Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
As quedas de árvores têm causado transtornos em várias cidades. Mas dadas as condições em que essas árvores crescem, o surpreendente é que elas tenham resistido por anos em pé.
4 de março de 2024As chuvas e suas consequências insistem em nos mostrar que estamos moldando cidades que não funcionam em seu conjunto, que falham em seu funcionamento por causa de um fenômeno natural, inevitável, contínuo e óbvio. Mas a chuva é somente o elemento desencadeador que deveria fazer parte de qualquer planejamento básico. O que queremos abordar é uma de suas consequências: a queda de grandes árvores e o transtorno que isso causa para a cidade.
O que é irritante, para muitos, é que as árvores insistem em seguir sempre um mesmo protocolo: o de lançar galhos para cima e para os lados e raízes para baixo e também para os lados. Parece óbvio, mas esse conhecimento básico não está sendo levado em consideração nas práticas urbanas de muitas cidades. A culpa pela queda dessas majestosas árvores é sempre delas mesmas ou dos ventos chuvosos, ou ambos.
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Mas, por que elas caem?
Ao olharmos para as centenas de imagens de árvores caídas, é possível olhar para sua base e enxergar as causas desse desastre. Como é possível que essas árvores ainda estivessem de pé, se praticamente não possuem grandes raízes? Onde foram parar essas raízes?
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Parece inevitável, num primeiro momento, alguma comoção com os prejuízos causados a terceiros quando uma grande árvore tomba. A queda interrompe o tráfego de veículos; rompe a rede de energia, telefone, internet; estraga muros e calçadas, esmaga carros e a imensa árvore não demonstra remorso algum por atrapalhar nossas vidas.
Como estão confinadas a um espaço espremido entre um cordão de meio-fio e a calçada que a abraça pela base (pela NBR 9050, no local denominado de faixa de serviço, em 80 cm), sua área de manobra costuma ser zero. A faceta irritante das árvores as leva a tentar crescer onde são plantadas, mesmo que no caminho encontrem todo tipo de obstáculo imóvel, também projetado para não sair do lugar.
Alinhado ao meio-fio, que costuma ter logo abaixo a rede de drenagem pluvial ou de abastecimento de água, as raízes de qualquer árvore serão decepadas para a sequência desses serviços urbanos. Do lado interno da calçada, caso as raízes ainda não tenham sido cortadas para acomodar a fundação dos prédios ou dos muros, serão cortadas para o nivelamento da calçada. Caso tenham resistido, as novas redes de água sobre os passeios públicos darão conta de encurtar mais um pouco essas raízes. Nem quero adentrar nas saídas de drenagem, nos rebaixos de acesso de garagem, nas conexões de rede de esgoto, nas ligações subterrâneas de energia e nas fossas particulares invadindo o espaço público para atender o saneamento.
Algumas dessas árvores têm muitos anos, ou até mesmo décadas de vida. Assim, passaram por diversas administrações públicas, viram suas raízes serem decepadas diversas vezes para acomodar meios fios e calçadas quebradas, resistiram a podas drásticas para permitir que a rede de energia não fosse comprometida, amargaram secas incríveis graças ao concreto sufocante junto aos troncos, ainda assim aceitaram novas podas de raízes para a rede de água e a tubulação pluvial, resistiram bravamente ao terem sua base queimada pelo asfalto quente das operações tapa-buraco, não se intoxicaram com o óleo diesel das podas com motosserras nem com o excesso de dióxido de carbono diário, isso tudo durante anos e anos. Como não tombaram antes? Essa deveria ser a pergunta a ser feita.
Hoje muitas vivem acuadas pelo espaço que a Lei de Acessibilidade nomeou, relegadas aos 80 cm da faixa de serviço, no mesmo patamar de um poste de concreto, de uma lixeira, um totem qualquer. Algumas espécies não deveriam estar ali, competindo em espaço com o resto que ajudamos a construir e com o padrão de calçadas definido pela lei. Mas, asseguro, não foi opção dessas árvores estar onde estão.
Sabemos que as árvores não são todas iguais, apesar de parecer que isso não é levado tão a sério. Adoramos estacionar nossos carros em alguma sombra, brigamos por isso inclusive, apesar de os carros serem insensíveis ao sol. Ao ver uma árvore caída, atrapalhando o tráfego, já não temos muita certeza de quem devemos acionar. Serviços Urbanos, Distribuidora de Energia, Bombeiros, Fornecedora de Água, Serviços de Esgoto, Guincho ou todos ao mesmo tempo?
Cabem muitas perguntas nesse cenário, perguntas que normalmente deveriam anteceder toda problemática que hoje se apresenta. Quantas cidades possuem um inventário da arborização urbana? E quantas elaboraram pareceres sobre o potencial de risco dessas árvores?
Quantas cidades possuem um plano de arborização urbana? Que considere quais espécies utilizar, levando em conta seu crescimento, enraizamento, frutificação, potencial de detritos orgânicos, as calçadas estreitas, a drenagem pluvial, as redes de energia e água que já existem.
Talvez somente um singelo planejamento de recomposição de arborização, um viveiro de substituição de espécies e variedades. Quantas cidades possuem?
Um estudo sobre a floração dessas árvores que adoramos ver em fotos; alguma lei municipal que demande um incentivo aos cuidadores dessas árvores; uma equipe de especialistas em flora urbana, talvez. Quantas cidades possuem?
Devemos entender que pessoas diferentes com diferentes formações têm concepções completamente distintas sobre o mesmo objeto urbano. E todas dentro da mesma cidade, quando não na mesma administração pública. Para o motorista de carro de passeio a árvore é uma boa sombra; para o de caminhão é um obstáculo que estraga a carroceria; para o pedestre, ela compõe a paisagem; para o gari é fonte de detritos a serem recolhidos; para o morador vizinho assustado, dificulta a iluminação pública; para o operador de manutenção da rede de energia sua maior fonte de transtorno; para um advogado legalista pode ser a causa de um acidente; para um biólogo, é um ser vivo que precisa de cuidados; para quem vive aclimatado no décimo andar, é uma mancha verde; para quem caminha na calçada, é um alento, e assim por diante.
Precisamos admitir que uma árvore é um ser vivo e como tal, necessita de cuidados, atenção, e a sua permanência necessita de planejamento. As árvores ajudam a compor a paisagem urbana, mas o humor climático atual as está incluindo no rol das tragédias urbanas.
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