Moderna pelo avesso: o processo de urbanização brasileiro
Imagem: Arquivo Nacional do Brasil.

Moderna pelo avesso: o processo de urbanização brasileiro

Confira nossa entrevista com Heloisa Espada, curadora da exposição Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890-1930.

21 de setembro de 2022

No dia 13 de setembro (terça-feira), o Instituto Moreira Salles, em São Paulo, abriu a exposição Moderna pelo avesso: fotografia e cidade, Brasil, 1890 – 1930. Com entrada gratuita, a mostra apresenta a produção fotográfica realizada em algumas das principais capitais do país — Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Belém — durante a Primeira República, de 1889 a 1930. 

A exposição traz registros excepcionais do processo de urbanização brasileiro e documenta reformas que mudaram a face das nossas cidades, interferindo não só na paisagem, mas também no modo como as pessoas habitam e interagem no espaço urbano.

Confira a entrevista exclusiva com a curadora Heloisa Espada:

Caos Planejado: Como surgiu a ideia da exposição?

Heloisa Espada: Desde 2020, estamos conversando no IMS sobre o centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. A fotografia e o cinema não estiveram presentes na Semana, e nossa explicação é que a fotografia daquela época ainda não era reconhecida como um movimento de vanguarda. 

Quando se fala em fotografia moderna no Brasil, em geral, se fala já da década de 1940, 1950… Sempre tive o incômodo de pensar a ideia de modernidade no contexto da Primeira República (1889 – 1930), que foi um período muito conflituoso, de balizas sociais e econômicas muito arcaicas, e, ao mesmo tempo, é o momento que as cidades crescem, com imigrantes, com a industrialização, a instalação de luz elétrica. É ali que foram lançadas muitas das estruturas que orientam como a gente vive e se movimenta nas cidades.

É um incômodo pensar o que a gente pode considerar moderno em um país como este, que é um território gigantesco, com uma história de muita violência, de povos que não conversam. A própria abolição da escravatura ocorreu em 1888, apenas um ano antes da Proclamação da República, e o que se seguiu foi um projeto eugenista de embranquecimento do Brasil com a vinda de imigrantes europeus. Com a ausência da fotografia na Semana de 22, e com o desafio de falar de Modernismo com essas contradições, achei que devíamos falar de fotografia.


CP: Com tantos temas que esse período histórico oferece, porque você decidiu centrar a mostra no desenvolvimento das cidades?

Heloisa Espada: A fotografia desse período tem um viés patrimonialista, de empresas multinacionais que atuavam na modernização das cidades, instalação de iluminação pública, bondes elétricos, telefonia. E as obras que elas executavam eram fotografadas. Ou então temos a fotografia oficial, contratada pelo Poder Público, que procurava mostrar o quanto o Estado estava modernizando o país. Um exemplo é a coleção da Brascan, que tinha sede no Canadá, mas reunia empresas inglesas, americanas… e que foi responsável por grandes reformas urbanas no Rio de Janeiro e São Paulo no início do século.

A aglomeração de pessoas em uma cidade grande muda o ritmo da vida, muda muito a maneira como as pessoas se relacionam com o mundo, com a natureza, a velocidade das coisas. A exposição procura mostrar, culturalmente, como essas cidades foram impactadas e como a fotografia participou desse projeto de modernidade.

Homens conversando em banco de praça, São Paulo
Homens conversando em banco de praça, São Paulo, SP, c. 1910. (Crédito: Vincenzo Pastore (Casamassima, Itália, 1865 – São Paulo, SP, 1918). Acervo Instituto Moreira Salles/Coleção Vincenzo Pastore)

CP: Podemos dizer que a fotografia nesse período era usada como propaganda política?

Heloisa Espada: Com certeza. O Poder Público percebeu rapidamente o poder de persuasão, de convencimento da fotografia e do cinema. Então isso é o grosso da fotografia no Brasil nesse período, principalmente nas décadas de 1910 e 1920. Você vai em todas essas prefeituras, como Belém, eles contratavam os principais fotógrafos da época para mostrar Belém como se fosse a Paris dos Trópicos. Olha, Belém era chamada de Paris das Américas, Recife era chamada de Veneza Americana, estavam sempre querendo se mirar nessa modernidade europeia. O que a exposição tenta fazer é furar essa bolha, com fotografias que conseguem dar uma visão mais ampla do que era a vida nessas cidades nesse momento.


CP: Tivemos acesso a algumas fotos e o material é realmente incrível. Foi muito difícil reunir esse acervo?

Heloisa Espada: Comecei a pesquisa no acervo do IMS, que tem sobretudo fotografias do Rio de Janeiro. Eu não queria que a exposição falasse só do Sudeste, então pesquisei seis cidades para entender que fotografia era produzida nesses lugares nesse momento (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Recife e Belém). 

