Como a pandemia impactará nossas cidades?
Imagem: Dennis Fraevich/Flickr.

Como a pandemia impactará nossas cidades?

A (longa) experiência de isolamento pode trazer marcas profundas no uso do espaço urbano, afetando as cidades como entidades de concentração de pessoas e da vida social?

13 de julho de 2020

Um novo vírus pôs o mundo de joelhos: corpos, mentes, vidas sociais, a economia. A pandemia é o efeito borboleta definitivo: o salto de um vírus entre espécies em um ponto do planeta se multiplica e ramifica em redes espaciais contínuas. Ficamos reféns. A possibilidade do contágio dilui nossa confiança em participar da vida cotidiana, um medo paralisante que impede que realizemos tantas de nossas ações.

Essa enorme crise de saúde pública nos coloca numa contradição enorme. Somos profundamente sociais. A evolução nos moldou para interagir. A socialização e a cooperação nos trouxeram aos estágios de desenvolvimento onde estamos enquanto cultura. Ter de viver isolados, em casa, praticando distanciamento social, evitando encontros até mesmo com a família e amigos, às vezes em lockdown, é algo profundamente contrário à nossa natureza. Lidamos com dificuldade com a ideia de não socializar. Mas é a habilidade de entender a necessidade de contrariar nossa natureza e controlar nossas interações que vai, paradoxalmente, garantir nossa sobrevivência. 

Coletivo x Individual?

A pandemia tem revelado uma série de outros paradoxos e contradições. Ela mostra que ações individuais intencionais podem ter consequências coletivas indesejáveis1. A redução da ideia de “liberdade” a comportamentos individualistas, que não levam em conta as implicações sistêmicas de nossas ações e interesses, coloca em perigo as pessoas ao nosso redor — e além2. Progressivamente, exponencialmente.

A pandemia nos mostra que agir individualmente mantendo o coletivo sob os olhos é o modus operandi mais inteligente para a preservação… do indivíduo! Nos demanda entender a importância da cooperação como forma de maximizar benefícios também individuais. Essa realização tem o peso de um novo paradigma, capaz de pautar nossa vida econômica e segurança pessoal. O coletivo e o individual são muito mais interdependentes do que muitos pensavam.


O coletivo e o individual são muito mais interdependentes do que muitos pensavam.


A pandemia ainda nos mostra que é possível romper com a narrativa de décadas de que o motor da economia precisa estar em aceleração constante. Práticas econômicas se mostram frequentemente estruturadas em torno de princípios irreais a longo prazo, como recursos infinitos e capacidade total de absorção ambiental de suas externalidades negativas.

Praticamente todo o mundo (com a infeliz exceção do Brasil) convergiu na prioridade da saúde pública sobre a economia. A economia passou a funcionar de forma mais lenta. Países entraram na pior recessão desde 1929 para reduzir contágios, salvar vidas e evitar colapsos hospitalares. As enormes perdas nas redes produtivas — agentes, organizações, pessoas — sugerem a urgência de um planejamento econômico atento a risco de futuros outbreaks epidêmicos e amparado em protocolos internacionais de cooperação. A pandemia escancarou a interdependência de sociedades, regiões e povos. E deixa a lição de que, quando necessário, é possível convergir em prioridades humanitárias.

O vírus e sua transmissão se valem de duas coisas. A primeira é a mobilidade global, as conexões em um mundo altamente integrado, sobretudo para as classes  mais altas. Pandemias anteriores, como a de Influenza em 1918-1920, que contaminou 500 milhões e ceifou 50 milhões de vidas, já mostravam um mundo globalizado. A alta velocidade de expansão da pandemia Covid-19 dá a exata medida do grau de integração pessoa a pessoa do mundo atual. Small world: uma rede social global de baixa profundidade. A sucessão dos países atingidos dá indícios de sua posição na topologia global de países e cidades, em que pesem a proximidade geográfica e relações entre regiões específicas.

