Curitiba: 50 anos de lições do primeiro BRT do mundo
Foto: Guilherme Mendes/Flickr

Curitiba: 50 anos de lições do primeiro BRT do mundo

O famoso BRT de Curitiba serviu como referência para outras cidades do mundo, mas também teve que enfrentar desafios e atualizações ao longo dos anos.

19 de dezembro de 2024

Há cinquenta anos, em 1974, Curitiba inaugurou os primeiros 20 quilômetros de um sistema de transporte pioneiro que, ao longo dos anos, passou a ser conhecido como Bus Rapid Transit (BRT). Naquela época, a capital paranaense tinha cerca de 600 mil habitantes (atualmente está próxima de 1,8 milhão, com uma região metropolitana de 3,8 milhões) e era uma das cidades que mais cresciam no Brasil. A rede de transporte público inovadora e com um bom custo-benefício ajudou a moldar e acomodar esse crescimento, passando de 54 mil passageiros transportados por dia no seu primeiro ano para mais de 2,4 milhões em 2014. O BRT de Curitiba é um elemento essencial da identidade da cidade, mas enfrenta desafios: a queda no número de passageiros nos últimos anos colocou em risco a saúde do sistema, e foram somente os esforços substanciais recentes para modernizar a frota e a infraestrutura que começaram a reverter essa tendência negativa. Nas cinco décadas desde sua criação, o sistema de BRT de Curitiba inspirou e serviu como referência para cidades em todo o mundo, especialmente as cerca de 200 que implementaram modelos similares.

Primeiro BRT implantado em Curitiba. Foto: Instituto Jaime Lerner

A criação do sistema do BRT é primeiramente creditada a Jaime Lerner, que assumiu seu primeiro mandato como prefeito de Curitiba em 1971. Resistindo à pressão pública para ampliar as vias arteriais e acomodar o crescente tráfego, ele ajudou a conceber e refinar o plano diretor da cidade para preservar uma escala humana e iniciou seu mandato com uma compreensão profunda de como o transporte público eficiente e o desenvolvimento urbano estão interligados. Desde os primeiros dias de sua administração, a reestruturação do sistema de transporte da cidade foi guiada por princípios fundamentais: as cidades são lugares de convivência e, portanto, precisam ser projetadas para pessoas, não para carros; toda cidade (especialmente as de rápido crescimento) precisa de uma estrutura clara para orientar seu crescimento sustentável; e deve-se priorizar o transporte público e os pedestres. Esses princípios não foram apenas discurso e resultaram em ações corajosas, como a implementação do primeiro projeto de pedestrianização do Brasil em 1972 (Rua das Flores/Rua XV de Novembro), que fechou a principal rua comercial do centro para carros, apesar da forte oposição, e a criação do eixo de transporte norte-sul em 1974.

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O desenho urbano, a infraestrutura de transporte e as leis de uso do solo são ferramentas poderosas no arsenal de um planejador e gestor urbano para orientar o crescimento das cidades. As linhas de transporte construídas ao longo dos principais eixos desenhados nos anos 1970 estimularam o crescimento ao longo desses corredores, muito antes de o conceito de “desenvolvimento orientado ao transporte” (DOT) se tornar popular. Ao combinar usos mistos com o térreo priorizando comércio e serviços, maiores densidades construtivas e um sistema de transporte público de alta capacidade com corredores exclusivos para ônibus, a cidade criou dezenas de quilômetros de BRT rodeados por um uso do solo denso e diversificado. Isso descongestionou o centro da cidade, reduziu os tempos de deslocamento e garantiu uma alta demanda para equilibrar a equação financeira da operação do sistema, aumentando o número de passageiros por quilômetro percorrido.

As linhas vermelhas no mapa indicam os eixos (ou setores) estruturais de Curitiba, uma característica fundamental do planejamento da cidade que tem orientado seu desenvolvimento por mais de 50 anos. Como ilustra o gráfico, o núcleo desse sistema é composto por uma via com um corredor exclusivo para ônibus, onde opera o ônibus “expresso”, e duas faixas para carros (em direção ao centro e saindo dele) que dão acesso aos bairros adjacentes. Nas ruas seguintes, de cada lado, encontram-se vias paralelas de mão única, de maior capacidade, que conectam o centro da cidade aos bairros e vice-versa, conhecidas como “vias rápidas”. Essas três vias formam o que, no planejamento de Curitiba, é chamado de “sistema trinário” e mantêm uma escala humana para essa infraestrutura robusta (que seria perdida caso todas essas funções fossem acomodadas em uma única via principal). Ao longo do trinário, o zoneamento incentiva empreendimentos de uso misto e permite as maiores densidades construtivas da cidade, promovendo a ideia de “centro expandido” acompanhando o itinerário dos ônibus, com moradias e uma grande oferta de serviços e atividades comerciais. Imagens: Instituto Jaime Lerner.

