O caos planejado da Barra da Tijuca
Imagem: EMBARQ Brasil/Flickr.

O caos planejado da Barra da Tijuca

O urbanismo modernista da Barra é considerado por muitos a antítese do que deveria ser feito. Entenda no artigo de Anthony Ling.

29 de abril de 2019

O percurso ao longo da orla da Zona Sul do Rio de Janeiro, vizinhos à Barra da Tijuca, de Botafogo a São Conrado, passando por suas zonas mais centrais de Copacabana, Ipanema e Leblon, está entre os espaços urbanos mais caminháveis — e mais valorizados — do Brasil, marca principal da atratividade da região, proporcionada pela ausência de recuos entre suas edificações e a calçada, uso misto de atividades e uma ocupação relativamente intensiva do solo.

Tal urbanização carioca se deu anterior à construção de Brasília em 1957 e à consolidação do tipo de urbanismo da nova capital nas ideias de planejamento urbano no país. As ideias modernistas de Le Corbusier, replicadas por Lúcio Costa, de uma cidade setorizada, com grandes prédios isolados e implementação de grandes vias talvez não tivesse tanto respaldo prático até então.

Ao mesmo tempo, foi entre as décadas 50 e 60 o crescimento demográfico mais intenso da história da cidade do Rio de Janeiro, adicionando um milhão de habitantes a cada década. E, buscando áreas para expansão, em 1969, o prefeito Negrão de Lima aponta o mesmo Lúcio Costa, urbanista de Brasília, para projetar uma nova área da cidade em moldes semelhantes, o que viria a ser a Barra da Tijuca.

No maravilhoso curta documentário de 1970 “A cidade cresce para a Barra”, é possível ver imagens da área anterior ao plano, que chegou a ser chamada de “sertão carioca” na década de 30, remetendo então ao território isolado e com vida de interior.

Barra da Tijuca, 1958
Barra da Tijuca, 1958. (Imagem: IBGE)

Uma cidade mais humana?

Hoje, o urbanismo modernista da Barra é considerado por muitos a antítese do que deveria ser feito: o isolamento dos edifícios diminui a caminhabilidade e as interações sociais das edificações com a cidade, o zoneamento de atividades aumenta as distâncias de deslocamento, a restrição ao adensamento impede que a oferta imobiliária da cidade responda à demanda, aumentando os preços, e as grandes vias de tráfego ainda incentivam o transporte de automóvel em detrimento dos demais — todos sabem que ser pedestre na Barra da Tijuca não é nada fácil.

Muitos urbanistas clamam hoje para mudar este paradigma de forma a tornar as cidades “mais humanas”, inclusive referenciando a Zona Sul do Rio de Janeiro como um exemplo histórico de qualidade que deveria ser, de certa forma, replicado.

Ironicamente, este era justamente o objetivo do plano para a Barra da Tijuca. Nas palavras do prefeito Negrão de Lima: “Trouxemos Lúcio Costa com a certeza de que o seu gênio criaria um Rio mais humano, aliando a beleza selvagem da Baixada às necessidades e ao progresso da cidade que explodirá nos próximos 30 anos”.

Segundo a geógrafa Luciana Araujo Gomes da Silva, “para a região já existia um planejamento, enquadrado dentro do Plano de Diretrizes de Vias Arteriais (1955), que previa arruamentos paralelos ao longo de toda sua extensão, e sua tendência natural seria a ocupação ao longo de todas essas vias, assim como aconteceu nos bairros da Zona Sul, principalmente Copacabana, Ipanema e Leblon”.

Ou seja, na ausência do plano de Lúcio Costa, teríamos tido, provavelmente, a criação de uma “Nova Zona Sul” ao longo do tempo.

A utopia Modernista na Barra da Tijuca

O Plano de Lúcio Costa para a Barra da Tijuca tinha erros conceituais que hoje, em retrospecto, podem ser mais claramente criticados. Uma das ideias, por exemplo, era de formar “núcleos autônomos”, com blocos residenciais também ocupados por escolas e comércio, onde os habitantes poderiam fazer de tudo sem grandes deslocamentos.

Hoje sabemos que cidades permitem ganhos de escala justamente devido à aglomeração urbana e, por definição, não é possível gerar núcleos autônomos e, ao mesmo tempo, o aproveitamento dos ganhos de escala de uma grande cidade.

Segundo Alain Bertaud, podemos pensar a dinâmica das cidades como mercados de trabalho, analisando quantas oportunidades de emprego existem em um raio de deslocamento de uma hora. Ao limitarmos nossas opções a um pequeno núcleo autônomo, o resto da cidade é desconsiderado, como se coincidentemente o trabalho do morador e a escola escolhida para seus filhos fosse justamente dentro da sua micro-região.

