbanística adotada no mundo. Ele consiste na divisão do território urbano em um conjunto de zonas, fixando-se para cada uma os usos permitidos e os índices que definem parâmetros para as edificações que poderão ser construídas em cada lote. Em tese, são dois os objetivos buscados pelo zoneamento: evitar incômodos gerados por determinadas utilizações e limitar as densidades de ocupação à capacidade de suporte da infraestrutura existente.
Em Arbitrary Lines: How Zoning Broke the American City and How to Fix It (Linhas arbitrárias: Como o zoneamento quebrou a cidade americana e como corrigi-lo), obra lançada este ano e ainda não traduzida no Brasil, o urbanista M. Nolan Gray argumenta que tais objetivos nunca foram a real motivação do zoneamento em seu país.
Na prática, ele seria, essencialmente, uma técnica empregada pelas elites residentes em bairros privilegiados para manter elevados os preços de seus imóveis e segregar para áreas distantes os pobres e os afrodescendentes.
O livro, contudo, não se limita a fazer um diagnóstico do problema — ele também propõe saídas. Para tanto, Gray — afiliado ao Mercatus Center, da Universidade George Mason, e colaborador do blog Market Urbanis, que promove soluções “de baixo para cima” para as questões urbanas — estruturou seu estudo em três partes.
A primeira apresenta as origens do zoneamento e descreve seu funcionamento na prática; a segunda explora os efeitos nocivos que ele traz para a sociedade; e a terceira sugere caminhos que podem ser adotados para superar os problemas apontados.
O zoneamento completo de uma cidade norte-americana teve início no ano de 1916 em Berkeley e Nova York. A partir daí, espalhou-se devido a três medidas fundamentais. Na década de 1920, o governo dos Estados Unidos elaborou um modelo de legislação estadual autorizadora do zoneamento municipal. Até hoje, não existe uma legislação urbanística federal no país; são os estados que legislam a respeito.
Além disso, os municípios só podem fazer o que for autorizado pela legislação estadual. A Suprema Corte também teve um papel fundamental, ao confirmar a constitucionalidade do zoneamento em face do direito de propriedade no caso conhecido como Euclid v. Ambler de 1926.
Por fim, o zoneamento foi definido como condicionalidade para o recebimento de financiamentos federais nas áreas de transportes, habitação e defesa civil ao longo do século XX.
O paradigma básico do zoneamento é a casa isolada no lote, para residência de uma única família. Esse seria o uso nobre por excelência, a ser protegido não apenas de incômodos causados pela utilização destinada a fins industriais e comerciais como também de prédios residenciais multifamiliares, combatidos pelos proprietários tanto por aumentar a oferta (reduzindo, em consequência, os preços dos imóveis) quanto por abrigar população de menor renda.
Ao descrever o funcionamento do sistema, Gray chama atenção para o fato de que são cada vez mais comuns as situações que exigem algum tipo de análise discricionária do projeto, impedindo, assim, um licenciamento automático das edificações. Com isso, estaria comprometida a segurança jurídica, que sempre foi considerada uma das vantagens do zoneamento. Afora isso, a ausência de padronização resultaria em uma miríade de tipos de zonas e normas municipais, de difícil compreensão para o cidadão.
Depois de descrever as origens do zoneamento e seu funcionamento nos dias de hoje, Gray apresenta suas consequências danosas: encarecimento da moradia, contenção do desenvolvimento econômico, segregação e espraiamento.
O encarecimento da moradia resulta diretamente da restrição à oferta, decorrente de índices urbanísticos excessivamente restritivos.
A contenção do desenvolvimento é um efeito macroeconômico, provocado pelo custo da habitação. Com os preços de moradia muito altos, a migração de pessoas para os centros urbanos mais produtivos se reduz, prejudicando não somente os migrantes em si, como também a economia de um modo geral. Em razão do zoneamento, o que estaria acontecendo seria justamente a migração para cidades mais estagnadas economicamente.
A segregação — social e racial — seria não apenas um efeito indireto do zoneamento: resultaria de uma intenção das elites locais, mediante a adoção de padrões que impedem a construção de habitações populares na proximidade das áreas nobres da cidade.
Por fim, o espraiamento seria a consequência inevitável de uma regulação que impede a verticalização nas áreas já urbanizadas.
Gray apresenta diferentes caminhos para a superação das questões trazidas pelo zoneamento — da reforma à sua completa abolição, solução que ele considera preferível. Segundo o autor de Arbitrary Lines, a liderança desse processo deveria ser dos estados e do governo federal, pois os municípios estariam dominados pelos interesses dos proprietários de imóveis.
A reforma poderia ser iniciada por medidas simples, como o fim da exigência de vagas de garagem, de áreas mínimas de lotes e de recuos. O uso residencial unifamiliar poderia ser universalmente convertido em multifamiliar. Garagens, cômodos e edículas em bairros unifamiliares poderiam ser liberadas para locação independente.
Uma reforma de maior ambição comportaria a adoção de um zoneamento mais simples e com menos segregação de usos. O exemplo destacado por Gray é o do Japão, onde há apenas 12 tipos de zona, tipificadas nacionalmente. Só usos industriais de alto incômodo são segregados para zonas específicas — e mesmo nas zonas mais restritivas é possível construir prédios baixos, casas, comércio local e escritórios.
Mais do que uma reforma, Arbitrary Lines defende a abolição do zoneamento por dois motivos. De um lado, poderiam surgir novas maneiras de os municípios contornarem regras estaduais. De outro, o sistema como um todo seria ineficiente para os objetivos a que se propõe.
Em lugar de segregar usos, o autor propõe uma regulação específica de cada tipo de incômodo, como ruídos, vibrações, poluição e odores, além de um sistema de mediação entre vizinhos com o propósito de encontrar soluções específicas para cada situação.