Embora sua implementação tenha sido incremental, o novo sistema de transporte de Curitiba foi concebido como uma rede integrada. Em vez de um conjunto de linhas criadas ou estendidas ao longo dos anos para atender a demandas existentes, ele foi projetado como um sistema hierarquizado para organizar a demanda atual e futura, orientar o crescimento (em conjunto com políticas de uso do solo), facilitar a vida dos passageiros e oferecer uma clara identidade, confiabilidade e alto desempenho operacional. Uma grande inovação na época foi a reorganização das linhas existentes em uma lógica “tronco-alimentadora”, na qual linhas alimentadoras mais curtas nos bairros convergiam em terminais de integração ao longo de linhas troncais robustas. Essas linhas troncais operavam veículos especialmente projetados em corredores exclusivos, o que resultava em níveis aprimorados de serviço. Ao invés de ter uma confusão de linhas sobrepostas que desperdiçavam tempo e energia, a solução tronco-alimentadora melhorou os tempos de viagem e a experiência dos usuários. Dos 20 km iniciais de corredores exclusivos, o sistema expandiu-se para 80 km, com 34 terminais de integração e mais de 350 estações-tubo. Com essa expansão, houve um crescimento constante no número de passageiros: em 1974, a rede transportava cerca de 54 mil passageiros por dia. No auge da integração da rede, em 2014, transportava quase 2,5 milhões de passageiros diariamente em Curitiba e em outras 13 cidades metropolitanas integradas.

Uma seção do eixo estrutural (leste-oeste) com um terminal de integração em primeiro plano. Os ônibus são identificados por cores, e cada uma representa um tipo de serviço: os vermelhos correspondem às linhas troncais que operam nos corredores exclusivos (expresso); os verdes, às linhas circulares entre bairros (interbairros); os laranjas, às linhas alimentadoras (alimentadores), entre outros. Foto: Lina Faria, Instituto Jaime Lerner

Simplicidade, criatividade, flexibilidade, rapidez e acessibilidade foram os princípios orientadores. Como a maioria das cidades, Curitiba não tinha recursos para construir um sistema de metrô subterrâneo nem para subsidiar suas tarifas no longo prazo. Um sistema baseado no ônibus pode ser adaptado à infraestrutura existente em praticamente qualquer cidade. Ele é flexível para moldar ou alterar itinerários conforme o planejamento ou a demanda e pode ser implementado mais rapidamente, com uma fração do custo de sistemas ferroviários. Esses princípios também são fáceis de identificar nas características que definem o BRT de Curitiba, como o inovador conceito das estações-tubo, que incorporaram elementos típicos de metrôs, como embarque pré-pago e em nível, em um sistema de superfície.

Para conquistar os curitibanos céticos, acostumados com um transporte coletivo lento, desagradável e ineficiente, a cidade investiu em uma forte campanha de comunicação e em uma estratégia de “liderar pelo exemplo”, com Lerner engajando-se diretamente com a população. A prefeitura comprometeu-se a promover o uso dos ônibus por meio de uma nova identidade visual, pontos de ônibus e veículos especialmente projetados e inovações tecnológicas. Jaime Lerner queria que o sistema de transporte público fosse uma opção bem aceita até para aqueles que podiam comprar um carro, e não apenas para quem não tinha outra alternativa.

Uma campanha de comunicação no jornal destaca as características do novo sistema, apresentando o veículo, os pontos de parada, os atributos de conforto e beleza, além da ideia de propriedade coletiva. Foto: Fundação Cultural de Curitiba, Casa da Memória

A rede integrada de transporte de Curitiba serviu bem à sua população e se tornou um elemento central da identidade da cidade. Expansões e melhorias ao longo dos anos visaram manter a rede atualizada e em sintonia com as diretrizes de desenvolvimento urbano. No início dos anos 2000, foi criado um novo corredor na parte sul da cidade, ao longo de uma antiga rodovia federal, para se tornar um novo “setor estrutural” na escala metropolitana. Enquanto os corredores originais tinham uma única faixa para ônibus em cada direção, desde meados da década de 2010 eles estão sendo redesenhados progressivamente para permitir ultrapassagens, viabilizando simultaneamente linhas diretas e paradoras, aumentando significativamente sua capacidade. Há mais de dez anos, os veículos vêm incorporando novas tecnologias, como motores híbridos que utilizam biodiesel. A mobilidade elétrica está avançando, com os primeiros 70 ônibus elétricos recentemente incorporados à frota (com a meta de alcançar 30% da frota até 2030 e 100% até 2050). Melhorias na bilhetagem eletrônica trazem maior agilidade e segurança à operação. Linhas circulares (interbairros) estão em projeto de melhoria com faixas exclusivas e paradas climatizadas, que incluem facilidades multimodais e nova tecnologia de comunicação.

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Contudo, muitos desafios também persistem. A integração metropolitana está sujeita às prioridades políticas de diferentes governos estaduais e municipais e, desde 2015, os 13 municípios vizinhos desvincularam seus sistemas da rede de transportes de Curitiba. Políticas federais de longo prazo que subsidiam a aquisição de carros e motocicletas “populares”, a separação da operação metropolitana, a pandemia de COVID-19 e inovações como o transporte por aplicativos resultaram em perdas substanciais de passageiros. Isso reduziu a arrecadação e, somado a fatores como o impacto extremo da inflação nos custos operacionais (o custo do diesel dobrou entre 2021 e 2022, por exemplo), pressionou as tarifas e comprometeu investimentos na qualidade do sistema. Tarifas mais altas e uma pior experiência do usuário levam a mais perdas de passageiros, criando um ciclo vicioso. O sistema atingiu seu ponto mais baixo em 2020, com pouco mais de 710 mil passageiros por dia. Felizmente, os números estão se recuperando e atingiram 1,1 milhão em 2022. Nos últimos anos, esforços substanciais foram feitos para recuperar a qualidade, melhorar os níveis do serviço, incorporar inovações tecnológicas e iniciar projetos mais robustos para revigorar a rede integrada, honrando assim esse precioso legado multigeracional dos curitibanos.

Artigo originalmente publicado em Medium, em outubro de 2024.

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