Podcast #102 | Déficit Habitacional e a Fundação João Pinheiro
Confira nossa conversa com Frederico Poley sobre o déficit habitacional no Brasil e a Fundação João Pinheiro.
Em um momento no qual a capacidade de investimento público só diminui, esta capacidade de produzir recursos das Operações Urbanas Consorciadas é essencial.
13 de abril de 2020As Operações Urbanas Consorciadas são um dos instrumentos de transformação mais importantes consolidados pelo Estatuto das Cidades, em especial por integrarem as ações necessárias para a recuperação de áreas que exigem uma mudança e intensificação do uso do solo, preverem os recursos necessários para esta alteração, favorecerem um desenho urbano compatível com a política urbana proposta e, principalmente, estimarem os recursos necessários à ação a partir da recuperação de parte da própria valorização a ser gerada pelas intervenções.
Em um momento no qual a capacidade de investimento público só se reduz, esta capacidade de produzir recursos é essencial. Não há praticamente mais nenhuma outra fonte de recursos em larga escala para financiar grandes ações de transformação urbana exceto investimentos de finalidade específica, além das OUCs.
Desde as primeiras Operações Urbanas, algumas delas antes mesmo do Estatuto, o instrumento tem passado por uma evolução significativa ao aprimorar conceitos e mecanismos, ampliar sua dimensão, fortalecer a sua conexão com a política urbana geral e, sobretudo, integrar mais e mais dimensões ao seu escopo, em especial a preocupação social.
A maioria das críticas genéricas feitas ao instrumento, em especial a de gentrificação, baseia-se em resultados de OUs realizadas no século passado e ignora tanto a evolução dos mecanismos como os resultados efetivamente alcançados. Mesmo as OUs mais antigas, como a Água Branca e a Faria Lima, têm sido aperfeiçoadas à luz da evolução conceitual e operacional.
Há, evidentemente, problemas a serem ainda resolvidos tanto na gestão como na avaliação e autocorreção da implementação do instrumento. Sem entrar em detalhes que escapariam ao objetivo deste texto, um dos problemas é um descompasso entre o universo conceitual das OUCs — baseadas na ideia de se chegar a uma situação de equilíbrio na qual todos os segmentos envolvidos têm o máximo retorno possível — e aquele ainda vigente na nossa sociedade, centrado numa competição entre as partes com base em sua força política momentânea.
Uma das dificuldades da última modelagem é que ela é instável por natureza. Forças políticas fluem e refluem conforme as circunstâncias, com os perdedores em um momento sempre esperando por uma revanche. Tal situação de instabilidade é ainda mais danosa na medida em que as OUCs são operações de longo prazo, levando décadas — e sucessivos mandatos — para concluírem seus objetivos. Portanto, podem ser facilmente destruídas pela oscilação e mudança brusca.
A construção de um modelo estável de equilíbrio, no qual se tem a otimização dos resultados para todos os segmentos, por sua vez, tem de lidar com a complexidade de articular interesses e conseguir uma governança colaborativa que implemente estes objetivos otimizados. Além disso, são necessárias rápidas avaliação e correção de rumo no caso de problemas, demandando uma qualificação desta governança para ser capaz de detectar problemas e encontrar soluções que não afetem o equilíbrio.
A evolução da gestão de conflito político por recursos para a de equilíbrio e otimização não se resolve somente no campo da concepção das OUCs, mas exige uma mudança cultural na sociedade. Em especial, requer a existência de uma cultura cívica na qual haja uma preocupação com a produção de uma cidade sustentável que garanta o futuro e a prosperidade para todos os segmentos, enquanto objetivo maior que o atendimento a demandas específicas.
Ainda assim, mesmo sob o risco deste descompasso limitando todo o potencial de desenvolvimento e impedindo uma governança qualificada, a operacionalização das OUCs e sua evolução podem beneficiar mesmo esta dimensão de cultura política, pois nenhum argumento é mais forte do que resultados.
Isto posto, é necessário considerar os próximos passos desta evolução também com esta dimensão política em vista e a meta de ampliar o potencial de estabilidade. Estabilidade, bem entendida, não significa regras rígidas, imutáveis, a impedir que as correções de rumo possam ser feitas.