A segunda é a cidade como motor de contato. O modo como a pandemia se concretiza se vale das estruturas de interação materializadas na forma das nossas cidades. Desde sua origem, por volta de 8.000 anos atrás, cidades são máquinas de gerar contato e comunicação.

Cidades como conectores de redes sociais, intensificando as interações. (Imagem: Tunnelarmr/Flickr)

Em uma pandemia, só pode haver contágio se houver contato. E cidades são formas muito eficientes de criar contato entre as pessoas. Essa é sua natureza, é isso o que cidades fazem. A essência da cidade é a interação. Cidades fazem a compressão das interações no espaço e no tempo: concentram atividades, distribuem pessoas, residências e instituições, estruturam suas interações.

Cidades são lugares de difusão — de ideias e inovações —, sobretudo as cidades maiores e mais densas. Isso vale para a economia: a chamada vantagem aglomerativa. Com mais pessoas concentradas no espaço, temos mais interações, mais ideias, mais fertilização cruzada entre setores econômicos, mais ganhos de especialização e de diversificação na economia, mais inovações. 


Com mais pessoas concentradas no espaço, temos mais interações, mais ideias, mais fertilização cruzada entre setores econômicos, mais ganhos de especialização e de diversificação na economia, mais inovações. 


A disseminação de um vírus segue a mesma lógica, e esse é outro paradoxo que vivemos: o mecanismo da cidade como compressor de interações, gerador de encontros imprevistos e serendipidade, é o mesmo mecanismo do contágio. É o veículo que o vírus, outro mecanismo eficiente, usa para sua sobrevivência.

Mas não se trata de culpar ingenuamente nossas cidades. O vírus tira partido dos sistemas altamente interativos dentro e entre elas. A partir das limitações de protocolos internacionais de contenção da mobilidade em situações de outbreaks locais de epidemias, a chegada era questão de tempo. A pandemia emerge mais rapidamente em uma rede global trabalhando de forma cada vez mais integrada — mas certamente não foi a primeira a ocorrer ao longo da história humana.

Desenho urbano

A questão agora é o que isso vai significar para o futuro da vida urbana, o futuro das nossas vidas na cidade (ou fora dela). Depois da experiência de isolamento e de incorporarmos profundamente a necessidade de evitar o contato, um novo código de comportamento social no espaço, vamos nos sentir confortáveis em compartilhar locais públicos ou edifícios com outras pessoas? As pessoas vão querer andar em suas cidades ou em ruas outrora borbulhando urbanidade, como a emblemática Avenida Presidente Vargas no Rio, o centro de São Paulo, a Times Square em Nova York? Há um sério risco de que muitas pessoas não queiram mais essa experiência, em função dos riscos. As marcas podem ser profundas no uso do espaço urbano, e talvez na própria forma do espaço urbano no futuro próximo. 

Não sabemos como a pandemia do coronavírus vai impactar o futuro das cidades, mas as epidemias e pandemias passadas deixaram impactos muito visíveis. O final século XIX ainda não conhecia a causa e os meios de transmissão de doenças como a cólera. A microbiologia engatinhava. Infraestruturas urbanas de saneamento eram inexistentes. Culpou-se o visível: as cidades e suas densidades. Em seguida, a pandemia do Influenza em 1918 teve ondas até 1920, contaminando 500 milhões de pessoas (em um mundo então com 1,8 bilhão) e vitimando 50 milhões de pessoas. Esses eventos terríveis e os sentimentos anti-urbanos que eles despertaram deram origens a novas imaginações da cidade — as chamadas utopias, que buscavam cidades assépticas (e vazias) e terminaram moldando muitas cidades e áreas urbanas ao longo do século XX, de Hansaviertel em Berlim e do Pritt Igoe em St Louis à Brasília e à Barra da Tijuca no Rio de Janeiro.

