Carros autônomos são novo desafio no Brasil | Entrevista com Anthony Ling
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Com densidade e mistura de usos, Senáḵw é um empreendimento que pretende beneficiar povos nativos e ampliar o acesso à moradia com um modelo de financiamento que oferece lições importantes para as cidades.
27 de outubro de 2025A Nação Squamish, uma das quatro Primeiras Nações do Canadá, iniciou recentemente a construção de um grande empreendimento de uso misto em Vancouver. Trata-se não apenas de um exemplo de desenvolvimento pró-habitação em uma metrópole supostamente “saturada”, mas também de um caso que ilustra como o modelo de financiamento de um governo influencia suas decisões (e, consequentemente, molda o ambiente construído).
É uma história fascinante, repleta de lições sobre como devemos pensar o urbanismo contemporâneo. Surpreendentemente, é também muito pouco divulgada, considerando sua relevância (um problema que espero começar a corrigir aqui).
Muito tempo atrás, europeus chegaram à América do Norte. A violência e a destruição chegaram com eles, e as populações nativas de todo o continente acabaram ficando no cerne do colonialismo. Isso frequentemente envolvia a expulsão de povos indígenas de suas terras, como ocorreu com os Squamish, removidos da área conhecida como Senáḵw.
Senáḵw — cuja tradução literal é “o lugar dentro da cabeça de False Creek” — é uma área próxima ao atual centro de Vancouver. Ela foi originalmente ocupada pelos Squamish e, em 1887, formalmente declarada como Reserva Kitsilano nº 6. (Tanto os Estados Unidos quanto o Canadá tiveram políticas semelhantes de restrição das populações indígenas a áreas designadas. No Canadá, essas áreas são chamadas de reservas.)

Em 1913, o governo da Colúmbia Britânica removeu à força os residentes Squamish da região, em um ato que desde então tem sido amplamente reconhecido como injusto — e que era tecnicamente ilegal até mesmo sob as leis canadenses da época.
Em 1977, representantes da Nação Squamish entraram com um processo judicial contra o governo canadense. Após 26 anos de litígio, o Tribunal Federal do Canadá concedeu aos Squamish 10,48 acres (de um total original de 80 acres de terras da reserva) bem no coração da região metropolitana de Vancouver. Mais tarde, em 2019, os membros da Nação Squamish votaram pela urbanização do terreno. Depois de conseguirem parceiros para a incorporação e o financiamento em 2022, eles iniciaram as obras.
Leia mais: O planejamento urbano de Vancouver talvez precise do toque de um economista urbano
Quando estiver concluído, o empreendimento contará com 6.000 apartamentos a preço de mercado, 1.200 unidades a preço reduzido e mais de 9.000 m² de área comercial — tudo isso em torno de um grande eixo de transporte público.
Se você já trabalhou no mercado imobiliário, sabe que se trata de um projeto de alta densidade. Construir tudo isso em apenas 10 acres (parte dos quais é cortada por uma rodovia elevada) significa adotar uma configuração no estilo “torres no parque”.

Se você chegou até aqui, sua próxima pergunta pode ser: “mas como eles conseguiram aprovação, considerando o zoneamento local?” Bem, não foi porque os canadenses são todos YIMBYs (Yes In My Backyard, ou “sim no meu quintal”, movimento a favor do desenvolvimento e da densidade urbana). Quando o projeto foi anunciado em 2019, houve forte reação entre os proprietários NIMBYs (Not In My Backyard, ou “não no meu quintal”) de Vancouver, mas isso não importou. Do ponto de vista legal, Senáḵw não está dentro de Vancouver.
Quando o governo canadense devolveu a terra ao controle dos Squamish, ela saiu da jurisdição da cidade de Vancouver e passou a estar sob autoridade do governo tribal da Nação Squamish. Assim, quando o governo Squamish decidiu desenvolver a área em benefício da própria comunidade, não havia nada que os NIMBYs locais pudessem fazer para impedir.
É aqui que a maior parte das reportagens costuma parar. É uma boa história, claro, mas a situação parece tão específica e excepcional que dificilmente teria implicações para formuladores de políticas, ativistas ou reformadores, certo?
