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Design vs. ordem espontânea na acessibilidade à moradia
Conheça exemplos de construção espontânea de moradia em Surabaya, Hanoi e Shenzhen, e como o planejamento urbano tomou partido de cada situação para integrá-las na cidade formal.
O que segue é a transcrição estruturada da palestra proferida por Alain Bertaud, pesquisador sênior do NYU Stern Urbanization Project e ex-urbanista chefe do Banco Central, na conferência anual do Development Research Institute da NYU no tema “Cities and Development: Urban Determinants of Success” (“Cidades e Desenvolvimento: fatores urbanos decisivos para o sucesso”) em novembro de 2014. O vídeo completo da palestra pode ser visto aqui.
O planejamento central é indispensável para se criar a infraestrutura primária no nível municipal. Ele deve ser criada utilizando a melhor estimativa disponível, sem haver pretensão de que possa ser otimizada com antecedência. No entanto, a expansão desse poder de planejamento para outras escalas do desenvolvimento urbano é prejudicial à capacidade de adaptação e regeneração da cidade no tempo, podendo até mesmo eliminar a espontaneidade das ruas.
A imposição de um consumo mínimo do solo, determinado pelo tamanho mínimo de lotes, e do consumo mínimo de área habitacional, determinado pela área mínima que uma moradia pode ter, gera um custo que muitos não podem pagar. O cálculo de quantas pessoas são prejudicadas por tais medidas raramente é feito pelos planejadores.
Mesmo quando programas de subsídio habitacional são anunciados, a quantidade entregue é sempre menor que o esperado, com um design rígido e impessoal. Quem não consegue receber o subsídio é obrigado a procurar uma alternativa, que muitas vezes significa morar em assentamentos ilegais. Embora a eliminação de moradias informais via despejo seja menos frequente que no passado, a realidade dessas comunidades ainda é permeada pela falta de água tratada, esgoto, coleta de lixo, drenagem pluvial e transporte público. Além disso, os proprietários desses imóveis não podem participar do mercado imobiliário formal, não podendo celebrar contratos protegidos pela justiça nem obter financiamentos bancários.
No entanto, alguns governos não impõem regulações tão minuciosas, conscientemente ou não. Os kampongs em Surabaya, na Indonésia, são rodeados por comércio e por vias arteriais, possuindo no seu interior pequenas ruas residenciais de quatro a cinco metros de largura em que somente um carro pode passar, e pequenas vielas de menos de dois metros que acessam o centro das quadras. A vantagem disso é que todos consomem de acordo com sua renda, havendo uma grande diversidade socioeconômica, sem exclusão provocada por limites mínimos de consumo impostos pelo governo, de modo que possam viver mais próximos do centro da cidade e de seus trabalhos, tendo acesso à água tratada, rede sanitária e pluvial, coleta de lixo, escolas etc, assim como os bairros adjacentes de classe média.
Outro exemplo de urbanização espontânea vem de Hanoi, no Vietnam, onde comunidades agrícolas tiveram suas terras expropriadas, mas podendo manter o terreno onde ficavam suas casas. Nessas regiões, muitos proprietários seguem a tradição de construir a “laje” sobre suas moradias, criando apartamentos de tamanhos e preços de aluguel adequados para caberem no bolso de novos imigrantes. Isso é possibilitado principalmente pela inexistência de regulação dos parâmetros urbanísticos.
Nesse caso também houve o bom senso do governo de construir a infraestrutura urbana ao redor dessas vizinhanças, sem promover despejos e outras intervenções, providenciando desde escolas e unidades de saúde até as vias principais de transporte.
Uma pequena parte da população ainda vive em habitações precárias, geralmente fora da área urbana, mas uma quantia relativamente satisfatória para uma cidade que experiencia um crescimento muito acelerado (Alain discorre sobre outros indicadores importantes para planejadores nessa entrevista concedida ao Caos Planejado).
