Menos planejamento, mais gestão urbana
Imagem: Mariana Gil/EMBARQ Brasil.

Menos planejamento, mais gestão urbana

A cada dez anos, os municípios estabelecem seus planos diretores. Após sua implementação, no entanto, raramente se mede seu impacto ao longo do tempo.

22 de julho de 2019

A prática do urbanismo nas cidades brasileiras segue mais ou menos o seguinte modelo: a cada dez anos, municípios estabelecem ou revisam seus planos diretores, com pequenos ajustes pontuais durante esse longo período. Os planos — ao lado das leis de uso e ocupação do solo entre outras centenas de regras que impactam no desenvolvimento urbano — são legislações que tentam descrever as estratégias de crescimento e consolidação do desenvolvimento urbano de cada cidade.

É comum essas estratégias serem um tanto vagas ou mesmo conflitantes: buscam objetivos como sustentabilidade, “habitabilidade”, crescimento econômico, acessibilidade à moradia, preservação urbana-ambiental e do patrimônio histórico, sem quantificar nem estabelecer prazos para tais objetivos. Taticamente, regras são estabelecidas referentes a potenciais e parâmetros construtivos, mapas são elaborados definindo cada zona e seus objetivos e desenhos são apresentados de como os planejadores gostariam que a cidade se tornasse. Diferentemente do que muitos pensam, no Brasil existe planejamento urbano demais: cidades possuem leis, planos e regras sobre espaços públicos e privados que chegam a somar milhares de páginas.

Sem responsáveis

Após a implementação das regras, no entanto, raramente se mede o impacto delas na cidade ao longo do tempo. Planejadores urbanos, relatores do plano, prefeitura e vereadores que determinam e aprovam as leis não são responsabilizados pelos resultados de fato. Se o plano “deu errado”, é comum atribuir a responsabilidade à própria população, com a justificativa de que o mercado não respondeu da forma que se imaginava.


Se o plano “deu errado”, é comum atribuir a responsabilidade à própria população, com a justificativa de que o mercado não respondeu da forma que se imaginava.


Via de regra, o gestor público vê a aprovação do plano ou de uma lei como uma conquista em si, como se o resultado já estivesse consumado, e torna-se um observador passivo durante dez anos de desenvolvimento urbano. Passado esse período e sem dados para corroborar decisões, não surpreende a raridade de se fazer qualquer tipo de avaliação do que o plano anterior gerou, com poucos critérios objetivos para embasar as mudanças na proposta do novo plano ou de novas leis.

Falta de acompanhamento

O conceito da gestão urbana tem uma postura diferente. O planejamento é uma diretriz mais estratégica e menos detalhada onde se tenta prever o crescimento da cidade baseado na realidade, e não nas ambições do planejador. Diante disso, é estabelecida uma série de métricas que poderiam ser acompanhadas para entender a cidade a cada momento, facilitando a tomada de decisões.

Na área de moradia, qual a taxa de crescimento populacional e de renda per capita da cidade? Como isso afeta a demanda por espaço construído? Qual o preço dos imóveis de diferentes tipos e regiões na cidade? Qual a taxa de vacância em imóveis públicos e privados? Qual o motivo da sua vacância? Qual o número de habitantes morando em comunidades informais, ou favelas? Como isso está evoluindo ao longo do tempo? Quanto tempo é levado para licenciar uma nova construção? Em mobilidade, qual o tempo médio dos deslocamentos por cada modo de transporte? Quantos empregos podem ser acessados em um raio de uma hora de cada ponto da cidade? Qual o índice de caminhabilidade das ruas, e não apenas o de fluxo de veículos? Quantas transferências os passageiros de transporte público estão fazendo? Qual a lotação dos veículos? Qual a proporção entre espaço público e privado em diferentes áreas da cidade?

A partir de indicadores dessa natureza é possível estabelecer metas para cada um deles, e projetos para cada uma destas metas. Infelizmente, na realidade brasileira, tais indicadores raramente são medidos, muito menos acompanhados ou usados para estabelecimento de metas, mesmo em algumas das maiores cidades.

Indicadores claros

Gestores urbanos deveriam acompanhar os indicadores diariamente e estabelecer metas quantificáveis e viáveis, de acordo com a realidade do que ocorre no dia a dia da cidade. Apenas dessa forma é possível avaliar se os planos e as legislações vigentes estão produzindo os resultados desejados, entender quais as principais “alavancas” para influenciar cada métrica e quais regras estão comprometendo o atingimento dos objetivos. O sucesso virá da melhoria dos indicadores medidos do mundo real, e não da aprovação de leis que podem inclusive gerar resultados negativos para a cidade.

Hong Kong disponibiliza abertamente inúmeros indicadores urbanos. (Imagem: Ryan McManimie/Unsplash)

Algumas cidades do mundo afora podem servir de inspiração. Hong Kong, um exemplo mundial de gestão urbana, utiliza e disponibiliza abertamente dados como: percentual de utilização de terra para cada uso, razão entre aluguel e renda como fator de acessibilidade à moradia, preço médio de imóveis comerciais e residenciais, tamanho médio por unidade de moradia e tipo de transporte para escola ou trabalho dividido por faixa etária e gênero. Singapura, na mesma linha, monitora uma série de indicadores e publica anualmente um relatório com dados semelhantes. Grandes cidades chinesas, como Xangai, embora não disponibilizem os dados na internet, utilizam objetivos quantitativos como acesso a áreas verdes per capita, projeções de unidades de habitação construídas na cidade e percentual de deslocamentos a pé, de bicicleta ou utilizando transporte público — no caso, com objetivo de chegar a 80%.

Gráfico dos índices de preços e aluguéis de unidades domésticas privadas em Hong Kong. Extraído do relatório do Departamento de Censo e Estatística de Hong Kong.

Sem um sistema de indicadores de gestão urbana não podemos avaliar o resultado dos nossos planos, muito menos criticá-los de forma embasada. Discussões acontecendo hoje a respeito da revisão dos planos diretores de grandes cidades brasileiras se tornam inócuas, dada a falta de dados para entender que problemas existem e quais as consequências dos planos sendo implementados. Os objetivos não são claros e as formas de atingi-los menos ainda. O cidadão brasileiro normalmente critica a falta de planejamento nas suas cidades: isso não é verdade. Planejamento temos de sobra, e o que está faltando é gestão urbana.

Texto publicado originalmente em Revista VOTO em 19 de junho de 2019.

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