Errado.
Essa história traz lições para todos os tipos de urbanistas. Então, vamos começar do início, com a habitação.
O primeiro ponto a observar é a escala do desenvolvimento.
Se lembrarmos dos ensinos básicos de economia urbana, a densidade é impulsionada pelo valor da terra. Quanto mais cara a terra, mais os incorporadores substituem solo por área construída. É por isso que Nova York é densa e as cidades de Dakota do Norte não são. Nas palavras de Alain Bertaud, “densidade não é uma decisão de design”.
O fato de “o mercado” acreditar que Senáḵw pode sustentar o nível de densidade planejado significa que também acredita que as áreas vizinhas poderiam suportar densidade muito maior do que elas têm. Isso nos dá uma boa noção do quão restrita é a oferta habitacional de Vancouver.
O modelo financeiro do projeto também é notável.
Para os Squamish, Senáḵw é um empreendimento voltado à geração de receita.
Sim, haverá unidades com aluguel abaixo do valor de mercado, mas o objetivo é que o projeto se sustente perpetuamente e gere recursos para o caixa da Nação Squamish — tudo isso sem cobrar impostos sobre vendas, renda ou ganho de capital dos moradores.
Ao invés de depender de um modelo convencional de arrecadação de impostos, a operação será baseada exclusivamente em receitas de arrendamento. Pode parecer estranho, mas esse modelo é mais comum do que parece. A Boston Planning and Development Agency gera uma parte significativa de sua receita a partir do desenvolvimento e da monetização de imóveis públicos. Mais próximo do caso de Senáḵw, todo o bairro de Battery Park, em Nova York, pertence e é administrado pela Battery Park City Authority (empresa pública de interesse coletivo que repassa sua receita excedente ao fundo geral da cidade de Nova York). Na Ciudad Morazán, em Honduras, está sendo adotada a mesma abordagem. Esse também é basicamente o mesmo modelo de funcionamento de um shopping.
A lição mais profunda aqui é como o modelo de receita de uma cidade molda sua postura diante do crescimento.
Como já discutimos no artigo “Um modelo de negócio para a cidade”, os governos municipais são essencialmente plataformas. Eles constroem infraestrutura e, se forem bem-sucedidos, atraem mais e mais residentes, que ajudam a construir tudo o que compõe a vida urbana. Plataformas de mídia social como YouTube ou TikTok funcionam de modo semelhante: fornecem a infraestrutura, mas dependem dos usuários para dar vida à elas.
Contudo, o modelo de monetização de uma plataforma define a maneira como essa infraestrutura é projetada. Plataformas digitais monetizam atenção, então tudo é desenhado para maximizar engajamento e manter os olhos fixos nas telas. A forma como ganham dinheiro determina seu design. O mesmo princípio se aplica às cidades. A maneira como uma cidade decide monetizar o valor que ela mesma ajuda a criar influencia suas políticas, suas instituições e o desenho do ambiente construído.
No caso de Senáḵw, como os Squamish estão monetizando diretamente o valor da terra por meio de arrendamentos, eles têm um incentivo para maximizar o desenvolvimento e adotar a postura mais pró-crescimento possível. Em última instância, Senáḵw é um produto, e o design de qualquer produto deriva de seu modelo de negócios.
Leia mais: “Vancouverismo”: verticalização com vida na rua
Senáḵw é um projeto fascinante, sob qualquer perspectiva. Para um YIMBY, ele mostra o que é possível em um mundo com regras de uso do solo mais racionais.
Sob a ótica georgista, oferece um exemplo real de como usar o valor da terra para financiar infraestrutura pública. E se olharmos pelo viés do projeto, ele destaca a conexão direta entre o modelo de financiamento de uma cidade e a forma como o ambiente construído se desenvolve a partir dele.
Independentemente da sua bandeira ou área de interesse, se você é um urbanista, Senáḵw é um projeto que vale a pena acompanhar. É um caso que eu vou continuar seguindo de perto, com as mais altas expectativas.
Artigo publicado originalmente em Urban Proxima, em julho de 2025.
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