Nós criamos um grupo de pesquisa com colaboradores nas seis cidades, que fizeram uma pesquisa prévia. Depois disso, eu fui até lá e entrei nos arquivos, o que foi uma loucura, porque no Brasil a situação dos arquivos públicos é muito precária, pouca coisa está catalogada. Você entra sem ter como se guiar no acervo e fica lá horas e horas olhando com a ajuda de alguém. Descobrimos também algumas coleções particulares, aí a gente se mete na casa das pessoas, tenta entrar.


CP: Gostaríamos de saber mais sobre o que você descobriu em cada cidade. Podemos começar pelo Rio de Janeiro?

Heloisa Espada: No Rio de Janeiro, houve a derrubada do Morro do Castelo, no centro da cidade. O morro foi o local de fundação do Rio, onde os jesuítas se instalaram no século XVI e construíram uma igreja. A exposição traz imagens de Augusto Malta, fotógrafo da prefeitura do Rio, e Guilherme Santos, um amador, sobre a derrubada do Morro do Castelo. E mostramos também fotos realizadas por João Martins Torres do famoso “bota-abaixo” que derrubou milhares de casas e antigos estabelecimentos comerciais no centro do Rio, entre 1903 e 1908.


CP: E sobre São Paulo?

Heloisa Espada: Em São Paulo nós temos o trabalho do Aurélio Becherini, que fotografou a cidade no início do século XX e as reformas no Vale do Anhangabaú. Mas interessa bastante um conjunto que o IMS tem do Vincenzo Pastore, um imigrante italiano que fotografou as ruas do Centro, o comércio de rua, mostra uma população negra ali trabalhando, e em momentos de lazer. É totalmente o avesso da visão oficial, ali a gente vê uma diversidade da população.


CP: E em Porto Alegre, o que se destaca?

Heloisa Espada: No Rio Grande do Sul, o destaque é o Virgílio Calegari, um imigrante que tinha um estúdio, e era o fotógrafo mais importante de Porto Alegre naquele momento. Ele era um retratista de primeira, e tem um trabalho muito revelador da moda da época, da relação entre a moda e a arquitetura, que era totalmente eclética, exagerada, rocambolesca. Temos fotos das grandes feiras, daquelas feiras internacionais que eram feitas para fomentar o comércio. Ele fotografava também o teatro, a classe teatral.


CP: Agora podemos falar de Belém.

Heloisa Espada: Em Belém o destaque é o Jacques Huber, um botânico suíço que trabalhou no Museu Emílio Goeldi. Ele contextualiza a natureza com a vida na cidade, então ele mostra que Belém era uma cidade no meio da selva, ao contrário da propaganda oficial. Só que ele tem um conjunto de fotos da procissão do Círio de Nazaré em 1902. E aí a gente vê o quanto era uma festa sincrética, da cultura negra com a cultura católica. Você vê que era uma festa da população negra. Ele se interessou por esse tema, mostrou a população bem de perto.


CP: Você comentou que a mostra de Recife é um ponto alto da exposição. O que você encontrou?

Heloisa Espada: Em Recife temos dois conjuntos que são os principais. O conjunto do Francisco du Bocage, que são as reformas do Recife Velho, com as derrubadas. E temos um amador chamado Francisco Rebello, um indiano da província de Goa, que chegou ao Brasil em 1917. Para mim esse é o maior achado da exposição. A gente tem a população de Recife comendo nas ruas, vivendo nas ruas, o comércio. E ele fotografou o frevo, o carnaval de rua do Recife na década de 20. E aí também tem uma população negra que emerge, pessoas de várias origens.

Carnaval; sombra de folião, praça da Independência, Recife
Carnaval; sombra de folião, praça da Independência, Recife, PE, 1928. (Crédito: Francisco Rebello (Margão, Índia, 1890 – Recife, PE, 1965). Coleção Francisco Rebello)

CP: Nem todo mundo sabe que Belo Horizonte é uma cidade planejada, que foi fundada em 1897. A exposição tem fotos da construção da cidade?

Heloisa Espada: Em BH houve uma comissão de fotógrafos para registrar a construção. É uma fotografia muito oficial, muito formal. E o que a mostra traz de interessante é BH como polo do cinema. Há uma das cenas mais antigas do cinema nacional que sobreviveram, do cinegrafista Aristides Junqueira mostrando a própria família. 

E depois a gente tem o Igino Bonfioli, que tem um filme chamado Cerâmica Horizontina (1920). E o filme foi concebido como publicidade, para mostrar a modernidade da fábrica. Mas o que a gente vê no filme é trabalho infantil. A própria fábrica o contratou para produzir essa propaganda, o que mostra que naquele olhar, trabalho infantil não era um problema. 


CP: Vou abrir agora para você dar o seu recado e convidar nossos leitores para a exposição.

Heloisa Espada: É uma exposição sobre a fotografia no Brasil durante a Primeira República (1889 – 1930), que fala de um território conflituoso e de uma ideia de modernidade que é ambígua e cheia de contradições. E a exposição é sobre o presente, não é sobre o passado. Eu vejo muitas semelhanças entre o nosso momento atual e esse momento do início da República no Brasil. Estou trazendo vários assuntos que são contemporâneos através dessas fotos.

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