O planejamento padronizado das cidades latino-americanas e as Leis das Índias
Buenos Aires. Foto: Google Earth

O planejamento padronizado das cidades latino-americanas e as Leis das Índias

As Leis das Índias definiram o planejamento urbano latino-americano, com praças centrais e malhas viárias ortogonais. O legado colonial ainda molda a identidade das cidades na região.

23 de janeiro de 2025

Uma análise da maioria das cidades da América Latina revela semelhanças marcantes entre os países, desde o México até a Argentina. Muitas cidades possuem uma área bem definida conhecida como “El Centro” (O Centro), ancorada por uma praça principal (Plaza Mayor), cercada por uma igreja de um lado e edifícios-chave, como a prefeitura, de outro. Isso não é coincidência, remonta a um sistema de planejamento urbano estabelecido durante a colonização espanhola das Américas nos séculos 17 e 18. Esse sistema deu diretrizes padronizadas para o desenho urbano em seus vice-reinos. Diferentemente das colônias francesas e inglesas, os assentamentos espanhóis adotaram regulamentações que contribuíram para o surgimento de uma identidade urbana compartilhada, com cidades exibindo uma lógica espacial semelhante e uma coesão arquitetônica, apesar das diferenças de escala e contexto.

Para avançar no processo de colonização das Américas, o Império Espanhol precisava constantemente estabelecer novos centros urbanos. Para esse fim, a Coroa Espanhola emitiu uma série de leis destinadas a regular a vida social, política, religiosa e econômica nas áreas colonizadas. Em 1573, o Rei Felipe II promulgou as “Leis das Índias“, um texto legislativo composto por 148 ordenanças que orientavam e regularizavam a criação de vilas militares, missões e vilas civis. Em 1680, o Rei Carlos II compilou essas ordenanças e outras leis em uma série de documentos conhecidos como “Recopilación de las Leyes de los Reinos de Indias“. É nessa compilação, principalmente nos títulos seis, sete e oito, que o projeto padrão para o planejamento urbano espanhol nas Américas pode ser lido em sua totalidade. Até hoje, alguns historiadores consideram esse conjunto de leis uma das primeiras legislações urbanísticas padronizadas do mundo. Elas especificavam o layout das cidades, desde as dimensões de uma praça central até a orientação das ruas e a elevação ideal para uma cidade. Com sua implementação, a Coroa Espanhola buscava adaptar-se aos variados contextos e condições específicas de cada local, garantindo o sucesso dos assentamentos.

Plano da cidade de Valledupar, na Colômbia (1578). Imagem: Domínio Público

Leia mais: Desenho urbano em grelha: a arte esquecida de fazer cidades

A localização geográfica da cidade tinha uma influência significativa no seu planejamento urbano. No caso das cidades litorâneas, terrenos elevados eram preferidos, levando em consideração a proteção do porto, com a lei exigindo que a cidade evitasse a abertura direta para o oceano a fim de prevenir ataques de piratas. Na prática, as cidades costeiras frequentemente se estabeleciam em ilhotas ou baías internas, muitas delas com uma fortificação voltada para o lado do oceano. Exemplos disso podem ser vistos em lugares como: Santo Domingo, na República Dominicana; Havana, em Cuba; e outras cidades do sul dos Estados Unidos, como Saint Augustine, na Flórida, ou Old San Juan, em Porto Rico. Para as cidades do interior, eram favorecidos locais de média elevação, preferencialmente próximos a rios navegáveis, permitindo melhor comércio e rápido acesso à água potável.

Santo Domingo, República Dominicana. Foto: Google Earth

Esse modelo urbano espanhol empregava uma malha viária ortogonal em torno de uma praça, que servia como o coração cívico da cidade. A partir dessa localização central, planejava-se uma malha de ruas retas, organizando as áreas urbanas para uso residencial e deixando campos periféricos abertos com lotes conhecidos como “quintas“, designados para uma futura expansão urbana e atividades agrícolas. A orientação da malha era decidida considerando os ventos predominantes, com o objetivo de proteger a Plaza Mayor. Essa praça central era tipicamente quadrada ou retangular, com dimensões ideais de 180 metros por 120 metros, embora esses padrões nem sempre fossem seguidos rigorosamente. Isso resultou em tamanhos variados de praças pelo continente, mas sempre mantendo a forma retangular. Exemplos desse modelo urbano podem ser encontrados em cidades como Comayagua, em Honduras; León, na Nicarágua; e Quito, no Equador.

Comayagua, Honduras. Foto: Google Earth

A praça era cercada por ruas em todos os quatro lados, com duas ruas partindo de cada esquina, formando a base da malha urbana. Atualmente, a maioria das cidades pedestrianizou a rua em frente à igreja, de modo que, ao observar mapas modernos, apenas três ruas são aparentes. A largura das ruas era determinada pelo clima local. Áreas frias exigiam ruas largas, enquanto áreas quentes favoreciam ruas estreitas. Essa diferença é visível ao comparar os mapas de Cartagena das Índias, na Colômbia, localizada ao nível do mar e com clima quente, e Antígua, na Guatemala, situada em uma altitude de 1.500 metros, em clima frio.

Além da praça, a lei exigia que a igreja fosse o foco central do novo espaço urbano. Ela determinava especificamente que a igreja fosse construída em um quarteirão independente, separado da praça por uma rua, e elevada em um átrio acessado por escadas para lhe conferir maior importância. A igreja também deveria ser orientada para o leste, em conformidade com o dogma católico. A praça serviria também como centro cívico, abrigando em seus lados os edifícios necessários para o funcionamento do assentamento, como a prefeitura ou o palácio do vice-rei. As demais ruas e quarteirões deveriam ter arcadas para permitir o comércio. Essa organização específica de edificações é encontrada em todas as cidades coloniais da América Hispânica. Exemplos clássicos incluem a Cidade do México e Lima, no Peru.

Hoje, esses locais fundacionais são considerados históricos e frequentemente chamados de “El Centro“, devido à sua localização central na malha da cidade. Com o tempo, à medida que as cidades se expandiram e os países ganharam independência, as antigas “quintas” espanholas desapareceram gradualmente, dando lugar ao crescimento urbano moderno. Em muitos casos, os edifícios espanhóis originais foram substituídos, mas as icônicas praças ladeadas por uma igreja permanecem sendo os marcos urbanos mais reconhecíveis em muitas áreas metropolitanas. Por exemplo, em Buenos Aires, na Argentina, a Plaza de Mayo mantém suas raízes coloniais, mas agora inclui edifícios da era republicana, como a Casa Rosada. De forma semelhante, em São Salvador, El Salvador, a praça central apresenta uma nova igreja, construída para substituir a que foi destruída por um terremoto em 1873.

Plaza de Mayo, Buenos Aires. Foto: Wikimedia Commons

Leia mais: Por que não falamos mais sobre Buenos Aires?

As Leis das Índias deixaram um legado duradouro no tecido urbano das Américas. Ao padronizar os layouts das cidades, elas garantiram que todos os assentamentos seguissem uma visão coerente, criando uma ordem espacial reconhecível e duradoura. Hoje, os padrões de malha viária, praças centrais e pontos focais arquitetônicos originados dessas leis continuam a moldar as identidades das cidades da região, sendo um testemunho de uma história e cultura compartilhadas que unificam os países hispânicos no continente.

Artigo originalmente publicado em Archdaily, em dezembro de 2024.

Sua ajuda é importante para nossas cidades.
Seja um apoiador do Caos Planejado.

Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.

Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.

Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.

Quero apoiar

LEIA TAMBÉM

COMENTÁRIOS

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.