Hansaviertel, Berlim. (Imagem: Peter Kuley/Wikimedia)
Barra da Tijuca, Rio de Janeiro. (Imagem: Marcelo Guerra/Flickr)

Um impacto de grande potencial de repercussão da nova pandemia de Covid-19 sobre nossas cidades já se faz sentir: a separação histórica entre casa e trabalho pode ser borrada ou mesmo desaparecer. Ordens de isolamento e lockdown levaram empresas e instituições de informação e serviços, de companhias de software a universidades, a promover o trabalho em casa para seus funcionários. Isso vale sobretudo para aqueles (e suas classes e campos sociais) trabalhando em setores da economia da informação, produção de conteúdos, gerência de processos, tecnologias, ciência e pesquisa.

Mercado de trabalho

Outro impacto visível é uma divisão social emergente, filha da velha divisão de classes: aqueles envolvidos em atividades informacionais podem trabalhar de suas casas; trabalhadores “essenciais”, mantendo da venda de alimentos aos sistemas de transporte e saúde, seguem atuando e se locomovendo na cidade, expostos a riscos. Essa é uma questão de fundo ético que precisa ser imensamente debatida.


A separação entre casa e trabalho está na base da criação das cidades, historicamente: o fato de que classes de especialistas emergiram e passaram a cooperar em lugares específicos e especializados, fora da habitação.


Fiquemos aqui com o primeiro impacto. A separação entre casa e trabalho está na base da criação das cidades, historicamente: o fato de que classes de especialistas emergiram e passaram a cooperar em lugares específicos e especializados, fora da habitação. Essa separação tem repercussões. Ela dispara novos arranjos espaciais e sociais. Ela gera novas atividades urbanas, molda sua localização e distribuição no espaço, e a própria estrutura das cidades. 

O que acontece se essa separação se dilui? Já víamos a tendência de usar certos dias da semana, como as sextas-feiras, para funcionários dos setores informacionais trabalharem de casa, em home office. Agora essa tendência pode incluir uma inversão: trabalhar na empresa apenas um dia por semana, por exemplo, para coordenação, gerenciamento e reuniões que vão disparar trabalhos a serem feitas em casa.

Por isso tudo, a preocupação de muitas organizações nesse momento é em como tornar seus funcionários produtivos fora de suas sedes e evitar enormes perdas com a mudança para o trabalho em casa. Muita gente está olhando de perto formas de solucionar esse problema, pensando em tecnologias e logística.3

Estações de trabalho informacional ficaram praticamente vazias durante a pandemia em 2020. (Imagem: Can Pac Swire/Flickr)

Empresas estão perdendo (e investindo) bilhões nesse processo de aprendizado, o que só reforça a possiblidade de que seja irreversível que parte substancial do corpo produtivo em nossas sociedades passe a trabalhar de casa. Em outras palavras, pessoas e empresas podem optar pelas economias (de tempo e de espaço) e vantagens do trabalho em casa, e não desejarem mais retornar funcionários para suas sedes. Isso também está ocorrendo no Brasil: a Petrobras anunciou recentemente que pode funcionar com 50% de seus funcionários em suas casas, adotando o home office permanentemente, reduzindo custos com aluguéis e propriedades. 

Se consolidado, esse movimento pode levar a novos arranjos do mundo do trabalho, com redução da necessidade de presença nas sedes físicas de organizações, ou limitando o número de dias de presença. Tecnologias vem sendo desenvolvidas para isso, e para dar mais condição de trabalhar de casa. É a ideia de “hack our homes”, adaptar nossos lares para o trabalho e para a cooperação à distância, transformando casas em “lugares eficientes”. Se isso se confirmar, vai impactar nossos hábitos, nossa arquitetura, as dinâmicas de relação familiar, a borda entre vida profissional e vida pessoal. 

Por exemplo, escrevo esse texto enquanto minha filha de 20 meses está no meu colo montando um quebra-cabeças. Faço reuniões via internet com ela “acampada” perto de mim. Talvez borrar essas bordas impacte o pragmatismo e a racionalidade produtivista, trazendo mais afetividade no mundo do trabalho, ou mais continuidade entre demandas da profissão e o universo da família e da privacidade.

