Transformando cidades em dados
O sensor LIDAR, o mapeamento de comunidades informais e as possibilidades dos dados estruturados no projeto Favelas 4D.
Os governos municipais deveriam atuar como uma empresa que gerencia uma plataforma.
11 de setembro de 2025Existe uma máxima conservadora antiga de que o governo deveria ser administrado como uma empresa. No caso dos governos municipais, acredito que isso é verdade — mas não da forma como você imagina.
Explorar os moradores em cada pequeno serviço, cobrar taxas exorbitantes por licenças e vistorias ou imaginar absurdos como fazer as pessoas pagarem ingresso para entrar em parques públicos é ruim. É ruim porque ninguém quer que a sensação de pagar US$ 30 por um algodão-doce na Disney se torne parte da vida cotidiana. Também é ruim porque é uma forma ineficaz de recuperar o valor muito real que os governos municipais criam para seus residentes.
Antes de falarmos sobre melhores maneiras de financiar tudo o que queremos que os municípios façam, precisamos discutir como eles criam valor e onde esse valor de fato aparece.
Leia mais: Como destravar recursos para cidades brasileiras
Para entender o “modelo de negócio” adequado para uma cidade, podemos observar como funcionam os serviços de plataforma já existentes. Empresas como YouTube, TikTok e Substack criam infraestrutura que conecta pessoas. Elas facilitam interações entre usuários, e suas redes se tornam mais valiosas à medida que a base de usuários cresce. No ramo da tecnologia, chamamos isso de “efeitos de rede”, mas é a mesma lógica dos ganhos de aglomeração aos quais os economistas se referem no caso das cidades.
Os governos municipais cumprem um papel muito semelhante.
Municípios oferecem serviços (polícia, bombeiros, saneamento) e infraestrutura (ruas, parques, transporte) que viabilizam a vida urbana. Eles não criam diretamente o crescimento econômico que observamos em cidades de alta produtividade (a prefeitura de Nova York não administra a indústria financeira, por exemplo), mas fornecem a base necessária para que as economias locais funcionem e cresçam.
Os governos municipais geram muito valor, e esse valor aparece em um lugar específico e tangível: diretamente debaixo dos nossos pés.
À medida que a economia de uma cidade cresce, torna-se cada vez mais vantajoso viver e fazer negócios ali. Mais pessoas e mais capital entram na cidade, elevando a demanda por espaço. E embora vejamos esse aumento da demanda refletido nos preços dos imóveis em geral, é a terra que está se tornando mais cara.
Lembre-se de que um edifício é como uma geladeira ou uma máquina industrial, acumulando desgaste ao longo do tempo. Não é como o vinho, não se valoriza com a idade. Portanto, quando os preços imobiliários disparam, não é o edifício que está ficando mais valioso, e sim o terreno — que pode representar até 67% do valor total de um imóvel em alguns lugares.
Os governos municipais sustentam os preços da terra de maneira direta e indireta.
Indiretamente, serviços gerais como saneamento ou segurança pública dão um amplo suporte ao crescimento urbano. Os primeiros planejadores urbanos de Nova York deram início à base do que a cidade se tornaria ao desenhar os primeiros lotes e traçar a malha viária inicial. Eles não fizeram a cidade ser o que é hoje de forma direta, mas criaram o alicerce (literalmente) para o que viria depois.
Por outro lado, os governos municipais também podem elevar o valor da terra diretamente, por meio da infraestrutura física.
Pense no transporte de massa. Na Califórnia, o sistema de trens Bay Area Rapid Transit (BART) aumenta os valores dos terrenos ao redor de cada uma de suas estações. Dados históricos mostram que os imóveis localizados a até 800 m de uma estação custam, em média, de 11 a 15% a mais. Esse mesmo conjunto de propriedades também se valorizou 7% mais rápido do que imóveis fora desse raio. Áreas atendidas por estações do BART não apenas valem mais, mas também se valorizam mais rápido que outras localidades em momentos de expansão econômica.
Isso não é uma peculiaridade da Califórnia. O transporte coletivo aumenta o valor imobiliário em lugares que vão de Nova York a Hong Kong a Paris. Isso também não se limita ao transporte: outras amenidades, como parques públicos, têm o mesmo efeito.
Portanto, já estabelecemos que os governos municipais podem criar muito valor, e que os preços da terra são o local onde esse valor aparece. É justamente isso que as cidades deveriam monetizar para financiar os cofres públicos e manter a máquina funcionando.
Há inúmeras razões econômicas para fundamentar as finanças municipais na captura de valores da terra — são tantas, que não vamos conseguir explorar todas aqui. Quero focar em uma justificativa institucional racional para esse “modelo de negócio” baseado na terra.
Quando o governo municipal entende o valor da terra como sua principal fonte de arrecadação, ele passa a agir para aumentá-lo (em vez de apenas extrair parte do que já existe via impostos sobre vendas ou taxas de licenciamento). Cria-se uma lógica político-econômica em que o município internaliza diretamente parte do valor que gera e, assim, se orienta de forma empreendedora para criar ainda mais valor.
