Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
O que vem causando a falência de um sistema que atende, literalmente, milhões de brasileiros, todos os dias?
3 de julho de 2017Críticas ao Sistema de Transporte Público brasileiro não são novidade. Há anos ele é fonte de reclamações da população — em especial ao compararmos a qualidade do serviço ao valor cobrado. O que, no entanto, vem causando a falência de um sistema que atende, literalmente, milhões de brasileiros, todos os dias?
O problema começa quando a tarifa do transporte coletivo é baseada nos custos do sistema, e não nas necessidades do mercado. Isso gera um círculo vicioso que começa na perda de demanda, gerando redução de receita e aumento no custo médio por passageiro transportado. Essa queda na demanda gera outras quedas, na produtividade e na rentabilidade das operadoras do transporte coletivo. Menor produtividade, por sua vez, resulta em desequilíbrio financeiro, levando ao aumento da tarifa e à perda da qualidade e competitividade do serviço. Por fim, o transporte público perde demanda. dando início, mais uma vez, ao circulo vicioso. Dessa forma, pode-se inferir que as principais causas para o aumento das tarifas nos últimos 15 anos foram a perda de produtividade e a perda de demanda pagante, retroalimentadas pelo próprio aumento gradual da tarifa e, também, pelo aumento de custo dos principais insumos do setor.
A segunda causa é de ordem jurídica, simbolizada pelas constantes quebras contratuais originadas pelo congelamento das tarifas. Os contratos de concessão do serviço de transporte público apresentam, de um lado, cláusulas exorbitantes que atribuem à Administração Pública poderes desiguais em relação ao particular contratado — mas, por outro lado, elas asseguram ao particular o direito subjetivo à preservação do equilíbrio econômico-financeiro. Na maioria dessas concessões, a remuneração do concessionário provém apenas das tarifas pagas pelos usuários, somadas a receitas extraordinárias eventualmente auferidas no decurso da atividade explorada.
O congelamento das tarifas agrava a situação ao fazer com que os operadores percam a capacidade de custear o serviço, levando o sistema a um desequilíbrio que poderia ser mitigado pelas seguintes alternativas:
(i) a redução das obrigações de investimento impostas às concessionárias, de forma a reduzir os ônus por elas arcados;
(ii) a redução da oferta dos serviços concedidos, de forma a compatibilizar a remuneração recebida com as obrigações impostas.
Essas possibilidades, aliás, não são auto excludentes, podendo, perfeitamente, ser aplicadas simultaneamente — entretanto, ambas potencializam o círculo vicioso.
Assim surge o maior desafio dos sistemas custeados exclusivamente pela tarifa: aumentar a qualidade dos serviços sem grandes reflexos nos reajustes tarifários, em um ambiente de insegurança jurídica.
Todas essas questões demonstram o forte caráter de insustentabilidade do sistema brasileiro, em especial com o aumento da competitividade do transporte individual — os sistemas de transporte público não encontram, no modelo atual de financiamento, condições de reverter essa perda de competitividade, já que os usuários já se encontram no limite da sua capacidade de pagamento.
Outra mostra da ineficiência do modelo atual é a forma encontrada para custear as viagens gratuitas ou com descontos tarifários. Em geral, no Brasil, não há recursos extra destinados ao custeio das gratuidades — o que significa, na prática, que o usuário pagante cobre essa parcela por um mecanismo de subsídio cruzado. Ou seja, um grupo de usuários paga mais para financiar o benefício dado a outro grupo de usuários.
Este ponto evidencia a maior iniquidade das políticas de concessão de gratuidades no transporte público. A falta de critérios sociais, como condição de renda, na concessão de benefícios tarifários, resultou no financiamento de passagens de pessoas de alta renda pelos usuários de baixa renda. Isso ocorre, por exemplo, na gratuidade de idosos, que é universal, e na concessão de benefícios estudantis quando não há critérios mínimos de renda. É uma política “Robin Hood ao inverso”, onde há transferência de renda dos mais pobres para os mais ricos.
O modelo tarifário atual é incapaz de atender a essas demandas sem que haja fortes impactos sobre a renda dos usuários. A tarifa não comporta o peso do investimento em infraestrutura e não é adequada para sustentar mudanças drásticas no nível de oferta e qualidade dos sistemas. Reajustes acentuados sempre são seguidos de forte reação popular.
Isso significa, na prática, que o atual modelo de preço público para a tarifa vem destruindo o Sistema de Transporte, seja na degradação do serviço para os usuários, seja na falta de rentabilidade e na insegurança jurídica para os operadores. Uma das principais causas disso é o desrespeito dos contratos firmados com os concessionários por parte dos governos, que definem as tarifas por motivações políticas e impõem medidas populistas de gratuidade ou descontos para grupos escolhidos a dedo. Isso nos leva à seguinte reflexão: qual seria o empreendedor que, em sã consciência, investiria sob essas condições?