Aparentes perdas de produtividade podem levar a ganhos de ânimo. Ou podemos ter efeitos na outra direção: novos arranjos de tempo e espaço do trabalho em casa poderão impactar tanto a vida familiar quando a profissional, em um trade-off danoso. Tudo isso terá de ser acompanhado ao longo do tempo.


Mas os impactos urbanos podem não se limitar ao trabalho e à sua relação com a moradia. Muitas pessoas podem simplesmente não querer mais viver nas cidades.


Mas os impactos urbanos podem não se limitar ao trabalho e à sua relação com a moradia. Muitas pessoas podem simplesmente não querer mais viver nas cidades. Reportagens recentes falam do “trauma do distanciamento social”, da descentralização urbana, e da perda de população em grandes cidades. A evasão de nova-iorquinos dos bairros mais abastados em direção a subúrbios fora da cidade durante a pandemia ilustra o processo. A retração das pessoas em relação às cidades e um sentimento anti-urbano podem intensificar a tendência a buscar formas de viver em pequenas comunidades, compartilhando espaços, co-living, vivendo e trabalhando nos mesmos edifícios.

Já víamos essa tendência de multi-funcionalidade em espaços que se beneficiam da urbanidade, sobretudo para millenials (nascidos entre 1980 e 1994) e aqueles da geração Z (nascidos de 1995 em diante) em SP ou em NYC. A pandemia pode intensificar a lógica do sharing em pequenas comunidades profissionais, por exemplo, em clusters suburbanos, distantes dos centros.

Arranjos suburbanos podem se tornar hubs de trabalho informacional. (Imagem: Matt Stewart/Flickr)

Isso significa a possibilidade de dispersão espacial — algo que se temia com a popularização da Internet no final dos anos 1990. Naquele momento, pensou-se que essas tecnologias permitiriam que as pessoas saíssem das cidades e se dispersassem em clusters. Termos como “o fim da cidade”, “o fim da geografia” e “a morte da distância” se multiplicaram e futurólogos ganharam notoriedade. Mas o fim das cidades não aconteceu: elas continuaram pulsantes, ganhando em efeitos multiplicadores a partir das trocas digitais. 

Dispersão espacial?

Entretanto, a leitura de especialistas em setores de informação é a de que novas tecnologias digitais e plataformas colaborativas vão finalmente permitir essa dispersão, impactando as cidades como entidades de concentração de trabalho e pessoas4. O tecido da cidade poderia ser rompido por essa força centrífuga. Espaços e edifícios receberiam novos usos na cidade, ou ficariam subutilizados. Por sua vez, lugares e ambientes suburbanos em torno da habitação seriam otimizados para efeitos de efetividade de custos e performance — “hacking the built environment“. 

Temos os ingredientes. A quebra da separação casa-trabalho que estrutura as cidades desde sua origem. A redução da dependência da copresença e, portanto, das cidades. O suporte de plataformas de consumo à distância, via hubs locais ou periféricos distribuiriam produtos e suprimentos — como a Amazon já oferece nos Estados Unidos. Habitações construídas via processos otimizados. O processamento de resíduos domésticos realizado já nas edificações. A autossuficiência dos clusters e comunidades visível também nas “community watches“, vigilância peer-to-peer ou entre pares, complementadas por sistemas de câmeras e drones de vigilância. Tudo isso enquanto se olha para medidas de sustentabilidade, como evitar custos e externalidades ambientais da movimentação diária ao trabalho. 

Esse seria um futuro suburbano, organizado de baixo para cima, a partir da aquisição de tecnologias de trabalho, consumo e proteção disponíveis a comunidades capazes de pagar por elas. É um novo apelo à vida em pequenas comunidades que parece se encaixar em tendências atuais de auto-segregação e gated communities.