Na mesma linha, isso direciona os governos locais para o crescimento. Lembre-se de que os valores da terra são função da atividade econômica — mais pessoas, mais construções e mais comércio resultam em terrenos mais valorizados.
Isso não significa que as cidades só devem agir com base em retorno financeiro direto. Existem muitas responsabilidades que os governos precisam assumir que não geram receita. Por exemplo, abrigos para pessoas em situação de rua ou estações de resfriamento em ondas de calor são usos absolutamente legítimos de recursos públicos, sem a necessidade de justificá-los com base em retorno financeiro.
Dito isso, facilitar o entendimento, por parte dos governos, dos retornos esperados de investimentos também ajuda a reconhecer quando estamos subsidiando funções não geradoras de receita — mas que decidimos, de forma consciente, que são igualmente importantes.
A essa altura, alguns de vocês provavelmente já estão esperando uma conclusão específica. Algo que tenha a ver com taxação do valor da terra.
Pois bem… desculpem.
Isto não é, na verdade, uma longa defesa da taxação do valor da terra. Para quem não conhece, vale a pena se aprofundar no tema (há bastante literatura). Para quem já está familiarizado, minha visão é que a economia política atual do uso do solo é, em geral, hostil à essa medida. O movimento YIMBY (“Yes in My Backyard”, grupo de defensores do adensamento, da flexibilização da legislação e da mistura de usos) vai suavizar essa resistência gradualmente, mas há outras maneiras de resolver essa questão.
Leia mais: É preciso substituir o IPTU por um imposto sobre o valor da terra
Hoje quero difundir a mensagem sobre os benefícios do arrendamento de terras (land leasing).
O que é um arrendamento de terras? É exatamente o que parece: uma cidade concede em arrendamento terrenos de propriedade municipal a um incorporador, que passa a utilizá-los, mas continua pagando ao governo (que, nesse caso, atua como proprietário final).
Do ponto de vista econômico, não há tanta diferença entre arrendamento de terras e taxação do valor da terra. Politicamente, porém, o arrendamento ajuda a contornar o problema inerente à tributação direta dos proprietários: as pessoas têm uma aversão particular a impostos sobre imóveis, o que frequentemente leva a revoltas fiscais.
Além disso, já existem exemplos concretos.
O Battery Park City, em Nova York, é de propriedade e gestão de uma empresa pública de interesse coletivo, a Battery Park City Authority (BPCA). Sem entrar em todos os detalhes institucionais de como a BPCA é estruturada, vale destacar o quanto ela é bem-sucedida financeiramente. Em 2021, gerou US$ 219,7 milhões em receita excedente, dos quais US$ 178,4 milhões foram transferidos para o fundo geral da cidade de Nova York.
Em outros lugares, boa parte desse valor primeiro passaria para as mãos de proprietários privados, que depois brigariam sobre quanto deveriam devolver em impostos. Uma forma de enxergar o arrendamento de terras é que ele elimina (parte) desses intermediários, fazendo com que mais do valor criado pelo poder público volte diretamente aos cofres públicos para reinvestimento. E o Battery Park City não é o único caso.
A Boston Planning and Development Agency (Agência de Planejamento e Desenvolvimento de Boston) financia-se majoritariamente por meio de seu portfólio imobiliário. Acredite ou não, o próprio sistema de trens Bay Area Rapid Transit (BART) vem gradualmente transformando seus estacionamentos de superfície em empreendimentos de uso misto que geram receita. Os governos de Hong Kong e Singapura também utilizam o arrendamento de terras como parte central de suas finanças públicas.
Esse modelo é comum e bem compreendido. E embora tenhamos começado usando a metáfora de plataformas digitais como o YouTube, esse também é o mesmo princípio de funcionamento de um shopping.
Se conseguirmos reconhecer onde e como os municípios de fato criam valor, poderemos imaginar formas melhores de financiar os gastos públicos em grande escala e de maneira contínua.
Embora o arrendamento de terras não seja uma solução mágica — elas simplesmente não existem —, é um bom ponto de partida. Tanto para encher os cofres públicos quanto para fazê-lo de uma forma que incline os governos locais ao crescimento, ao desenvolvimento e a construir uma visão de futuro positiva.
Esse arranjo permitiria que Hong Kong adensasse áreas da cidade que precisam de regeneração. Grandes extensões do território são compostas por habitações baratas construídas nas décadas de 1960 e 1970. Ao permitir que concessionários votem a favor da reurbanização de suas próprias áreas, Hong Kong poderia construir mais moradias com o consentimento de quem já vive ali.
Artigo publicado originalmente em Urban Proxima, em outubro de 2024.
Para saber mais sobre a economia das cidades e estratégias de financiamento para investimentos públicos nas cidades brasileiras, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“.
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