E correções são necessárias em função de erros detectados, porque, ao trabalhar no campo da inovação, muitas vezes se constroem modelos que a realidade demonstra inválidos. Estes erros não devem ser compreendidos como defeitos, mas antes como experimentações. Sem o risco de cometê-los também se perde a oportunidade de inovar e encontrar soluções novas. O importante é ser capaz de medir eficientemente os resultados e verificar com rapidez a divergência entre resultados esperados e previstos, para buscar a solução ou ajuste.
Mas também são necessárias em função da própria mudança de premissas e parâmetros, que são inevitáveis em um planejamento estabelecido para décadas em um ambiente que evolui tão rapidamente quanto as cidades, e ainda mais em um país em desenvolvimento cujo cenário econômico pode alterar-se radical e rapidamente.
Um bom exemplo para ilustrar esta questão da mudança de paradigma é que as cidades daqui a três décadas podem ser muito diferentes daquelas que se busca construir com as OUCs com relação à mobilidade. Há uma razoável possibilidade de boa parte deste foco das OUCs se tornar obsoleto com a adoção massiva do teletrabalho, por exemplo, tornando desnecessários muitos dos deslocamentos que hoje se tenta otimizar.
Em um outro aspecto menos amplo, mas mais presente nesta necessidade de mudança, está o cenário macroeconômico, em especial com referência ao nível de atividade do mercado imobiliário. Estabelecer uma regra rígida, mesmo com todos os cenários analisados nos estudos de viabilidade, sempre trará uma situação na qual a ação especulativa se insinuará para dentro do modelo, muitas vezes apostando contra a consecução dos objetivos. Ao mesmo tempo, sempre se corre o risco de penalizar os atores econômicos com um retorno muito abaixo do projetado, destruindo a credibilidade essencial para o funcionamento das OUCs ou afastando delas o investimento privado fundamental a seu sucesso.
Ao mesmo tempo, mudar estes parâmetros derivados do cenário macroeconômico a cada virada econômica, em especial mudando a base legal para isto, pode comprometer em definitivo a saúde do modelo porque torna qualquer estabilidade impossível e reforça a ideia de cada lado puxando para si os resultados conforme uma conjuntura política de curto prazo.
A resposta parece ser a adoção de um modelo mais flexível, mas que varie segundo regras claras, previsíveis e objetivos. Experiências com esta modelagem dinâmica vêm sendo feitas, em especial na Cidade do México, e provavelmente serão incorporadas na nova geração de OUCs.
Esforços parlamentares no sentido de dar esta dimensão dinâmica baseada em indicadores e nível da atividade econômica foram feitas na discussão da OUC Água Branca em 2013, do Plano Diretor em 2014 e da UOC Águas Espraiadas em 2019, mas não foram compreendidas.
Delas, contudo, restou um elemento importante finalmente adotado pelo Poder Público de utilizar o IVG-BC (Índice de Valores de Garantia do Banco Central), que mede a atividade imobiliária em vez de indexadores gerais de inflação. Esta mudança, mesmo pequena e adotada com 5 anos de atraso, sintoniza a mudança de valores com o mercado específico, que varia segundo ciclos diferentes do conjunto da economia e, inclusive, pode ter deflações significativas, muito mais raras na economia.
Artigo publicado originalmente no portal do autor em 28 de fevereiro de 2020.
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Rafael,
Obrigado pela leitura e pelo seu comentário. Tento aqui, como editor do site, esclarecer o motivo pelo qual escolhemos o texto para publicação e, talvez, responder alguns dos seus questionamentos.
A importância da OUC está na possibilidade do setor público, de forma coordenada, atrair investimentos, adquirir recursos e investir em infraestrutura, permitindo uma certa previsibilidade no seu desenvolvimento urbano e nos investimentos de longo prazo que ela irá fazer. Os projetos e recursos obtidos através destas OUCs podem (e devem, ao meu ver) trabalhar não apenas no aumento do estoque construído da cidade apoiado sobre infraestrutura adequada (aumentando, assim, a oferta de espaço construído na cidade como um todo, que se reflete nos preços) assim como realizar a regularização fundiária e a urbanização de comunidades que podem estar inseridas na área da OUC. Hipoteticamente, uma OUC poderia, através da venda de CEPACs, urbanizar comunidades inclusive em outras regiões da cidade, assim como, através de novas infraestruturas e novos parâmetros urbanísticos em uma região específica, urbanizar e valorizar significativamente moradias hoje irregulares e sem infraestrutura em áreas centrais das cidades. É esta grande transformação social que essa ferramenta possibilita e que, no meu entendimento, é subvalorizada por gestores públicos municipais país afora.
