E se a bicicleta fosse inventada nos dias de hoje?
Imagem: Mariana Gil - EMBARQ Brasil/Flickr.

E se a bicicleta fosse inventada nos dias de hoje?

Atualmente o cerco burocrático aperta o uso do patinete elétrico, enquanto que o governo federal flexibiliza as leis de trânsito para os carros.

29 de julho de 2019

A bicicleta é um meio de locomoção bastante simples e que se utiliza apenas da própria força do usuário para realizar a movimentação por pequenas e médias distâncias, sendo, portanto, um elemento ideal para os centros urbanos mais adensados. Apesar da documentação sobre a invenção da bicicleta ser contraditória — pois gênios e inventores como Leonardo da Vinci e Lu Ban criaram protótipos semelhantes à bicicleta —, a versão mais aceita para a sua criação se dá na Alemanha, pelo Barão Karl von Drais.

Segundo a documentação oficial, o Barão, no século XIX, projetou um brinquedo de madeira e rodas, cuja estrutura inspirou e deu origem às bicicletas modernas. Com o tempo, diversos materiais e novos mecanismos foram inseridos na bicicleta. Em centros urbanos adensados, como os europeus e asiáticos, a bicicleta funcionou e funciona como um importante meio de locomoção. Mas, o que aconteceria se a bicicleta tivesse sido inventada nos dias atuais?

Projeto pioneiro do Barão Karl von Drais, inspiração para as bicicletas
Projeto pioneiro do Barão Karl von Drais, inspiração para as bicicletas. (Imagem: Gun Powder Ma/Wikimedia)

Importância da bicicleta na locomoção ao longo da história  

A bicicleta foi, conforme destacamos anteriormente, um instrumento fundamental para a locomoção em centros urbanos densos, como na Europa. De preço acessível e com uma dirigibilidade bastante satisfatória — com uma bicicleta era possível ir a praticamente todos os locais e entrar em qualquer rua estreita. A bicicleta, portanto, era um símbolo de liberdade e de igualdade, sendo utilizada pelas mais diferentes classes sociais.

Todavia, no início do século XX, tivemos a invenção e a popularização do automóvel. E, posteriormente à invenção do automóvel, o poderoso lobby da indústria automobilística. Ele influenciou a forma e legislação urbana, inibindo outras alternativas de transporte, incluindo a própria bicicleta, o transporte público e até mesmo a locomoção a pé.

Desse modo, a bicicleta deixa de ser utilizada como um meio de transporte, especialmente nas Américas, uma vez que as novas cidades apresentavam, em geral, ruas largas para acomodar o tráfego rodoviário — e um ambiente hostil às bicicletas. Por outro lado, mesmo em centros urbanos consolidados, os governos locais encontraram um jeito para promover o automóvel, demolindo edificações em regiões centrais, como ocorreu em diversas cidades brasileiras durante a vigência da Ditadura Vargas.

A bicicleta passa então a ser vista como um objeto de recreação e produto quase que exclusivo para as crianças. Elas começam a sumir gradativamente das ruas e deixam de ser uma alternativa de transporte — pelo menos para o governo e as políticas públicas. Em muitos países europeus, dada a realidade urbana propícia, os usuários de bicicleta continuaram a existir, especialmente nas regiões mais antigas e populares, ainda que de forma mais escassa.

Em países periféricos na Ásia, África e América Latina, a bicicleta nunca deixou de ser uma alternativa real para os pobres trabalhadores, visto que o transporte público era — e é — ineficiente, e por muitas vezes inexistente. Além de ser uma alternativa de mobilidade, muitos a utilizam ainda como instrumento de trabalho (como é o caso do ‘bike-lanche’, muito comum no nordeste brasileiro), mesmo antes da recente valorização da bicicleta.

Todavia, com o crescente problema com trânsitos caóticos, governos de todo o mundo se viram na obrigação de estudar soluções para a questão. E boa parte dele poderia ser respondida por meio de um elemento muito conhecido por todos: a bicicleta.

O caso de Amsterdã

Ao longo da segunda metade do século XX, a bicicleta passou a ser revalorizada como meio de locomoção. A principal cidade catalizadora deste movimento foi Amsterdã, capital da Holanda. A cidade, cujo clima e composição urbana favorecem a circulação por meio de bicicletas, apresentava, até meados da década de 1970, um trânsito intenso e caótico, similar ao que possuímos na maioria de nossas cidades nos dias atuais.

