Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Conceito urbanístico nascido no Brasil, o Solo Criado tem, nos dias de hoje, uma cara bem diferente da que os seus criadores imaginavam.
28 de agosto de 2017Conceito urbanístico nascido no Brasil, o Solo Criado é utilizado, nos dias de hoje, para fundamentar três instrumentos urbanísticos presentes no Estatuto das Cidades: a Outorga Onerosa do Direito de Construir (OODC), a Transferência do Direito de Construir (TDC) e as Operações Urbanas Consorciadas (OUC). A história do conceito, no entanto, mostra que aqueles que o desenvolveram tinham outra motivação.
Em sua versão original, o Solo Criado é essencialmente um mecanismo de apoio ao zoneamento para impedir a construção imobiliária. Sua intenção se assemelha muito à do conceito de NIMBY (Not In My Backyard), ou “no meu quintal, não” (em tradução livre), utilizado para tratar de projetos polêmicos que sofrem oposição da população mais diretamente impactada — tanto projetos de grande impacto, como aterros sanitários, plantas de tratamento de esgoto, aeroportos ou outros terminais de transporte, quanto intervenções menos robustas, como o caso da população da região dos Jardins, em São Paulo, que se opôs à mudança de zoneamento que permitiria alguns usos comerciais em meio a uma zona residencial.
O principal problema identificado por aqueles que propuseram o conceito — reunidos, à época, em torno do GEGRAN, Grupo Executivo da Grande São Paulo — era desenvolver um instrumento urbano que restabelecesse o equilíbrio entre as áreas construídas e os espaços públicos, após a possibilidade tecnológica de intensificação do uso do solo. O zoneamento, na avaliação desses profissionais, não só havia apenas falhado em seu intuito, como também havia criado problemas adicionais que precisavam ser resolvidos.
As consequências entendidas pelo grupo eram as seguintes: sempre que o coeficiente de aproveitamento de um terreno sobe, mais pessoas podem se instalar e, consequentemente, maior será a demanda por espaços públicos e viário. Há ainda o efeito sobre os preços dos terrenos — diferentes parâmetros de zoneamento influenciam diferentes preços nos terrenos, e, como essa definição ocorre politicamente, terrenos antes valorizados podem ter seu preço reduzido por imposições legais. Por último, o estabelecimento das zonas urbanas e seus parâmetros têm grande dose de arbitrariedade e podem ser redefinidas politicamente. Todos esses elementos levam a uma pressão para sobre os agentes públicos para modificarem os parâmetros urbanísticos, cujos impactos não podem ser previamente identificados e resolvidos. Dessa problemática, surgiu o conceito de Solo Criado.
Tecnicamente, Solo Criado era entendido como toda área construída não apoiada diretamente sobre a superfície do terreno, fosse ela em pavimentos superiores ou subterrâneos. Devido às dificuldades em avaliar as construções individualmente, a proposta do instrumento partiu para uma definição legal: Solo Criado seria a área construída acima de um coeficiente, entendido nos debates do grupo como uma vez a área do terreno. Apesar de ser arbitrário, o valor de 1 (área construída igual à área do terreno) foi defendido como o mais razoável. O intuito do Solo Criado era, como descreveu Azevedo Netto em seu artigo Experiências Similares ao Solo Criado, “em última análise […], ampliar as áreas públicas de uma forma compatível com o espaço construído”. A aplicação do Solo Criado, longe da atual aquisição monetária de potencial construtivo, deveria ser realizada apenas via transferência do mesmo. A ideia, a princípio, era que todo o território possuísse o mesmo potencial construtivo: 1. Isso acabaria com a diferença artificial de preços dos terrenos, consequente do zoneamento, e manteria a proporcionalidade entre áreas públicas e construídas. A separação entre a propriedade do terreno e o direito de construir, que passaria a ser de propriedade coletiva, permitiria às as transferências de potencial.
Havia, nas propostas iniciais, algumas formas de fazer a transferência de direitos de construir entre proprietários de terrenos. Os proprietários de terreno que desejassem intensificar o uso do solo deveriam comprar terrenos em similares condições àqueles a serem utilizados para doar ao município como área verde ou pública. Haveria, também, a possibilidade de aquisição de potencial de outros terrenos que, assim, perderiam seu potencial construtivo. Desse modo, o potencial construtivo desses terrenos poderia ser transferido ao terreno a ser edificado. O município, por sua vez, não teria um estoque ilimitado de potencial construtivo a ser vendido, apenas aquele que possuísse na forma de áreas verdes ou públicas, tanto aquelas doadas pelos particulares, quanto das áreas compradas com os recursos pagos pelo Solo Criado. Só era possível a transferência ou a venda daquele potencial pertencente a áreas públicas, garantindo que elas continuassem abertas (praças, parques, reservas florestais, ruas etc).
Se aplicado e respeitado em sua integralidade, a área construída média seria igual ou inferior à área urbana — ou seja, a densidade construída máxima seria igual a 1. Só a transferência de potencial seria permitida, mesmo aquela adquirida do município que deveria, obrigatoriamente, possuir áreas verdes e abertas cujo potencial pudesse ser aproveitado em outros terrenos. Para existir densidade de edificações, grande estoque de terrenos com ocupação inferior ao coeficiente básico deveria ser preservado. Na prática, no entanto, a aplicação do conceito inviabilizaria qualquer tentativa de densificação; por um lado, existem as dificuldades em encontrar terrenos semelhantes na região para doar ao município, por outro, mesmo se terrenos fossem encontrados, por que as próprias construtoras não os utilizariam até o limite possível em cada terreno, sem transferir o potencial para apenas um dos terrenos?
