Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Será o século 21 a era da construção menos restritiva? Entenda como mudanças no zoneamento podem impactar o acesso à moradia nas cidades.
11 de setembro de 2023Muitas cidades ao redor do mundo têm sérios problemas de acesso à moradia. Um dos motivos são regulações de zoneamento muito restritivas. O zoneamento — as regras que determinam o que pode ser construído em cada lote — foi inicialmente projetado para controlar problemas urbanos, como congestionamento, poluição e sombreamento.
Com o tempo, no entanto, os planejadores entraram em acordo com os proprietários de imóveis para endurecer as regras. Os planejadores não gostavam da densidade urbana e ficaram muito felizes em reduzi-la. Os proprietários perceberam que códigos mais rígidos poderiam preservar o valor de suas propriedades e excluir os pobres e as minorias de seus bairros.
Na metade do século XX, a regra de zoneamento mais popular limitava-se ao chamado Coeficiente de Aproveitamento (CA) — a área máxima de construção permitida, calculada como uma proporção do tamanho do lote. Por exemplo, um CA máximo de 1 significa que uma estrutura de um andar pode cobrir todo o lote ou uma estrutura de dois andares pode ser construída em metade do lote. Limitar os CAs e a taxa de ocupação dos lotes garante densidades populacionais muito mais baixas.
Décadas de downzonings nos EUA — reduções nos CAs permitidos — após a Segunda Guerra Mundial, no entanto, não afetaram muito os preços das moradias, pois os grandes centros industriais estavam se esvaziando e os subúrbios ainda tinham muitos terrenos para construir.
Mas então, na década de 1990, esses centros começaram a se recuperar. Uma onda recente de pesquisa, particularmente em Economia, documentou as consequências não intencionais das regras de zoneamento rigorosas, incluindo preços mais altos de moradia, mais segregação, espraiamento urbano e maiores emissões de gases de efeito estufa.
Se o século 20 foi a era do downzoning, então o século 21 está se preparando para ser a era do upzoning. Cidades em todo o mundo começaram a afrouxar os regulamentos de construção. Por uma questão de lógica, se o downzoning reduziu a construção, então o upzoning deve produzir mais moradias. Ou será que não? Simplesmente abrir a torneira faz com que a água escorra?
No entanto, responder a essa pergunta não é tão simples. É preciso ser capaz de ver claramente através da névoa da mudança urbana. Cidades caras são lugares dinâmicos: as pessoas entram e saem constantemente, e os negócios crescem e encolhem.
O acesso à moradia parece piorar, não importa qual nova política ou subsídio o governo adote.Um observador comum vê grandes guindastes erguendo condomínios de luxo enquanto a vida urbana fica mais cara. Deve-se concluir logicamente que esses guindastes estão “causando” preços mais altos. No entanto, a demanda e a oferta estão em uma luta constante. Quando o lado da demanda ganha, os preços sobem, não importa quantas novas construções possam haver.
Separar a oferta da demanda e a causa do efeito requer algum esforço. Os pesquisadores devem criar uma configuração científica — uma estrutura de tratamento e controle — para acompanhar as mudanças nas regras de zoneamento. Se bairros muito desejados forem alvo de upzonings, deve haver uma maneira de separar a demanda (o desejo) dos impactos do upzoning (mais oferta).
Por exemplo, ao testar uma nova pílula para diminuir o colesterol, é melhor comparar um grupo de pessoas com características semelhantes. O experimento ideal é inscrever em um estudo, digamos, 100 homens muito semelhantes — na casa dos 50 anos, acima do peso e que não se exercitam regularmente. Metade recebe a pílula aleatoriamente, enquanto o restante recebe um placebo. Se os homens que tomaram a pílula tiverem colesterol mais baixo, em média, isso sugere fortemente que a pílula funciona.
Estudos recentes sobre upzoning, discutidos abaixo, usam essa lógica, embora, ao contrário dos médicos, os pesquisadores não possam controlar o experimento em um grau tão preciso. Em vez disso, eles precisam de uma maneira de localizar um grupo de controle razoável semelhante aos lotes “tratados” antes que o upzoning seja colocado em prática.
