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Poluição ambiental e sonora, acidentes, congestionamentos e tempo perdido no trânsito: estes são comumente apontados como os principais custos sociais dos carros para as cidades. Entretanto, existe outro fator menos popular, mas potencialmente mais importante, os estacionamentos.
O livro “The high cost of free parking”, do professor aposentado da Universidade da Califórnia Donald Shoup, mostra que estacionamentos podem gerar um custo social relevante. Shoup mostra que o modelo de cidades centradas nos automóveis é irracional, onde se destina cada vez mais recursos e espaço para uma máquina que não é usada em 95% do tempo.
Assim, via de regra, quase metade das vias urbanas são destinadas para depósito deste gigantesco bem privado, enquanto a legislação proíbe que o mesmo seja feito com qualquer outro pertence pessoal, como barracas ou móveis. Já quando se trata de espaços privados, o automóvel também tem lugar de destaque. Por exemplo, na cidade de São Paulo, por vários anos, as vagas de garagem chegaram a ocupar uma área equivalente a algo próximo de 50% da área privativa dos novos edifícios residenciais.
Por sua vez, no Rio de Janeiro, quando se leva em consideração estabelecimentos comerciais e de serviços, os estacionamentos podem ocupar de 60% a 70% da área edificada. De forma que entre 2005 e 2016, o ITDP Brasil identificou que o espaço destinado a vagas de garagem, em edificações residenciais e comerciais, foi similar ao espaço destinado às habitações em edifícios.
Fica então a pergunta: Como foi possível chegar a cidades abarrotadas de estacionamentos? Teria sido um processo natural? Shoup explica que não. Existiram alternativas e disputas. Por exemplo, no caso dos EUA, por volta de 1930, surgiram diversas tentativas de desafogar as ruas, inclusive com a proibição pura e simples de qualquer estacionamento em via pública. Inclusive, hoje uma das capitais dos automóveis, Los Angeles, chegou a banir qualquer estacionamento em vias públicas por 17 dias.
Só que, infelizmente, acabou prevalecendo a ideia de que o automóvel era o meio de transporte a ser priorizado, o que implicou na proliferação de estacionamentos, alargamentos de ruas e na progressiva retirada de espaços de pedestres, ciclistas e usuários do transporte público. Dessa forma, com o intuito de tentar desafogar as vias públicas do problema que estavam criando, veio o segundo grande erro, que foi passar a obrigar os espaços privados a fornecerem um número mínimo de vagas para os carros.
Todavia, o problema não ficou apenas na criação dessa exigência. Donald Shoup aponta que os cálculos e critérios dos gestores na definição desse número eram extremamente frágeis. Para se ter uma ideia, muitas cidades apenas copiavam a regra de outras com realidades bem distintas (e que geralmente também haviam copiado de outro local).
Já no caso dos estudos ditos “técnicos”, não eram utilizados critérios estatísticos adequados e as amostras coletadas eram em locais distantes e de difícil acesso por transporte público, o que enviesava os resultados e fazia inchar as estimativas. A falta de critérios e parâmetros pode ser ilustrada pela diferença absurda de vagas exigida para uma sala de concerto musical nos EUA, onde Los Angeles requer como seu número mínimo de vagas, cinquenta vezes mais do que São Francisco requer como seu número máximo. Por fim, geralmente as aferições desses estudos eram realizadas em dia e horário de pico, o que seria como estimar a quantidade mínima de vagas no dia 24 de dezembro, véspera de Natal!
O resultado é que uma quantidade extraordinária de carros observada em um local virava o padrão mínimo para todo o resto, produzindo “desertos” de estacionamentos por toda a parte. Para se ter uma ideia, estudos apontam que, nos EUA, existem pelo menos de 3 a 4 vagas de estacionamento por automóvel. Algumas cidades produziram situações insanas. Por exemplo, Jackson, capital do Mississipi, tem por volta de 27 vagas de estacionamento para cada residência. E vale lembrar que, além desse espaço de vagas, é preciso adicionar o espaço de circulação e manobra, o que acaba por dobrar a área destinada aos veículos.
Desta forma, tem-se um processo de retroalimentação negativa. Mais carros leva a mais trânsito, a mais estacionamentos, à diminuição da densidade urbana e a maior espraiamento da mancha urbana. E com cada uma dessas variáveis se retroalimentando, após um tempo, o poder público entendia que era preciso um novo aumento na exigência do número mínimo de vagas.