Para Bertaud, “núcleos autônomos” não passam de utopia, algo que nunca foi observado em uma grande cidade e que persiste apenas nos planos urbanísticos no papel.

Plano de Lúcio Costa para a Barra da Tijuca
Plano de Lúcio Costa. (Imagem: Memorial das Olimpíadas)

Ainda, o Plano tentava ser cosmopolita e bucólico ao mesmo tempo, objetivo inatingível dada a divergência de ambos objetivos em sua natureza. No mesmo trabalho de Luciana Gomes da Costa entendemos que, “Lúcio Costa almejava que nascesse na região da Baixada de Jacarepaguá um novo pólo Distrito Central Financeiro (CBD – Central Business District) para contrabalançar com a região central (o atual Centro da Cidade)”.

Por outro lado, a geógrafa explica que, de forma a preservar a natureza e a paisagem, principalmente em áreas de dunas, os índices construtivos foram limitados significativamente, permitindo apenas mansões residenciais em grandes terrenos.

A triste ironia desta estratégia é que, ao limitar as densidades construtivas, a ocupação populacional acaba sendo mais rarefeita e espalhada no território, ocupando e transformando muito mais áreas verdes do que se tal restrição não existisse.

Deturpação do plano ideal?

Ao analisar o resultado do planejamento de Lúcio Costa sobre a Barra da Tijuca, há um certo consenso de urbanistas da atualidade de que não se produziu uma cidade mais humana como havia sido proposto. Mesmo o mercado imobiliário, quase meio século depois, continua precificando a Zona Sul acima da Barra da Tijuca, mostrando preferência dos cidadãos pelo seu urbanismo mais dinâmico.

Hoje se há críticas a serem feitas para a Barra, muitos atribuem os problemas à deturpação do plano de Lúcio Costa. Incorporadoras teriam pressionado pelo aumento dos gabaritos, gerando torres mais altas. Os lançamentos também teriam sido destinados às classes médias e altas, excluindo a classe da população mais pobre.

Contribuindo a isso, muitos dos terrenos foram cercados, prejudicando ainda mais o espaço público. No quesito mobilidade, a Avenida das Américas deveria ter sido expressa sem sinais de trânsito ou cruzamentos, e deveria ter um metrô ligando a Barra ao resto da cidade — linha que só foi implementada em virtude dos recentes eventos da Copa do Mundo e das Olimpíadas.

No entanto, é preciso apontar que as principais causas de descolamento com as teorias contemporâneas de urbanismo já estavam determinadas no plano original. Grande parte da área já era reservada para mansões, com baixo aproveitamento do solo, assim como as torres isoladas eram intrínsecas ao conceito, lembrando o Plano Piloto de Brasília.

E ao desenvolver uma área de uma só vez, oferecendo apenas empreendimentos novos, se limita a capacidade de atender populações de rendas mais baixas, que normalmente ocupam unidades em edificações mais antigas, depreciadas ao longo do tempo.

Praia da Barra da Tijuca
Praia da Barra da Tijuca. (Imagem: Mark Benger/Flickr)

Caso as vias fossem desenhadas para serem mais rápidas, teríamos ainda mais incentivos ao uso do automóvel individual que vemos hoje, o que não teria efeito a longo prazo dado que induziria a demanda de ainda mais carros.

Quanto ao metrô, seria economicamente impensável realizar a obra de infraestrutura mais cara de mobilidade para uma região que tinha baixa demanda de moradores até pouco tempo atrás. Mesmo hoje, com a região relativamente consolidada, o metrô dificilmente se viabiliza pela relativa baixa densidade demográfica ao longo da linha.

Além disso, o modernismo urbanista errava no próprio entendimento da cidade, considerando-a um grande projeto arquitetônico que chegaria a um resultado final estático, ignorando as dinâmicas de mercado, enquanto cidades são processos que constantemente mudam ao longo do tempo, influenciadas pelo mercado.

Por exemplo, independente do que estava desenhado no papel, empresas não se estabeleceram na Barra da Tijuca desde a sua formação simplesmente porque era uma área inadequada de acessibilidade aos colaboradores.

Não devemos culpar o Lúcio Costa pois, afinal, ele apenas implementou o que, na época, havia de melhor sobre teoria urbanística. Também não podemos descartar que, evidentemente, muitos moradores gostam da vida na Barra da Tijuca.

No entanto, é preciso reconhecer erros do nosso urbanismo modernista para possibilitarmos um desenvolvimento urbano direcionado a cidades mais sustentáveis, acessíveis, humanas, dinâmicas e diversas. Assim, quem sabe, teremos mais Ipanemas e Leblons se espalhando Brasil afora.

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