As esquinas por que passei
Como as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
É possível verificar que expressivas porções do território urbano são destinadas a esse bem inanimado.
22 de junho de 2023Em 1990, o programa “Cidade amiga das bicicletas” da cidade de Müenster produziu uma imagem que virou um ícone da luta por melhorias na mobilidade urbana. Através de três fotografias de uma grande avenida em Müenster, a clássica imagem comparou os espaços ocupados para transportar 72 indivíduos em 60 carros, em um ônibus ou em 72 bicicletas.
Na fotografia da direita estão enfileiradas 72 bicicletas em 9 filas com 8 colunas. Na imagem do meio tem-se apenas 1 ônibus e à esquerda estão enfileirados 15 carros em cada uma das 4 pistas existentes, perfazendo um total de 60 carros. A ocupação média de passageiros considerada foi de 1,2 pessoas por carro. Posteriormente, algumas reproduções da ideia passaram a considerar somente 60 pessoas transportadas em 60 carros.
A contínua reprodução da imagem e a sensação de espanto que proporciona evidenciam a atualidade da mensagem que se pretende passar. É um caso genuíno do bordão em que uma imagem vale mais do que mil palavras, onde a percepção do espaço desmesurado destinado aos automóveis nos centros urbanos foi retratada de forma extremamente didática.
Entretanto, é possível afirmar que o verdadeiro espaço destinado a este meio de transporte é ainda maior. Em primeiro lugar, observa-se que a imagem de carros praticamente colados uns aos outros ilustra uma situação pouco usual. Isso só é possível quando os veículos estão parados. Quando em movimento, para evitar colisões e atropelamentos, recomenda-se que cada veículo trafegue a uma distância de segurança em relação aos outros, pois é preciso contabilizar o tempo de reação e o espaço necessário para frenagem.
Por isso, o espaço demandado para que se dirija com segurança é muito maior do que aquele retrato na foto. O tipo de superfície, condições climáticas, idade do condutor e condições do veículo também interferem no cálculo. Eis algumas distâncias consideradas seguras sob diferentes velocidades e em condições “normais”:
Com base nesses parâmetros, elaborei a tabela abaixo relacionando a extensão e as áreas necessárias para comportar 60 carros enfileirados em apenas uma faixa de circulação.
Sob uma velocidade de 30 km/h, 60 carros em movimento demandam mais de 1 km de extensão de asfalto. Por sua vez, se a velocidade praticada for de 80 km/h serão necessários quase 7 km de via asfaltada para comportá-los a boas distâncias de segurança. A coisa é tão impressionante que bastariam 335.355 automóveis (mais ou menos a frota de veículos de Florianópolis), trafegando a 80 km/h, para ocuparem uma pista que circunda todo o planeta Terra!!!
Entretanto, o problema não termina aí! Quando não está em uso, o automóvel continua a demandar espaço. Conforme parâmetros da prefeitura de São Paulo, uma vaga de garagem tem de 9 m2 a 13,75 m2 em média. Quando se adicionam os espaços de circulação e manobra, esses valores podem variar de 22 m2 a 33 m2 por vaga, o que dá uma média de 27 m2 de espaço destinado ao depósito automotivo.
A fim de mensurar e comparar os espaços ocupados pelos carros em termos estáticos (estacionado) com o dinâmico (trafegando), ao longo de determinado período de tempo, Eric Bruun e Vukan Vuchic apresentaram em 1995 uma interessante metodologia. Os autores propuseram que a área demandada por veículos deve ser calculada pela multiplicação do espaço ocupado por cada veículo vezes o tempo em que se ocupa cada espaço (Espaço ocupado = área ocupada x tempo ocupado). O resultado é expresso em termos de espaço-tempo.
Por exemplo, quem dirige um carro a 30 km/h, por uma hora ao dia, ocupa um espaço-tempo de 55 m2/hora por dia (18,5 m x 3 m x 1 h, a largura da pista multiplicada pelo espaço de segurança exigido a 30 km/h, vezes as horas em movimento). Por sua vez, Donald Shoup estima que os carros ficam 95% do tempo parados em garagens ou estacionamentos, de forma que se os carros ficam as outras 23 horas estacionados, o valor do espaço-dia destinado a essa finalidade será de 621 m2/hora por dia (27 m2 x 23 h, que é a área média de uma vaga de garagem vezes o tempo), o que dá 11 vezes mais!!!
A partir de dados de mobilidade de pesquisa residencial na cidade de Lyons na França, J.P Nicholas, P. Pochet e H. Poimboeuf estimaram os espaços-tempos de diferentes meios de transporte, levando em conta somente o traslado para ambientes laborais. Neste caso, automóveis em movimento ocupariam 34% do total de espaço-horas e veículos estacionados seriam responsáveis por 62% dos espaços-horas, enquanto os outros 4% seriam destinados a todas as outras formas de deslocamento (transportes públicos, caminhadas, bicicletas e motos).