O seu segundo ponto realmente está associado com o crescimento econômico: o próprio exemplo que você deu do Porto Maravilha teve um timing terrível, tendo sido lançado em meio a uma crise econômica que afugentou investidores. E isso certamente é algo que um gestor público deve ficar atento. Tendo acompanhado etapas preliminares de estudo de OUCs aqui em Porto Alegre, não é incomum gestores fazerem sondagens com incorporadoras, investidores, construtoras, imobiliárias, proprietários de terreno, consultorias etc. para verificar a viabilidade do lançamento de uma OUC. É claro que há vários outros parâmetros que podem induzir o fracasso ou o sucesso de uma OUC, tanto qual a região sendo transformada assim como os próprios parâmetros delimitadas pela operação urbana, que podem tornar a região em questão mais ou menos atraente. Ou seja, não há, de fato, “garantia” no “sucesso absoluto” de uma Operação Urbana, mas me parece que mesmo o projeto do Porto Maravilha, que teve sua ocupação “atrasada” por causa do timing econômico, começou a surtir efeito antes de iniciarmos esta crise em meio à pandemia.
Por fim, sobre a gentrificação: meu entendimento, voltando ao primeiro comentário, é que há várias formas de se fazer OUCs com mecanismos para garantir o bem estar das comunidades mais vulneráveis inseridas na área de abrangência, que imagino que é o que o autor quis dizer com a “evolução dos mecanismos”. Quanto ao estudo da Paradeda, que ainda não tinha lido, pessoalmente tendo a focar no que a autora chama de “variável social” da gentrificação, ou seja, a substituição de moradores mais pobres por mais ricos em uma determinada região da cidade. No seu estudo, apesar de alguns relatos de entrevistas, isso não ficou claro de forma quantitativa, até porque cerca de metade da população da área do Porto Maravilha é proprietária e se beneficiou do ponto de vista econômico, não sofrendo a chamada “expulsão social” causada pela gentrificação. De qualquer forma, também não duvido que esse efeito possa mesmo ocorrer com uma parcela da população que vive de aluguel. No entanto, olhando em locais específicos da cidade não vejo como essa gentrificação possa ser eliminada, embora possa ser mitigada, como já comentei acima. Como já escrevi em outros textos do site sobre gentrificação (https://caosplanejado.com/quem-tem-medo-da-gentrificacao/), imóveis se valorizam e se desvalorizam em todo momento em uma cidade, por inúmeros motivos. A presunção da “estabilização” ou da “desvalorização contínua” de aluguéis na cidade como um todo também se daria pela ausência total de investimento do setor público na cidade, de obras de arborização, de drenagem, de saneamento, de limpeza urbana que são, evidentemente, medidas necessárias para o bom funcionamento de uma metrópole. Assim, no meu entendimento, o objetivo do gestor público não é garantir que preços de compra/venda ou de aluguel de imóveis específicos não vão subir (ou baixar) por tempo indeterminado, muito menos que moradores permaneçam no mesmo imóvel ao longo de toda sua vida. A cidade muda constantemente, e o objetivo deve ser de tornar a cidade como um todo mais acessível, embora tenha, no seu interior, áreas em transformação. Este é, talvez, o objetivo que mais focamos aqui na página, por isso também a minha preocupação em respondê-lo.
Espero que tenha atendido algumas das suas dúvidas.
Anthony
Obrigado pelo seu comentário. Minha única réplica é que, na verdade, não é possível “através da venda de CEPACs, urbanizar comunidades inclusive em outras regiões da cidade”, pois o EC estabelece que: “§ 1o Os recursos obtidos pelo Poder Público municipal na forma do inciso VI deste artigo serão aplicados exclusivamente na própria operação urbana consorciada”. Ou seja, a OUC retroalimenta a desigualdade intraurbana à medida que, como vc mesmo colocou, só é viável onde há interesse do mercado, e gera mais recursos que só podem ser investidos naquele perímetro, criando clusters supermodernos como uma Faria Lima da vida.