Vários estudos utilizam o chamado método dos limites. Eles comparam os quarteirões na área do upzoning com aqueles do outro lado. Presumivelmente, dois quarteirões, um de cada lado da rua, são muito semelhantes. Outra abordagem usa o tempo como comparativo.
Quando as áreas são rezoneadas aleatoriamente em momentos diferentes, pode-se comparar os bairros antes e depois do rezoneamento. Finalmente, outro método é usar um algoritmo estatístico para comparar lotes com upzoning a lotes semelhantes sem upzoning em outras partes da cidade.
Com isso em mente, vamos agora aos resultados.
A cidade de Nova York, na gestão do prefeito Michael Bloomberg, entre 2004 e 2013, rezoneou quase 40% dos terrenos residenciais da cidade. As áreas centrais de Manhattan, Brooklyn e oeste do Queens, que tinham áreas industriais subutilizadas, quarteirões na orla e bairros acessíveis pelo transporte público, foram rezoneadas aumentando o CA máximo permitido para uso residencial.
Hsi-Ling Liao, em seu artigo de 2023, “The Effect of Rezoning on Local Housing Supply and Demand: Evidence from New York City”, compara lotes rezoneados com aqueles que não foram rezoneados, mas estavam a até de 305 metros (1.000 pés) de distância.
Ela conclui que nos distritos rezoneados, “…o número de unidades residenciais aumentou mais de 4% sete anos após o upzoning. Os lotes que recebem um tratamento mais intensivo e um aumento mais forte na capacidade residencial permitida experimentam um aumento de 8% na oferta de moradias”.
Um estudo muito parecido foi conduzido por Xuequan Elsie Peng em seu artigo de 2023, “The Dynamics of Urban Development: Evidence from Land Use Reform in New York”. Ela compara as novas unidades habitacionais nos quarteirões rezoneados com aquelas que estão a 650 metros de distância (0,4 milhas).
Suas descobertas ecoam as de Liao — nas áreas rezoneadas, após seis anos, o número de unidades aumentou cerca de 4%, enquanto após 12 anos, o número de unidades aumentou cerca de 8%, em relação aos quarteirões que não receberam o upzoning.
Peng também investiga se permitir um CA mais generoso leva a mais moradias. Ela descobriu que no caso de um upzoning baixo (aumento do CA de menos de 30%), havia cerca de 2% a mais de moradias, em média, após dez anos em relação aos quarteirões não rezoneados.
No caso de um upzoning alto (aumento do CA de mais de 92%), ela descobriu que esses bairros adicionaram cerca de 8% a mais de moradias, em média, após dez anos do que os quarteirões não tratados.
Hongwei Dong, em seu artigo de 2021, “Exploring the Impacts of Zoning and Upzoning on Housing Development: A Quasi-experimental Analysis at the Parcel Level”, estuda o caso de Portland. Ele se concentra em lotes que receberam upzoning entre 2001 e 2002 no sudoeste de Portland. Nesse caso, os rezoneamentos foram principalmente em bairros suburbanos, onde a maioria dos lotes continha casas unifamiliares de baixa densidade.
Depois de comparar lotes com upzoning com lotes parecidos sem upzoning, Dong conclui que os lotes com upzoning tinham cerca de duas vezes mais chances de serem construídos quinze anos após o upzoning e que “análises posteriores sugerem que os 111 lotes com upzoning produziram 240 habitações em 33,8 acres de terra.
A densidade é de 7,1 unidades por acre. Os cinquenta e oito lotes de controle produziram oito unidades habitacionais em 18,6 acres de terra. A densidade é de 4,3 unidades por acre. Essas descobertas sugerem que o upzoning não apenas acelerou o desenvolvimento de moradias, mas também aumentou a produção de moradias”.
Jacob Krimmel e Betty Wang estudam o caso dos rezoneamentos em Seattle em seu artigo de 2023, “Upzoning with Strings Attached: Evidence from Seattle’s Affordable Housing Mandate”. Seattle adotou uma abordagem diferente de Nova York e Portland.
