Por que o uso do transporte público em Curitiba ainda é tão baixo?
Conhecida por seu inovador sistema de transportes, Curitiba apresenta hoje dados que não refletem essa reputação. Neste artigo, procuramos entender o porquê.
Existem alguns equívocos comuns nas escolhas que vêm sendo feitas em políticas de mobilidade urbana, especialmente em relação à eletrificação da frota e à adoção da tarifa zero.
11 de novembro de 2024Ao contrário da grande maioria das políticas públicas, no caso da mobilidade urbana, há um razoável consenso do que se deve fazer. Precisamos diminuir a participação de veículos motorizados individuais e aumentar os modos coletivos e ativos (o andar a pé e de bicicleta). Se fosse possível realizar essa mudança na participação dos modos de transporte, reduziríamos o congestionamento nas grandes cidades, as emissões de gases do efeito estufa, hospitalizações e mortes decorrentes de sinistros de trânsito. De quebra, haveria efeito distributivo, pois os principais usuários do transporte público e dos modos ativos são os mais pobres. Cada mil quilômetros que transferimos do carro para o ônibus reduzem as emissões de CO2 em mais de 100kg e o tempo dos usuários de ônibus em 25h.
Assim, por que a mudança não ocorreu ainda?
Dois consensos em mobilidade urbana merecem ser questionados. Um deles refere-se à forma de “descarbonização da frota”, ou seja, de garantir que todos os veículos utilizem fontes energéticas “não fósseis”. Como sabemos, o grosso das mitigações está nas áreas rurais, responsáveis por cerca de dois terços das emissões. No entanto, o transporte urbano é responsável por cerca de metade (ou mais) das emissões urbanas. Zerar tais emissões implicaria uma redução de um sexto (ou mais) das emissões do planeta, gerando avanço considerável.
Leia mais: Menos carros elétricos, mais ônibus e bicicletas elétricos
Os municípios, porém, vêm confundindo descarbonização e eletrificação da frota, tratando essas duas políticas como se fossem absolutamente as mesmas, o que não é verdade. Para começar, em muitas regiões no Brasil, temos que complementar a oferta de energia a partir de termoelétricas movidas a óleo ou a diesel. Portanto, não se pode dizer que um ônibus elétrico não emite gases do efeito estufa efetivamente. É claro que podemos argumentar que deveríamos aumentar as fontes energéticas não fósseis, o que justificaria o aumento da frota elétrica na mesma velocidade do aumento da geração mais limpa.
O problema adicional reside no fato de que as tecnologias atuais da eletrificação da frota estão calcadas nas baterias de lítio, e a sua produção gera emissões significativas. Alguns autores sustentam que os veículos híbridos movidos a biocombustível emitem menos do que os veículos elétricos mesmo para matrizes energéticas tão limpas como a brasileira.
No caso brasileiro, dada a oferta extensiva de etanol, a opção por um híbrido flex é trivial, e é difícil entender por que essa não é a política promovida pelos governos. Oferecer facilidades para os veículos elétricos (estacionamento gratuito, direito de circular durante o rodízio e até abastecimento gratuito), que alguns municípios têm promovido, parece ser uma política bastante equivocada, quando se deveria optar pelo híbrido.
Para os ônibus, a alternativa do etanol limitou-se a uma experiência fracassada no Município de São Paulo. Os 50 ônibus representavam um ônus para o operador, que gerenciou essa frota apenas enquanto a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (única) subsidiou o combustível. Há, inclusive, uma tecnologia alternativa já consolidada (e anterior aos ônibus elétricos), que é o ônibus movido a gás. Se considerarmos que o gás metano pode ser produzido a partir da queima de lixo, é difícil entender por que os governos municipais não estão promovendo esse tipo de fonte energética. Trata-se de uma excelente solução, que não é tão cara e poderia ajudar a resolver problemas de resíduos sólidos.
Talvez a política de mobilidade mais equivocada que tem ganhado força, no entanto, seja a que se tem denominado “tarifa zero”. Não há evidências científicas robustas de seus benefícios. Em primeiro lugar, essa política gera incentivos à redução do uso do automóvel, mas também à redução do uso dos modos ativos. De fato, em uma experiência com tarifa zero em Boston, não se nota nenhuma redução de emissões, sugerindo que o aumento das viagens de ônibus deve partir também da redução do uso da caminhada e da bicicleta.
O problema de longo prazo da tarifa zero é que compromete parcela considerável do orçamento, deixando pouco espaço para investimentos. Se o município não tem como aumentar ainda mais o gasto em transportes, há tendência de manter a frequência de viagens. Com isso, a lotação dos ônibus deve aumentar, diminuindo a qualidade do serviço, o que repele os usuários que podem decidir entre o uso do ônibus ou do veículo motorizado. Assim, o efeito da tarifa zero pode até ser o contrário do seu objetivo: reduzir a proporção dos modos ativos com efeitos desprezíveis sobre os modos motorizados individuais.
Alguns prefeitos defendem a tarifa zero como uma política distributiva. Como o transporte coletivo é utilizado majoritariamente pelas classes menos favorecidas, seria uma forma de se distribuir renda. O problema é que é uma política distributiva sem foco: todos os usuários são subsidiados, independentemente da renda. O que mais se espera de uma política distributiva é justamente que ela seja focada nos mais vulneráveis socialmente. Como o financiamento dessa política deve vir dos impostos, e a carga tributária brasileira é bastante concentrada na taxação sobre o consumo (que incide mais sobre os mais pobres), a progressividade da tarifa zero deve ser baixa se estimada da maneira correta.
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Outro problema da tarifa zero é que o subsídio é entregue diretamente aos operadores de ônibus, e não aos usuários do sistema. Não é uma surpresa que os sindicatos dos empresários de ônibus estejam entre os grandes entusiastas desse modelo. Para evitar isso, temos um mecanismo bem-desenhado para distribuição de renda dentro da mobilidade: o vale-transporte (VT). Esse mecanismo distribui renda diretamente para os indivíduos, focada nos mais vulneráveis.
Certamente, o transporte é um bem essencial, assim como alimentação, vestuário e habitação. É relevante que se coloque um teto para esses gastos: hoje, o empregador não pode descontar mais de 6% do salário-base do empregado para a contribuição do VT. Além de transferir o subsídio diretamente para as famílias, o VT garante uma política distributiva altamente focada. O grande problema do VT é que esse mecanismo atinge apenas o mercado formal, fazendo com que o subsídio não alcance os mais vulneráveis. Uma solução seria a prefeitura garantir um “VT universal”, incorporando no sistema os trabalhadores do mercado informal e os desempregados.
Sabemos que, para o indivíduo “descer do carro”, é mais relevante a melhoria na qualidade do serviço do que o seu custo monetário. Levantamento mostra que, em cidades maiores, os brasileiros vêm trocando o ônibus por carros e transporte por aplicativos nos últimos anos, mesmo arcando com um custo que pode ser 3 vezes maior. Baixo conforto, falta de flexibilidade dos serviços e elevado tempo de viagem do principal meio de transporte público do país são os principais fatores citados para a mudança. Observamos a classe média saindo do carro e utilizando o transporte público justamente em locais onde há metrô, ou seja, um transporte de alta qualidade.
Portanto, para que possamos ver as mudanças que desejamos na mobilidade urbana, será preciso revisitar alguns consensos equivocados e explorar caminhos diferentes.
Texto extraído da publicação Nova governança para a mobilidade urbana, de setembro de 2024, do FGV Cidades.
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