Reintero que minha objeção inicial não é ao instrumento por si só, mas sim à sua idealização como “um dos instrumentos de transformação mais importantes consolidados pelo Estatuto das Cidades”.
Prezado Anthony.
Não entendi porque você respondeu no lugar do Police Neto as questões formuladas pelo Rafael.
Acrescento que os aspectos levantados no comentário são pertinentes, em especial no que se refere ao fato de que os recursos arrecadados nas OUCs só podem ser investidos dentro do perímetro da própria operação (e não hipoteticamente fora da área de abrangência). Se é certo que OUCs representam um importante canal extra-orçamentários frente aos crescentes custos de urbanização, é justamente este aspecto que acentua a desigualdade espacial na cidade, reforçando o investimento público e privado apenas em determinadas porções do território da cidade (já beneficiados), em detrimento de outras áreas mais carentes.
Francisco,
Respondi como editor do site, dado que o ele comentou que é um leitor assíduo e o ele não estava endereçando a mensagem especificamente ao autor. Também tenho interesse pessoal sobre o tema e tentei, através do comentário, contribuir para o debate.
Da mesma forma, agradeço a sua leitura e o seu comentário a respeito do tema.
Grande abraço,
Anthony
Olá, achei bastante interessante a reflexão sobre as OUCs. É um assunto que tem bastante espaço para discussões continuadas, por isso, como leitor assíduo do Caos Planejado, gostaria de contribuir. Desculpo-me de antemão por possíveis deslizes práticos ou teóricos que venha a cometer.
1- No trecho “As Operações Urbanas Consorciadas são um dos instrumentos de transformação mais importantes consolidados pelo Estatuto das Cidades”, eu fico me perguntando, “mais importante” pra quem? Para quem sofre com o deficit habitacional e/ou habitação insalubre, certamente a OUC está longe de ser o instrumento mais importante. Sem querer entrar na rinha capitalistas versus marxistas, creio que a OUC seja o instrumento mais importante para os detentores do dinheiro, não para o cidadão médio. Por exemplo, estima-se que 25% dos brasileiros não são atendidos regularmente por abastecimento de água encanada [IBGE, PNDA Contínua]. Neste sentido, poder-se ia entender que todos os instrumentos gerais da Seção I do Cáp. 2 do EC são mais importantes que a OUC hoje. Isso não anula, é claro, a importância per se das OUCs, apenas coloca o instrumento no fim da lista do que considero prioritário em termos de dignidade humana no espaço urbano. Minha crítica aqui não é ao conceito de OUC, mas à romantização da ideia em um país tão desigual.
2- No trecho “Em um momento no qual a capacidade de investimento público só se reduz, esta capacidade de produzir recursos é essencial”, presumindo que “produzir recursos” se refira à outorga onerosa do direito de construir, meu questionamento é: Neste cenário de 5 anos de PIB negativo ou de “PIBinho”, somado ao alto desemprego, seria viável para o mercado imobiliário comprar CEPACS para produzir imóveis para uma população enfrentando tantas dificuldades financeiras? Claro que produzir imóveis gera emprego, o que gera compradores, o que poderia iniciar um ciclo virtuoso para o mercado imobiliário. Mas quem garante aos investidores imobiliários que “a coisa vai pegar no tranco”, especialmente com uma gestão tão desarticulada e tumultuada a nível federal?
3- No trecho “A maioria das críticas genéricas feitas ao instrumento, em especial a de gentrificação, baseia-se em resultados de OUs realizadas no século passado e ignora tanto a evolução dos mecanismos como os resultados efetivamente alcançados”, pode haver uma desatualização literária. Sugiro ver Paradeda (2018) para conferir como, de modo prático e objetivo, a autora aponta um processo de gentrificação em andamento na OUC Porto Maravilha, talvez a mais recente no país dentre aquelas de grande porte [https://lume.ufrgs.br/handle/10183/140024].
Por fim, cumprimento o autor e o Caos Planejado por promover estas discussões. Abraços!