No formato atual, o Sistema de Transporte brasileiro está fadado a repetir seus erros, aumentando a crise pela qual já passa. Essa sucessão de falhas é sentida na pele por quem sustenta o modelo: o contribuinte. É hora de pensarmos em novos modelos, que tirem o risco do desequilíbrio econômico-financeiro das mãos do contribuinte, e passem às mãos do operador/empreendedor.
Miguel Angelo Pricinote é Gerente de Planejamento e Qualidade do Serviço na Viação Reunidas, e integrante do Comitê Diretor da Associação Nacional dos Transportes Públicos, ANTP/Centro Oeste.
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Mas é justamente o problema vivenciado pelo transporte público. As tarifas de forma geral no país são elaboradas por meio do rateio dos custos do sistema pela quantidade de passageiros pagantes. E isto faz com que um serviço mais módico seja o de pior qualidade.
Parabéns pelo artigo! Particularmente, não vejo como causa raiz a questão de ser baseado nos custos e não nas necessidades do mercado. Se em condições praticamente deficitárias a demanda cai cada vez mais, quem garante que observando as necessidades do mercado essa queda não seria observada também, e igualmente acentuada?
Penso que, doa a quem doer, e ainda que fira um pouco muitos dos meus pensamentos liberais, nesse ponto entendo que uma das melhores formas de aumentar a demanda seja criando barreiras para o transporte privado, que financiarão o transporte coletivo. Pedágios urbanos, rodízios, zonas livres de carros privados, ISS no máximo para serviços de estacionamentos ou afins, estacionamento rotativo com valor mais alto (ou inexistente), entre outros.
Aí, aproveitando a metáfora, criamos o Robin Hood “correto”. Criamos duas situações: uma é que o transporte privado deixa de ser financeiramente interessante, fazendo mais pessoas utilizarem o transporte coletivo em razão de custos – o que se observa, por exemplo, em grandes capitais brasileiras, que acabam absorvendo uma boa quantidade de pessoas no transporte público em determinadas áreas em função do custo abusivo de estacionamento. Com mais usuários, mais diluído fica o custo fixo, mais eficiente fica o sistema, e mais os custos abaixam. A outra situação criada é o do financiamento dos investimentos em infraestrutura do transporte público pelos usuários do transporte privado. Uma forma de arrecadação que não existia antes é criada, e seus valores integralmente destinados ao transporte coletivo. Com melhoria da infraestrutura, como em corredores de ônibus de qualidade, o transporte novamente fica mais eficiente, com menos filas, mais atrativo ao usuário, os custos de manutenção diminuem, e algo positivo é criado.
Claro que para chegar num estágio de transporte coletivo gratuito (ou MUITO barato) provavelmente será necessário algum subsídio estatal, mas é possível também numa análise ainda maior estudar qual o impacto financeiro que isso terá na saúde pública e produtividade do cidadão. Afinal, a poluição tende a diminuir, os acidentes tendem a diminuir, as pessoas tendem a utilizar mais a cidade, e por aí vai.
Muito bom o artigo! Amplia a nossa visão a respeito do modelo tarifário do transporte público. Mas é sempre importante considerar quem é o autor de qualquer texto escrito e, neste caso, é um operador de transporte público. Gostaria de, gentilmente, acrescentar alguns pontos que também acontecem: falta de transparência de muitos operadores para fornecer dados reais da operação (a famosa caixa preta); atuação predatória por parte de alguns operadores contra outros operadores; transformação do transporte público em negócio de compra e venda de ônibus, perdendo o foco do atendimento à população. No meio dos erros e acertos do poder público e operadores, a população tenta ser ouvida por meio de protestos. Diante disso, percebo que o nosso país ainda precisa amadurecer bastante em como trabalhar os seguintes três pontos de equilíbrio de uma concessão de serviço público: 1) Equilíbrio Econômico, Social e Ambiental; 2) Equilíbrio Técnico; 3) Equilíbrio Financeiro do Contrato.
Muito obrigado pelo elogio e comentário. Acredito que tanto para questão da “caixa preta” e também em relação a atuação predatório por alguns operadores deixariam de existir se as concessões fossem simplificadas/flexibilizadas passando o risco de mercado (demanda/ tarifa/ equilíbrio) para os operadores e não da sociedade como ocorre atualmente.
O tema do texto é muito relevante, de fato! A forma como se analisa o tema, é uma piada. Por ser uma concessão pública, o centro da discussão precisa estar centrado na qualidade do serviço, incluindo sua abrangência. O preço da tarifa não pode ficar refém do número de usuários, visto que o sucateamento e por consequência perda de usuários é a regra no país. Precisamos falar de tarifa baseada na distância percorrida! E se quisermos ir além, empresas públicas de transporte, que desmontem os cartéis, comuns em tantas cidades brasileiras.