A importância socioeconômica do avanço do saneamento nas cidades brasileiras
A ampliação do acesso à água tratada e à coleta de esgoto pode trazer diversos benefícios para a economia, a saúde pública e a coesão social.
Os urbanistas planejadores estão se saindo bem hoje? Essa questão não pode ser respondida facilmente.
4 de setembro de 2018Planejadores, como todas as profissões, têm suas mitologias próprias. Uma popular seria algo assim: “Muitos anos atrás, nós, planejadores, fazíamos coisas ruins. Empurramos os bairros pobres e demolidos das minorias e forçamos a gentrificação. Mas hoje isso acabou! Agora protegemos os menos favorecidos contra os caprichos do mercado desenfreado”.
Os experientes – digo, cínicos – planejadores podem conscientemente revirar os olhos para essa história, mas, para quem acredita verdadeiramente, essa história tem significado espiritual enraizado. Fazendo direito hoje, seguindo o raciocínio, os planejadores estão desfazendo os horrores de ontem.
Isso levanta a questão: os urbanistas planejadores estão se saindo bem hoje? Essa questão não pode ser respondida facilmente. Basta perguntar a Hinga Mbogo. Depois de imigrar do Quênia, Mbogo abriu o Hinga’s Automotive em East Dallas em 1986. O negócio modesto de Mbogo é exatamente o tipo de coisa que as cidades precisam, fornecendo um serviço para a comunidade, impostos para a cidade e empregos de maior acessibilidade. Embora talvez não seja da “classe criativa”, Mbogo e sua pequena empresa representam o tipo de plano que as cidades cultivam e dependem. A Hinga’s Automotive tem prosperado por 19 anos e parecia preparada para mais 19 anos.
Para infelicidade do Sr. Mbogo, os planejadores de Dallas tinham outros planos. Em 2005, a cidade mudou o zoneamento da área para proibir negócios relacionados a automóveis. Apesar das mudanças de zoneamento — particularmente os upzonings¹ — não serem necessariamente uma coisa ruim, os planejadores de Dallas optaram por forçar sua visão e implementaram uma técnica de planejamento controversa conhecida como “amortização”.
Normalmente, quando planejadores mudam o zoneamento de uma área, eles permitem que usos já existentes continuem operando indefinidamente, em paralelo com o novo código. Eles são conhecidos como “usos não conformes”² e são comuns em bairros de todo o país, muitas vezes sob a forma de mercados, restaurantes e pequenas lojas industriais.
No entanto, sob amortização, o governo força os “usos não conformes” a cessar suas operações sem qualquer compensação. No caso do Hinga’s Automotive, isso significa que o Sr. Mbogo deve encerrar seu próspero negócio.
Você pode estar se perguntando: por que funcionários da prefeitura de Dallas estão perseguindo os empresários imigrantes? A triste verdade é que a mudança de zoneamento foi expressamente projetada para gentrificar a área. Como um membro da câmara da cidade disse, a esperança era atrair negócios urbanos “como Starbucks e Macaroni Grill”. Em uma reviravolta bizarra, até os funcionários do Dallas Morning News começaram a criticar o homem. O maior pecado do Sr. Mbogo não é de ter prejudicado alguém. Ele e sua empresa simplesmente não se encaixavam mais no plano. É uma situação recorrente para qualquer pessoa que tenha estudado planejamento urbano e uma história familiar para qualquer um que acompanhe a prática de planejamento urbano nos dias atuais. Onde quer que os pequenos detalhes da vida na cidade sejam controlados e regulados por processos políticos, os pequenos — particularmente os dos grupos marginalizados — nunca estarão seguros.
Essa forma particular de “mitologia de planejamento” é importante, mesmo que seja uma premissa falsa hoje em dia. Os planejadores deslocaram milhares de americanos de baixa renda, forçaram a expansão e a dependência automobilística dos moradores e minaram os pequenos negócios que geram cidades saudáveis. Porém, como podemos observar, no domínio da regulação do uso da terra, a redenção não significa mais controle — significa menos. Enquanto as comissões de planejamento e os conselhos municipais tiverem o poder de segregar usos e forçar os mais fracos, eles continuarão fazendo. Se os planejadores urbanos quiserem desfazer o dano que causaram, podem começar desmontando o sistema que criaram.
P.S. O Sr. Mbogo não está sendo prejudicado em silêncio. Com a ajuda do Institute for Justice, ele está levando Dallas ao tribunal para defender seus direitos. Saiba mais sobre o caso e como você pode se envolver.
¹Upzoning — abordagem comumente usada pelas cidades dos Estados Unidos para alavancar os poderes regulatórios, isto é, a mudança do zoneamento para permitir maior valor (por exemplo, de industrial para residencial) ou uso mais denso (por exemplo, aumentando quantidade de construção permitida). Tal como acontece com os bônus de densidade, o upzoning pode ser implementado com sucesso como uma espécie de ferramenta de financiamento para a regeneração urbana somente quando houver demanda suficiente no mercado.
²uso não conforme — é um uso da propriedade que foi permitida sob os regulamentos de zoneamento no momento em que o uso foi estabelecido mas que, devido a mudanças subsequentes nesses regulamentos, não é mais um uso permitido.
Texto publicado originalmente no site Market Urbanism em 12 de dezembro de 2016. Traduzido para o português por Matheus Milão.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarA ampliação do acesso à água tratada e à coleta de esgoto pode trazer diversos benefícios para a economia, a saúde pública e a coesão social.
Pequenas intervenções preventivas no desenho urbano podem ser mais valiosas do que vários policiais.
Confira nossa conversa com Janice Perlman sobre sua pesquisa nas favelas do Rio de Janeiro.
Cabo Verde, na África, tinha uma política habitacional muito voltada para a construção de novas moradias, mas reconheceu que era necessária uma nova abordagem com outras linhas de atuação. O que o Brasil pode aprender com esse modelo?
Os espaços públicos são essenciais para a vida urbana, promovendo inclusão, bem-estar e identidade coletiva, mas frequentemente são negligenciados. Investir em seu projeto, gestão e acessibilidade é fundamental para criar cidades mais justas, saudáveis e vibrantes.
O conceito da "Cidade de 15 Minutos" propõe uma mobilidade facilitada sem depender do automóvel. Como a cidade de São Paulo se encaixaria nesse contexto? Confira a análise do tempo de deslocamento dos moradores para diferentes atividades.
Conheça os projetos implementados no Rio de Janeiro para melhorar a mobilidade urbana e o acesso das crianças às suas escolas.
A taxa de vacância indica a ociosidade de imóveis em uma cidade ou região. Para construir estratégias para equilibrá-la, é preciso entender o que esse número realmente significa.
O efeito cascata na habitação, também conhecido como filtragem, sugere uma forma de lidar com o problema da acessibilidade habitacional. Porém, sua abordagem pode ser simplista e é preciso entender as complexidades da dinâmica do mercado e das cidades.
COMENTÁRIOS
Excelente matéria, foi de grande valia.