Estacionamento em Amsterdã
Estacionamento de bicicletas em Amsterdã. (Imagem: Ted McGrath/Flickr)

Após um longo trabalho e implementação de políticas públicas, como a criação de ciclovias, estacionamentos públicos para bicicleta, além da limitação de vagas de estacionamento gratuito para automóveis. Estes fatores fizeram da bicicleta a alternativa mais viável para a locomoção.

A decisão também refletiu positivamente no trânsito. Atualmente a cidade conta com mais bicicletas do que habitantes (880 mil bicicletas e 780 mil pessoas), cerca de 32% das locomoções dentro da cidade são feitas de bicicleta, enquanto 22% são realizadas por automóvel e 16% por transporte público.

O caso de Copenhague

Além de Amsterdã, Copenhague, na Dinamarca, se destaca pela utilização da bicicleta em larga escala. O movimento neste país nórdico foi liderado por Jan Gehl, que implementou diversas políticas para transformar a cidade em um ambiente voltado para a escala humana.

Inspirado em ideias de Jane Jacobs e outros autores antimodernos, Jan Gehl foi um dos primeiros urbanistas a colocar tais ideias em prática — limitação de gabaritos das edificações, uso misto, fachada ativa, entre outros. Boa parte das suas ideias podem ser encontradas em sua principal obra, “Cidade para Pessoas”.

Apesar das críticas ao seu modelo de cidade, principalmente por impedir maiores índices de ocupação e tornar a capital da Dinamarca um lugar caro e hostil a novos moradores, Jan Gehl deixou contribuição no sentido de tornar a cidade mais orgânica, humana e sustentável. E a bicicleta teve papel importante neste processo. Atualmente, boa parte dos cidadãos da cidade a utilizam como principal meio de transporte.

Bicicleta em Copenhague
Copenhague. (Imagem: Mikael Colville-Andersen/Flickr)

Revalorização da bicicleta: o caso brasileiro

No Brasil, a implementação da bicicleta como alternativa real para transporte ocorreu de forma tardia. Isto se deve, principalmente, ao fato do país ter priorizado o automóvel de forma explícita ao longo de vários anos, além da maioria das cidades não ter uma malha urbana favorável para essa realidade, pois contam com uma imensa distância entre local de moradia e local de trabalho.

Todavia, conforme falamos anteriormente, usar a bicicleta como meio de locomoção sempre foi uma realidade em países periféricos como o Brasil. Logo de manhã cedo é possível ver, nas periferias de todo o Brasil, as pessoas indo trabalhar de bicicleta. Nos últimos anos, ligados por uma questão mais ambiental, jovens de classe média passaram a fazer o uso da bicicleta com a mesma finalidade.

Tal movimento pressionou as autoridades a criar as primeiras ciclovias no país fora de zonas estritamente destinadas ao lazer. Ao longo desta década observamos uma pequena revolução acontecer no centro expandido de São Paulo neste sentido. A resistência à introdução de ciclovias foi enorme, mas a cidade conta com cada vez mais ciclistas. Entretanto, apesar da resistência, a bicicleta sempre esteve presente na realidade da nossa sociedade, o que pode ter contribuído para que a oposição fosse reduzida entre os cidadãos e, principalmente, planejadores de nossas cidades.

Novas formas de transporte, burocracia e desafios para a nova realidade

Por conta da familiaridade com a bicicleta, ela não chegou a ser alvo de proibições claras como as que vêm ocorrendo aos novos modelos de transporte de curta distância, como é o caso dos patinetes elétricos. Somado a isso,  temos o fato de que a bicicleta, apesar do claro desincentivo ao seu uso, sempre foi uma alternativa real de locomoção, especialmente para as populações menos favorecidas.

Para justificar a proibição, autoridades brasileiras de diversos municípios utilizam os argumentos mais torpes, como inclusão de garantias que, na prática, inviabilizariam o negócio. São Paulo foi um dos primeiros municípios a formalizar tais exigências. No Rio de janeiro, uma proposta de lei tentava obrigar testes no Detran para que uma pessoa fosse habilitada a utilizar tal instrumento. Felizmente, o deputado, após repercussão negativa, desistiu do projeto de lei.