O último exemplo é de Shenzhen, na China, onde ex-agricultores também tiveram suas terras expropriadas com casas mantidas, decidindo espontaneamente e coletivamente reestruturar por inteiro a área com a construção de vários edifícios de até cinco andares entre ruas de dois a três metros de largura, mostrando claramente a preferência por mais área habitável em detrimento a ruas mais largas. O entorno dessas comunidades é servido com avenidas que têm infraestrutura urbana completa, não ficando muito longe do próprio centro da cidade. O resultado é um aluguel muito barato, que atrai aqueles cuja alternativa seria morar longe da cidade e sem acesso a oportunidades.
As principais críticas a esse desenvolvimento se referem ao acesso dessas comunidades, dito sufocante e perigoso, que dificulta a entrada de ambulâncias e carros de bombeiro. Primeiro, é importante lembrar que a alternativa para essas pessoas não é uma casa no subúrbio, e sim uma moradia ilegal distante da cidade, a qual elas voluntariamente rejeitaram. Segundo, as comunidades acabam desenvolvendo sistemas capilares tanto para o socorro a vítimas quanto para a coleta de lixo, que troca de tipo de transporte algumas vezes até chegar às vias principais de acesso.
Muitos também alegam que os proprietários que construíram moradias para alugar nesses tipos de empreendimentos são inescrupulosos. Porém, se faz necessário lembrar que os inquilinos preferem essa alternativa aos programas governamentais, que geralmente oferecem uma única opção de moradia subsidiada na periferia distante da cidade. O mesmo tipo de comportamento é observado na região central de Paris, onde pessoas se mostram dispostas a comprar apartamentos de 9m² por meio milhão de dólares ao invés de casas maiores no subúrbio, justamente pela praticidade de se viver no centro da cidade.
É importante lembrar que a alternativa para essas pessoas não é uma casa no subúrbio, e sim uma moradia ilegal distante da cidade, a qual elas voluntariamente rejeitaram.
Após essas três histórias de sucesso, é bom fazer a ressalva que o desenvolvimento espontâneo nem sempre funciona do jeito que queremos, havendo resultados trágicos quando o governo ignora sua existência. Um exemplo disso é Cairo, onde o governo iniciou a construção de grandes empreendimentos habitacionais a mais de 29 quilômetros do centro da cidade ao invés de proporcionar infraestrutura urbana aos assentamentos informais que ficam a sete quilômetros do mesmo. Essas comunidades informais abrigam também famílias de classe média, que de toda forma não conseguem adquirir uma moradia nos padrões mínimos impostos por lei.
A solução proposta é abolir os padrões mínimos de moradia. Na própria cidade de Nova York, a regulação impede que se adicione uma cozinha ou que se anexe uma quitinete às casas existentes em muitas vizinhanças, impossibilitando que o bairro absorva novas demandas. Na maioria das vezes, essas regulações impositivas contam com o total suporte dos moradores locais, que querem impedir a entrada de novos habitantes em sua área.
Isso, no entanto, não tira a legitimidade do planejamento da infraestrutura, que precisa se basear em estimativas do uso futuro, mesmo que a exatidão nunca seja alcançada. O que não é aceitável é transformar essas projeções em regulações, impondo padrões mínimos ou máximos de construções.
Muitos planejadores argumentam que é necessário impor um limite ao desenvolvimento, sob o risco da infraestrutura planejada não ser suficiente para atendê-lo. Porém, o que eles não entendem é que o custo da troca de um cano de abastecimento, por exemplo, é ínfimo se comparado ao custo do solo que é inflacionado pela restrição ao desenvolvimento. Também, esses limites levam pessoas a procurarem moradia cada vez mais longe do centro da cidade, gerando custos elevados para se estender a infraestrutura urbana até lá e diminuindo a qualidade de vida de quem precisa se deslocar diariamente.
Para quem tiver maior interesse, o trabalho do Alain Bertaud pode ser conferido no seu site pessoal.
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