Além da correção de alguns efeitos prejudiciais do zoneamento, o que deixa ainda mais claro o intuito de impedir o crescimento populacional em algumas regiões via Solo Criado é uma passagem de parte do GEGRAN:
Ainda que a situação ideal fosse a fixação do coeficiente único para todo o país, ou para toda uma região metropolitana, mesmo que fosse aplicado num município apenas (e nada impede isso), a maior consequência provavelmente é que os empreendedores imobiliários seriam atraídos para municípios vizinhos que não tivessem adotado o uso do coeficiente único. Contudo, numa área em que se procura conter o crescimento urbano como São Paulo, por exemplo, isso seria até vantajoso, pois o que se pretende é conter o crescimento. No caso de a solução abranger todo o país, estes inconvenientes desapareceriam e as diferenças de coeficientes deixariam de ser elemento determinante nas tendências de crescimento urbano.
Com o argumento da proporcionalidade entre áreas privadas e públicas, da capacidade de suporte da infraestrutura urbana e da incapacidade do zoneamento, como instrumento urbanístico, de alcançar esses objetivos, o Solo Criado, como uma imposição ainda mais drástica à construção, buscou limitar o crescimento urbano, sobretudo no município de São Paulo. Paradoxalmente, após estabelecido o conceito de Solo Criado, a “criação de solo” como resultado da densificação construída em uma região seria proibida.
Com o conhecimento, em 1975, da legislação francesa que permitia a venda de direito de construção sem qualquer vinculação física, as propostas políticas se alteraram significativamente, até os elementos das regras da OODC e da OUC regulamentados em 2001. É interessante, nessa história, como um argumento inicial em prol de maior restrição construtiva se alterou para permitir maior construção com relaxamento do zoneamento, desde que isso gerasse recursos aos municípios e mantivesse o nome “Solo Criado”.
O zoneamento é um instrumento que visa controlar o uso e a ocupação do solo. Conforme a história de seu desenvolvimento, boa parte da aplicação decorre da pressão dos moradores de algumas regiões, que visam impedir que seus bairros sofram alterações. O zoneamento, neste sentido, seria uma proteção coletiva à propriedade de cada residente.
A criação do conceito original de Solo Criado, aplicado com a exigência de doação de área (e valor) semelhante ao terreno onde se desejava empregar edificações que aumentavam a densidade, é um desdobramento da proteção do zoneamento e dos distúrbios causados na intervenção sobre a ocupação do solo. Nesse sentido, a maior restrição à densificação proposta originalmente se assemelha ao sentimento presente nos casos em que houve pressões do tipo NIMBY. De forma simples, é mais uma intervenção para buscar remediar problemas causados por uma intervenção anterior, com potencial de criar novas distorções nos preços do solo urbano e de sua ocupação.
Embora o conceito de Solo Criado tenha se alterado de forma significativa desde sua criação (e potencial proibição), a mesma nomenclatura é encontrada na literatura recente que trata dos instrumentos do Estatuto da Cidade. É por esse motivo que é valioso retornar à história do desenvolvimento do conceito para entender de onde surgiu e quais eram os reais motivos que levaram ao seu desenvolvimento. Tendo esses motivos claros, poderemos criar as condições para entender os prováveis motivos de o conceito ter se mantido com o mesmo nome e os possíveis resultados econômicos e urbanísticos de sua aplicação.
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COMENTÁRIOS
Diferente e interessante perspectiva sobre o conceito de solo criado, mas me deixou confuso a forma como a relacionou com os Nimby, não sei se concordo com essa relação.
Outro detalhe, menor: baseado em que este seria um conceito urbanístico nascido no Brasil? Não foi nascido na Europa? (me parece, e eu posso estar equivocado, porque fiquei mesmo confuso, que o texto destaca – não tão explicitamente – um conceito muito restrito e específico de solo criado sobre o qual formula a crítica, não o conceito mais comumente utilizado como sendo representado pelo termo).
Há um tempo atrás publiquei um artigo sobre Outorga Onerosa do Direito de Construir (https://www.inteligenciaurbana.org/2021/01/outorga-onerosa-do-direito-de-construir.html) em inteligenciaurbana.org, com outra abordagem, se alguém quiser ler.
David, você baseou-se em algum documento em particular? Considera que a Carta do Embu também adota a abordagem que você critica?
Vitor.
Existe uma revista de 1977 chamada CJ arquitetura que em seu número 16 trata quase que exclusivamente da proposta do solo criado. O texto utilizado para tratar da proposta original do grupo de estudos está lá. Como citado no texto acima, a proposta original permitiria apenas a transferência do direito de construir; assim, o interessado em adensar um terreno teria que doar área semelhante ao município. Isso era, no macro, um impeditivo ao adensamento da área urbana.
A Carta de Embu trata disso, mas também considera a possibilidade de pagamento pelo direito de construir acima do coeficiente único e unitário – o que acabou sendo mais influente posteriormente. Todas as demais propostas posteriores trataram mais dessa possibilidade de aquisição, inclusive os instrumentos da OODC e da OUC. Há outros instrumentos posteriores, inclusive, como um desenvolvido no município de Curitiba para edificações históricas, que permite a transferência de potencial construtivo (ou a venda desses bônus) periodicamente para fins de financiamento de restauro ou manutenção dessas edificações – como se aquele terreno produzisse certa quantidade de solo ao longo do tempo. Foi essa mudança de visão que busquei apresentar no artigo.
Histórinha que desabona o instrumento OODC e os benefícios que ele pode proporcionar à gestão urbana das cidades! Um desserviço!!!
o que eu entendi do texto: burocratas agem como magos, feiticeiros, tentando controlar uma cidade com milhões de pessoas. obviamente vão falhar e o resultado nós vemos até hoje