Em 2019, alguns bairros foram selecionados para permitir mais área construída, mas esse benefício veio com um “imposto” — um requisito obrigatório de acessibilidade habitacional (MHA) para os incorporadores incluírem unidades acessíveis ou contribuírem para um fundo destinado a criar moradias acessíveis em outro lugar.
Os autores escrevem: “A reforma combina duas alavancas políticas que alguns economistas consideram conflitantes: aumentar a capacidade de construção por meio do upzoning e exigir que o mercado privado crie moradias acessíveis para determinadas faixas de renda”.
As áreas MHA foram aplicadas a áreas já zoneadas para residências multifamiliares, comerciais ou unifamiliares de alta densidade (como casas geminadas). No entanto, o upzoning foi relativamente leve, permitindo um andar a mais, em média. Comparando os quarteirões que estavam em áreas de MHA com aqueles que não tiveram alteração, eles concluem que na verdade o tiro saiu pela culatra, ao afastar novas construções das áreas de MHA.
Eles encontram fortes evidências de que os incorporadores situam estrategicamente os projetos longe dos lotes zoneados pela MHA — apesar de seu upzoning — direcionando-os para blocos e lotes próximos não sujeitos aos requisitos de acessibilidade do programa. A redução diferencial de zonas MHA para não MHA pode chegar a 70% da atividade média.
Ainda segundo os autores, o mais preocupante é que a maior parte da queda no número de unidades nas zonas MHA vem do segmento multifamiliar do mercado, onde a maioria dos produtos habitacionais são sobrados e duplex de 3 e 4 andares. Isso é importante porque as residências multifamiliares pequenas e baixas são vistas como uma alternativa mais acessível aos apartamentos de luxo para locatários de baixa e média renda.
Em “Upzoning Chicago: Impacts of a Zoning Reform on Property Values and Housing Construction” (2019), Yonah Freemark explora o caso de Chicago. Sob o prefeito Rahm Emanuel, Chicago realizou duas rodadas de upzoning.
A primeira, em 2013, promoveu o upzoning em bairros que estavam entre 183 metros e 366 metros de distância de paradas de linhas de metrô e trens suburbanos para incentivar o desenvolvimento orientado ao transporte (DOT). A segunda rodada, em 2015, ampliou as áreas com upzoning para 800m de distância das paradas.
Os rezoneamentos envolveram dois tipos de mudanças. A primeira, em 2013, foi o aumento em 17% do CA permitido, em média, enquanto as regras de 2015 aumentaram o CA anterior a 2013 em 33%, em média. Além disso, em ambos os anos, as exigências de estacionamento tornaram-se menos rígidas, permitindo que os incorporadores forneçam menos vagas.
Freemark compara primeiro os lotes que receberam upzoning em 2013 com os que não foram rezoneados, mas foram posteriormente rezoneados em 2015. Ele então compara os lotes que receberam upzoning em 2015 com os blocos vizinhos que não foram rezoneados. Para os upzonings de 2013, Freemark não encontrou evidências de que eles levaram a um aumento na oferta de moradias, conforme medido por novas licenças de construção.
No entanto, esse achado provavelmente se deve a três fatores. Primeiro, os upzonings foram aplicados tanto em áreas de alta como de baixa renda. O upzoning de áreas de baixa renda tem menos probabilidade de ser eficaz se a renda não for alta o suficiente para compensar o custo de novas construções.
Em segundo lugar, o período de investigação foi do final de 2013 ao final de 2015, um período muito curto para analisar os impactos do upzoning. Por fim, o upzoning médio de 17% foi bastante pequeno para ter um impacto significativo, como outros estudos mostraram.
No entanto, em sua análise do impacto dos upzonings mais generosos de 2015, ele encontra evidências (fracas) de que a liberação combinada do estacionamento e das regras do CA aumentou o número de licenças de construção residencial no período de quase três anos após a mudança das regras (cerca de 25 licenças a mais nas áreas com upzoning versus as áreas sem upzoning entre setembro de 2015 e junho de 2018).