No fim das contas, essa regra acaba estimulando a aquisição e o aumento do uso do automóvel. Afinal, se uma pessoa compra um apartamento que já tenha vaga de garagem, ela já absorveu esse custo, independentemente de ter ou não ter o veículo. Com isso, a aquisição de um novo carro fica mais atrativa e a cidade vai progressivamente se tornando menos convidativa para caminhadas, pedaladas e para o uso do transporte público.
Essa lógica também faz com que a oferta de imóveis por quarteirão diminua, ao mesmo tempo em que o custo de construção aumenta (vagas de garagem aumentam o custo da obra em até 25%), o que prejudica especialmente os mais pobres. Afinal, os aluguéis ou financiamentos ficam mais caros, o que empurra essas famílias para a periferia ou as fazem pagar por espaços que não utilizam, já que pessoas das faixas de renda de menor poder aquisitivo geralmente não possuem carros.
E esses preços mais altos não se limitam a gastos mais elevados com moradia. Diversos serviços e produtos ofertados terão o custo do estacionamento embutido nos preços, onerando injustamente os não usuários de carro. Como exemplo, Shoup cita estimativas de custos de capital e manutenção dos estacionamentos, na ordem de 1,2% a 3,7% do PIB norte-americano. Desse total, os motoristas pagariam somente de 1% a 4%, ou seja, 96% desse custo seriam subsídios pagos por pedestres, ciclistas e usuários dos transportes públicos.
Essas mesmas estimativas, comparadas com o total de outros gastos, ajudam a ilustrar o tamanho da injustiça. De acordo com Shoup, esse subsídio seria correspondente a algo entre 48% e 131% dos gastos pagos diretamente pelos motoristas, como gasolina, óleo, manutenção e pneus.
O que quer dizer que, caso os estacionamentos fossem cobrados separadamente, os motoristas poderiam pagar até o dobro do que atualmente desembolsam em seus gastos variáveis. E, obviamente, os não usuários de carro pagariam menos nos preços de produtos, serviços, aluguéis, financiamentos e apartamentos.
Os problemas não terminam aí: tanta superfície para estacionar, resulta em mais asfalto e concreto, o que favorece a formação de ilhas de calor e o aumento da temperatura, que leva a mais problemas de saúde e a aumento no consumo de energia, devido ao maior uso de ar condicionado. As chuvas também passam a cair mais no meio urbano, o que potencializa a ocorrência de enchentes.
Assim, para lidar com todas essas questões, Donald Shoup recomenda 3 políticas públicas. A primeira é que as cidades passem a cobrar valores de parquímetros, como a Zona Azul, conforme a demanda. A ideia principal é ter sempre por volta de 85% das vagas ocupadas. Isso porque o autor constatou que, em muitos pontos da cidade, 30% do fluxo de veículos são apenas motoristas procurando vagas para estacionar, o que faz aumentar os problemas de poluição, congestionamento, acidentes e tempo perdido no trânsito.
Ou seja, a proposta é que, se houver pouca procura por vaga, o preço do faixa azul irá diminuir até que a demanda aumente e a ocupação chegue em 85%. Já se as vagas começarem a ficar cheias, o preço irá aumentar, fazendo com que a demanda diminua e esvazie a ocupação para 85%. Inclusive, a proposta é que o preço possa variar por dia e horário.
Em seguida, para tornar essa proposta politicamente mais atraente, a segunda recomendação é que os recursos arrecadados sejam destinados a benefícios no entorno da Zona Azul, como a concessão de Wi-Fi grátis, mais limpeza urbana, policiamento, bicicletas compartilhadas ou concessão de transporte público gratuito para os funcionários da localidade… Utopia? Na verdade, algumas cidades dos EUA e do México já vêm adotando essas propostas e colhendo bons resultados. Por último, os gestores públicos deveriam remover a exigência do número mínimo de vagas. Na verdade, é possível até inverter a lógica e passar a se exigir um número máximo de vagas. Muitas cidades têm feito isso, inclusive aqui no Brasil, com os exemplos de São Paulo, Porto Alegre e Recife eliminando a exigência mínima de vagas. Esperamos que esse seja um pequeno início para a reversão desse paradigma que tem gerado custos sociais impactantes.
Artigo publicado originalmente na Revista Bicicleta em 11 de março de 2021. Republicado com algumas modificações.
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