Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Cada ponto comercial é uma sala de aula formando microempreendedores, e cada compra local, um ato social de fortalecimento da economia interna. O fato é que este até então melhor estilo de vida foi atingido por quatro ondas fortes e está morrendo.
21 de julho de 2022Um endereço ideal pressupõe conveniência, atendimento das necessidades básicas de produtos e serviços a uma simples caminhada. O café da manhã na base do prédio, o “vou ali na farmácia”, o puxar o carrinho abarrotado de frutas, o descer no sábado para cortar o cabelo, o levar o pet na pracinha da esquina. A saúde de uma cidade passa pela frequência de pessoas caminhando em espaços públicos, com senso de comunidade, sensação de segurança, civilidade e capacidade de consumo para as necessidades básicas. E a loja nessa caminhada é um estímulo vital.
Jane Jacobs — jornalista e ativista americana, considerada uma das urbanistas mais influentes da história — descreve esse movimento como “O balé das calçadas”. Os estabelecimentos comerciais sendo abertos, as pessoas se encontrando, conversando. As pessoas nos prédios participam, interagem enquanto as crianças brincam sendo vigiadas pelos “olhos da rua”, o que traz segurança (esse é assunto para mais um longo debate). Enfim, essa dinâmica é a verdadeira referência de urbanidade e quando isso não acontece é um sinal de doença da cidade.
Cada ponto comercial é uma sala de aula formando microempreendedores, e cada compra local, um ato social de fortalecimento da economia interna.
Mas esse “balé das calçadas” — que já foi atingido por três ondas —, está passando pela quarta e corre o risco de não sobreviver se não contar com a ajuda dos gestores públicos, da população e até mesmo da iniciativa privada.
A primeira onda decorreu da dificuldade do Estado de prover um ambiente público (calçada no entorno da porta da loja de rua) de limpeza, iluminação, mobiliário urbano, paisagismo, jardinagem e presença de segurança com poder de polícia. Esta ineficiência, recorrente e duradoura, preparou o ambiente para a segunda onda: os shopping centers.
Hoje responsáveis por 1/3 do consumo total brasileiro, esses espaços privados de acesso público oferecem justamente o que o espaço público deixou de proporcionar: segurança, mobiliário urbano, acessibilidade, comunicação eficiente, ordem no aparato publicitário, regras urbanísticas e mais fomento de atividades culturais e de entretenimento para a sociedade.
Este movimento no mercado de varejo (os shoppings) reconfigurou a função dos polos de rua, que passaram a atender um consumidor de baixo poder aquisitivo. A morfologia das cidades brasileiras passou a ser esta: ar condicionado, mármore e cinema para o consumo na classe média e loja de rua em ambiente degradado para o cidadão-consumidor de menor renda.
Veio então a terceira onda, gigantesca, que atingiu ao mesmo tempo a loja de rua e os shoppings, na mesma intensidade. Estoques de produtos sem fim, por preço baixo, a uma distância menor que uma caminhada: e-commerce. Muitos negócios simplesmente desapareceram, suplantados pela eficiência tecnológica, com lojistas de rua e de shopping, simultaneamente, sendo substituídos diariamente pelas compras online.
E, com a pandemia da Covid-19, a quarta onda. Os microempreendedores foram impactados pelo fechamento compulsório dos negócios por razões sanitárias. Inúmeros foram condenados por manterem suas portas abertas e não interromperem seu funcionamento em meio a quarentena, não priorizando a saúde, quando, na verdade, sua atividade é a própria saúde dos ambientes urbanos.
A formação de um polo de rua, a meu ver, é como um delicado tecido vivo da natureza. Leva anos para se formar e é extremamente sensível a mudanças climáticas. Fechar a loja de rua em plena terceira onda (e-commerce) ou na quarta (pandemia), sem nenhuma campanha de revigoramento do comércio local, nenhum regramento que facilite a organização e articulação dos lojistas em polos de rua, nenhum refresco no IPTU de 2021 ou dos encargos incidentes sobre a folha de pagamento, é uma incompreensão absoluta. Sobretudo dos gestores que se dizem sensíveis às questões sociais, porque a saúde da loja de rua é vital para uma cidade saudável.
Culturas mais desenvolvidas, como a inglesa e a americana, perceberam há muito a delicada situação e, reconhecendo que a deterioração dos polos de rua é foco gerador de problema social, vêm implementando em escala os chamados TCM (Town Center Management) e BID (Business Improvement Districts), que nada mais são do que iniciativas no rumo da revitalização dos espaços de rua e da harmonia entre os lojistas e os poderes públicos, que passam a compartilhar a gestão.
É passada a hora de enxergarmos o comércio local como uma espécie rara, em extinção, e dedicar a ele todos os cuidados que merecem as espécies ameaçadas.
Não importa o quanto erremos: a ressureição das lojas de rua será sempre possível, porque o homem continuará sendo um ser social analógico. Por isto, ainda há esperança na capacidade destes lojistas se reinventarem com atividades omnichannel (tendência do varejo baseado na convergência de todos os canais utilizados por uma empresa, integrando lojas físicas, virtuais e compradores), proporcionando uma conjunção de rua viva, eficiência logística e gestão compartilhada entre o público e o privado.
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