O movimento anti-patinete não se justifica na prática. Embora já se tenha relatos de mortes causadas pelo patinete elétrico, o número é tão baixo que não justifica tamanha burocracia criada para a sua utilização. Afinal, acidentes podem acontecer até mesmo para quem anda a pé, entretanto, por conta dos acidentes fatais serem mínimos, ninguém propõe que se torne obrigatório o uso de capacete para realizar caminhadas, por exemplo.

Além disso, este movimento é muito simbólico, pois enquanto o cerco burocrático e da lei aperta o uso do patinete elétrico, que chega no máximo a 25 km/h (velocidade facilmente alcançada por um ciclista), o governo federal toma medidas que vão no sentido contrário em relação ao automóvel, tornando mais flexíveis as leis de trânsito para os carros, que envolvem vítimas fatais diariamente no país.

Por outro lado, vale destacar esforços para viabilizar essa nova realidade de transporte em outras capitais brasileiras, como é o caso de Vitória, que regulamentou o uso compartilhado de vias para bicicleta e patinetes elétricos. O mesmo ocorreu em Florianópolis e em Belo Horizonte e as legislações se basearam em recomendações do Conselho Nacional de Trânsito (Contran).

Uso da via sendo compartilhado por bicicleta e patinete
Uso da via sendo compartilhado por bicicletas e patinetes elétricos. (Imagem: Yellow/Reprodução)

Por fim, vale destacar que ações como a da Prefeitura de São Paulo tendem a ser vencidas pelo tempo, assim como a repressão à Uber, logo quando a empresa chegou ao país. Não se trata do patinete-elétrico ou de aplicativos específicos que ofertam o serviço, mas de um movimento global que cria, dia após dia, novas alternativas para a questão da mobilidade urbana.

Estas novas alternativas são criadas a partir da união entre tecnologia e cultura digital, que permite maior propagação de ideias e soluções. Tal movimento, por ser extremamente dinâmico e descentralizado, não pode ser absorvido e compreendido de forma plena pelo nosso atual modelo de gestão urbana.

Tal inércia e últimos movimentos por parte de nossas autoridades e planejadores nos faz questionar: “E se a bicicleta fosse inventada nos dias de hoje?”. Diante de tudo que vem acontecendo e do que foi apresentado, não poderíamos imaginar algo diferente do que está ocorrendo com os patinetes elétricos. 

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  • Não sei se o contexto histórico e as demandas do público foram ignorados por desconhecimento ou para fortalecer o argumento equivocado de que houve um “lobby” favorável ao automóvel.

    A bicicleta foi, historicamente, uma alternativa de transporte no Brasil. Toda cidade industrial tem fotos antigas de ruas tomadas por bicicletas de trabalhadores nos horários de rush.

    O automóvel deve ser encarado como uma nova tecnologia quando se analisa o contexto histórico. Novas tecnologias surgem para melhorar nossa qualidade de vida. É evidente que trabalhadores que pedalavam sob chuva e sol darão preferência a uma nova tecnologia que traga conforto — tanto na locomoção, quanto na forma de tempo livre.

    Quando grande parte da população anseia algo, é natural que os líderes políticos sejam pressionados para atender estes anseios. Fazer o contrário é o que costumamos chamar de ditadura ou tirania.

    Temos que tomar cuidado com teorias que supõem o que seria melhor para a coletividade. O homem, desde que se organizou em sociedades, tendeu a equilibrar os prós e contras de tudo o que o beneficia. Damos a isso (entre outras coisas) o nome de cultura.

    Portanto, é, no mínimo, presunçoso, criar uma teoria de mobilidade melhor sem consultar as partes envolvidas na mobilidade: as pessoas.

    • Oi, Leo. Obrigado pelo comentário. Há grande documentação na literatura acadêmica urbana sobre o lobby efetuado pela indústria automotiva, ao longo do século XX, para financiar um novo modelo de cidade — adaptado ao carro. Aqui no Caos Planejado, temos diversos artigos nesse sentido, como: https://caosplanejado.com/jaywalking-como-a-industria-automobilistica-proibiu-atravessar-a-rua/.

      O uso da bicicleta e de políticas para permitir o seu uso não é tirania ou ditadura, mas apenas uma tentativa de tornar a mobilidade urbana mais eficiente. Amsterdam e Copenhague, por exemplo, são capitais com excelentes níveis de liberdade civil e econômica, e grande parte da população se locomove utilizando a bicicleta. Abs.