Em seu artigo de 2023, “Making Housing Affordable? The Local Effects of Relaxing Land-Use Regulation”, Simon Büchler e Elena Lutz investigam o cantão de Zurique, na Suíça, de 1995 a 2020. O cantão contém 168 municípios com uma população de 1,52 milhão. Cada município realiza o rezoneamento de forma separada, aproximadamente a cada 15 anos.
Os autores usam o período independente e aleatório dos rezoneamentos para explorar como os aumentos no CA antes e depois dos rezoneamentos afetam a construção de moradias em grids com células de 100 x 100 metros. Para cada célula, eles medem a área total construída em intervalos de cinco anos e depois rastreiam quando ocorreram os upzonings. Assim, o tratamento é a célula após o upzoning e o controle é a célula antes do upzoning.
Sua conclusão: “Descobrimos que grandes upzonings de mais de 50% aumentam significativamente o espaço habitacional e as unidades habitacionais em 9-18% em lotes com upzoning em comparação com lotes não tratados nos seis a 15 anos subsequentes. Em contraste, pequenos upzonings, de 0 – 50%, não provocam uma forte reação dos incorporadores.”
Em seu artigo de 2023, “The Impact of Upzoning on Housing Construction in Auckland”, Ryan Greenaway-McGrevy e Peter Phillips estudam o upzoning em Auckland, a maior cidade da Nova Zelândia, com cerca de 1,57 milhão de residentes. Em 2016, a metrópole promoveu o upzoning de quase três quartos de seus terrenos residenciais.
A abordagem dos autores é olhar para novas licenças de construção dentro das áreas com upzoning versus aquelas do lado de fora. Estudando as mudanças relativas nas licenças de construção anuais emitidas para novas unidades habitacionais, eles concluem: “A resposta à mudança de zoneamento é imediata: os efeitos estimados do tratamento aumentam a cada ano após a implementação. Até 2021, cinco anos após a implantação da política, serão emitidas, em média, 23 autorizações a mais em áreas com upzoning em relação às áreas sem upzoning em cada um dos 479 SAS (áreas estatísticas, semelhantes a setores censitários).”
“Isso corresponderia a 11.044 autorizações em toda a cidade. Ao acumular os números correspondentes de 2016 a 2021 encontramos 34.614 licenças a mais em áreas com upzoning em comparação com áreas sem upzoning. Os efeitos do tratamento para moradias geminadas superam os efeitos para moradias isoladas a partir de 2019. Em 2021, o efeito de tratamento estimado para as moradias geminadas é de 17,96 licenças, enquanto para as isoladas é de 5,09.”
Finalmente, em seu artigo de 2023, “Estimating the Economic Value of Zoning Reform”, Santosh Anagol, Fernando Ferreira e Jonah Rexer estudam o caso de São Paulo, a quarta maior cidade do mundo, com 21 milhões de habitantes em sua área metropolitana.
A cidade realizou um rezoneamento em 2016. Semelhante aos outros estudos, eles exploram como o aumento do Coeficiente de Aproveitamento — que eles chamam de Built Area Ratio (BAR) — impactou as novas construções. Em média, eles descobriram que o upzoning aumentou o BAR permitido em 36%, e mais da metade dos quarteirões da cidade receberam um aumento.
Os autores exploram a permissão para novos prédios residenciais em quarteirões com upzoning em comparação com quarteirões sem upzoning do outro lado do limite de rezoneamento. A conclusão deles:
Descobrimos que o aumento no BAR máximo de 1,4 ponto no limite causa um aumento de 0,003 autorizações de residência multifamiliar solicitadas por quarteirão por trimestre, o que representa um aumento de 66% nas autorizações por unidade de BAR máximo em relação a blocos de controle próximos.
As diferenças na aprovação de projetos entre os blocos de tratamento e controle surgem apenas um ano após a aprovação da reforma do zoneamento e aumentam a partir de então, o que é plausível, dado o tempo que provavelmente leva para os incorporadores criarem planos de projeto, adquirirem terrenos e assim por diante.
Publicado originalmente me Building the Skyline em agosto de 2023.
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