Para explicar como funcionaria na prática uma cidade sem zoneamento, Gray explora o exemplo de Houston, única metrópole norte-americana que não lança mão do instrumento, que foi rejeitado por sua população em três plebiscitos (realizados nos anos de 1948, 1962 e 1993).
A regulação urbanística de determinados bairros unifamiliares, que cobre 25% da cidade, é promovida por convenções de loteamento, gerenciadas por associações de proprietários, todavia fiscalizadas pela prefeitura. Essas convenções, que podem ser mais restritivas que o zoneamento, são instituídas por um período de 25 a 40 anos, após o que precisam ser reconfirmadas de 10 em 10 anos pelos proprietários.
No resto da cidade, há completa liberdade para as transformações demandadas pelo mercado: uso de vagas de estacionamento para construção, prédios com fachada ativa, substituição de casas isoladas por geminadas, conversão de centros comerciais em escritórios, independentemente de longos processos de licenciamento e consulta pública. O resultado seria uma cidade próspera, diversa, em crescimento e acessível.
Por fim, Gray oferece uma visão do futuro para a prática do urbanismo sem zoneamento, que coincide, em grande medida, com a oferecida por Alain Bertaud em Ordem sem Design, lançado em 2018 e em breve com tradução no Brasil.
Livres da burocracia do zoneamento, os urbanistas poderiam se dedicar a projetar as infraestruturas e os bens públicos que não são adequadamente produzidos pelo mercado: praças, calçadas, sistema viário, dutos subterrâneos etc. Em lugar de planos abrangentes, atualizados periodicamente (como os nossos planos diretores), ele propõe um monitoramento permanente de indicadores demográficos, econômicos e ambientais.
Para reduzir a segregação, sugere subsidiar a construção de moradia para populações de baixa renda nos bairros mais equipados e próximos aos empregos e apoiar a gestão de habitação social por fundações (community land trusts).
Embora Arbitrary Lines tenha por foco apenas a realidade norte-americana, os paralelos com a prática brasileira são enormes. O zoneamento nacional também se vale de índices urbanísticos e categorias de usos semelhantes; não é padronizado; tem perdido segurança jurídica pela sobreposição de estudos de impacto; é incompreensível para o leigo e tende a ser dominado por interesses “nimby” (“not in my backyard“) de bairros de elite.
No entanto, a rigidez do zoneamento praticado no Brasil é maior, pois não contamos com “válvulas de escape” como as variâncias e os rezoneamentos norte-americanos, pelos quais se altera pontualmente a legislação original, por solicitação de empreendedores, em troca de contrapartidas específicas.
Um elemento que aproxima muito os dois países e que não se encontra presente na Europa e na Ásia, é o emprego abrangente do uso exclusivamente residencial unifamiliar — os bairros de casas isoladas, em lotes grandes, onde não há qualquer comércio próximo e cujo único meio de transporte é o automóvel.
Aqui também o zoneamento, sob pressão dos proprietários na política local, impede o adensamento desses bairros, que contam com muita infraestrutura ociosa, contribuindo para o encarecimento das moradias e para o espraiamento urbano. No Brasil, soma-se a isso a informalidade, decorrente tanto da pobreza quanto da tolerância com relação à ocupação irregular do solo.
Particularmente relevantes para a realidade brasileira são as sugestões de Gray para a reforma ou abolição do zoneamento. A inclusão dessa temática nas esferas estadual e federal, mediante padronização de tipologias de zonas e adoção de normas pró-adensamento, é um movimento recente nos Estados Unidos, que pode inspirar iniciativas semelhantes por aqui.
A citada substituição do zoneamento de usos por regras de desempenho relativas a cada tipo de incômodo — poluição, ruído, vibração, tráfego etc. — também parece um caminho a ser seguido. Os mencionados exemplos do Japão e de Houston permitem uma compreensão prática do que seriam modelos alternativos ao sistema padrão que conhecemos.
Como prática consolidada na administração pública e na academia, o zoneamento certamente estará conosco por muitas décadas. Apesar disso, seus efeitos colaterais adversos, combinados com uma baixa eficiência no alcance dos fins a que se propõe, reclamam reformas aptas a simplificar e flexibilizar suas regras. Arbitrary Lines oferece uma contribuição inestimável para esse desafio, que merece ser conhecida por todos os que se interessam pela construção de cidades mais inclusivas, acessíveis e diversificadas.
Publicado originalmente em Insper em dezembro de 2022.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarAs mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Com o objetivo de impulsionar a revitalização do centro, o governo de São Paulo anunciou a transferência da sua sede do Morumbi para Campos Elíseos. Apesar de ter pontos positivos, a ideia apresenta equívocos.
Confira nossa conversa com Diogo Lemos sobre segurança viária e motocicletas.
Ricky Ribeiro, fundador do Mobilize Brasil, descreve sua aventura para percorrer 1 km e chegar até a seção eleitoral: postes, falta de rampas, calçadas estreitas, entulhos...
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
No programa Street for Kids, várias cidades ao redor do mundo implementaram projetos de intervenção para tornar ruas mais seguras e convidativas para as crianças.
Algumas medidas que têm como objetivo a “proteção” do pedestre na verdade desincentivam esse modal e o torna mais hostil na cidade.
A Roma Antiga já possuía maneiras de combater o efeito de ilha de calor urbana. Com a mudança climática elevando as temperaturas globais, será que urbanistas podem aplicar alguma dessas lições às cidades hoje?
Joinville tem se destacado, há décadas, por um alto uso das bicicletas nos deslocamentos da população.
Ótimo artigo! Totalmente de acordo com o diagnóstico e com as propostas apresentadas. Parabéns!