Todavia, essas estimativas ainda podem subestimar o verdadeiro espaço demandado pelos automóveis. Afinal, vias de circulação e estacionamentos estão sempre à disposição dos veículos motorizados e independem do seu uso efetivo. A qualquer hora do dia e da noite estão sempre lá disponíveis e na maioria dos casos não são acessíveis a mais ninguém, pois raramente funcionam como bens públicos.
No caso dos estacionamentos, isso se faz presente em um grau elevado, pois enquanto os transportes coletivos ocupam sempre o mesmo espaço durante o período de não uso, aos automóveis costuma ser oferecido um leque infinito de opções nas origens e nos destinos. São vagas nos shoppings, nos escritórios, nos hospitais, nas lojas, nos hotéis, no zoológico, nas praias e até mesmo em padarias…
Por conta disso, o número de vagas de garagens e estacionamentos é necessariamente maior do que o de carros. Em 1973, Victor Gruen estimou existirem de 4 a 5 vagas por carro nos EUA. Já Chester et. Al (2011) estimaram uma média de 4 vagas por automóvel nas grandes cidades americanas e de 2,2 nas áreas rurais. Para a cidade de Los Angeles, os mesmos autores estimaram 0,6 vagas por automóvel nas vias públicas, 1,9 em estabelecimentos não residenciais e 1 vaga por residência.
Assim, para se responder à questão de qual o espaço demandado pelos carros é necessário também contabilizar todas as áreas de estacionamento e garagens. Caso sejam ofertadas 3 vagas por automóveis, 60 carros necessitam em média de 4.860 m2 de área de estacionamento. Se forem construídas 4 vagas por veículo, o espaço demandado será de 6.480 m2, e, para 5 vagas, esse valor gira em torno de 7.800 m2 .
Portanto, diferentes estudos apontam que a superfície urbana destinada a estacionamentos e vias públicas atinge proporções assustadoras. Os percentuais variam de 13% a 56% e dependem em grande medida do tipo de uso do solo (comercial, industrial, comercial) e do nível de densidade urbana.
Estudo do departamento de ecologia da cidade de Olympia estimou que, enquanto as construções comerciais ocupavam somente 26% da superfície urbana, estacionamentos e rodovias ficavam com 53%.
O livro de John Meyer e José Ibáñez menciona que para um centro comercial “típico” seriam destinados 18% da superfície para vias urbanas e 38% para estacionamentos. Na cidade do Rio de Janeiro, estudo do ITDP, para os anos de 2005 a 2016, estimou que a área de estacionamento sobre a área total edificada foi de 42% em áreas residenciais e de 60% a 70% em áreas não residenciais.
Importante destacar que esse tipo de análise ainda pode ser insuficiente, pois cidades mais densas tendem a ter maior proporção de ruas e estacionamentos, ainda que tenham menor área asfaltada em termos absolutos. Um dos primeiros trabalhos a identificar esse aparente paradoxo foi o livro Autos, Transit and cities de John Mayer e José Gómez Ibáñes, publicado em 1960. Os autores identificaram que a densa cidade de Nova York usava 30% de sua terra para ruas, enquanto a espraiada Los Angeles utilizava somente 13%.
A explicação para esse aparente paradoxo é que cidades mais compactas tornam o espaço viário mais representativo. O percentual do espaço ocupado por ruas, ainda que reduzidas ou menos extensas, são proporcionalmente maiores, pois as construções tendem a ocupar espaços comparativamente menores. Por sua vez, as cidades compostas por casas com largos jardins, recuadas e afastadas uma das outras, fazem com que ruas e estacionamentos, ainda que abundantes, se tornem menos representativos.
Por isso, os autores propõem que se identifique o espaço viário em termos per capita. Nesse caso, Los Angeles tem mais do que o dobro de ocupação do espaço viário de Nova York. Os autores encontraram ainda um coeficiente de correlação entre densidade populacional e espaço viário per capita de 0,89, que é elevadíssimo.
Portanto, as formas de se contabilizar o espaço demandado pelos carros são diversas, mas em qualquer delas se verifica que expressivas porções do território urbano são destinadas a esse bem inanimado. Em muitas situações, existe mais espaço para os carros do que para as pessoas. É chegada a hora de repensarmos esse modelo de cidade e darmos mais espaço para quem verdadeiramente torna as cidades mais convidativas, ou seja, todos nós!
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COMENTÁRIOS
Todo esse espaço destinado aos carros não seria consequência dos modelos de planejamento urbano que as cidades adotaram?
Me parece que o texto tenta colocar os carros como vilões, quando entendo que eles são mais um produto fabricado pelo verdadeiro vilão, que é um planejamento/zoneamento urbano mal feito.
Oi Marcelo, concordo com você. O motivo principal de haver tanto espaço para os carros tem relação com modelos de planejamento urbano que privilegiam esse meio de transporte. O propósito do texto foi apenas demonstrar o excesso de espaço destinado aos automóveis e as diferentes formas de contabilizar esse espaço. Obrigado pelo comentário e abraço!