Esse futuro atomizado em clusters socialmente homogêneos pode soar assustador — e decididamente anti-urbano. Essa forma de viver tem apelo desde o final do século XIX. A fuga das classes com trabalho informacional, já visível na redução recente de tamanho de cidades como Nova York, pode significar novo momento no jogo de tendências urbanas e não-urbanas, forças centrípetas e centrífugas, com resultados ainda difíceis de prever. E está na raiz do debate que demoniza novamente a cidade e sua densidade urbana na pandemia.

Notas

1 O conceito de consequências coletivas indesejáveis de ações individuais desejadas é de Thomas Schelling: Veja Schelling, T.C. (1978) Micromotives and Macrobehavior. Norton: New York.

2 Veja o argumento de Nassim Nicholas Taleb: “todo o conceito de liberdade está no princípio da não agressão, o equivalente à regra de prata: não prejudique os outros; eles, por sua vez, não devem prejudicá-lo. […] Observe que ao infectar outra pessoa, você não está infectando apenas outra pessoa. Você está infectando muitos mais e causando riscos sistêmicos.” (item ‘Sixth error: the non-aggression principle’).

3 Agradeço pela discussão e informações trazidas pelos tecnólogos Rafael Kaufman e Gianni Giacomelli. Limitações do argumento são de responsabilidade do autor.

4 Pontos discutidos com os tecnólogos Rafael Kaufman e Gianni Giacomelli. Limitações do argumento são de responsabilidade do autor.

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  • Olá Vinícius, obrigado pela reflexão.
    Fiquei, no entanto, com algumas críticas e questões ao chegar ao final. A crítica é que se extrapola o ‘efeito contágio’ do vírus como regulador da vida futura. Observando os efeitos desta e de outras crises sanitárias, me parece que os efeitos tendem a se dissipar e que o ‘novo normal’ inclui uma aceitação tácita de riscos a partir de sua aceitação como fato da vida. Temos isso com diversas outras causas de morte, tal como as doenças respiratórias causadas pela poluição. Certamente teremos novas infraestruturas, certamente teremos perdas e ganhos e o contágio (deste e de outros vírus) entrarão na equação quanto à escolha locacional, mas difícil acreditar que seja disparador de uma onda de suburbanização.
    Por outro lado, a crise aguda que vivemos pode sim desencadear a adoção maciça de tele-trabalho, vencendo uma inércia tecnológica e social que vivíamos. As crises bruscas tem esse papel: a de nos fazer enfrentar as tendências latentes e ganhar ímpeto na mudança dos comportamentos – certamente vemos isso nos projetos de saneamento e embelezamento urbano da Europa de Hausmann em diante.
    Sobre esta tensão, as vantagens de aglomeração não desaparecem. Talvez se flexibilizem as possibilidades para a dispersão e ela aumente em frequência ao longo da nossa vida. Talvez a possibilidade de intercalar trabalho presencial com tele-trabalho permita que estejamos em mais lugares em tempos próximos. Isso pode indicar outra tendência de aglomeração: nos centros médios, bem servidos de infraestrutura de transporte. De outra forma, a tendência de crescimento de cidades médias (não tão grandes a ponto de serem intratáveis, nem tão pequenas a ponto de não terem a melhor infraestrutura) pode se intensificar junto com o aumento da suburbanização que já vimos crescer nos últimos 50 anos.
    Pergunto se não existem mais variáveis a serem investigadas nessa tensão entre as vantagens da aglomeração e os seus custos. Até onde sabermos, a densidade não mostrou correlação com o contágio e morte pela pandemia (ver https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/01944363.2020.1777891 e https://ourworldindata.org/grapher/covid-19-death-rate-vs-population-density). Aparentemente, depende da escala em que é medida. Pode-se facilmente entender que a alta densidade na escala local também está ligada à existência de serviços de saúde de alta complexidade, que diminuem a mortalidade. No entanto, países ou regiões densos tiveram sim maior contágio, pela comunicação mais intensa que abordas no texto.
    Outras questões permanecem: quais podem ser os motores dos ciclos futuros de urbanização? Vimos que a tecnologia da informação acelerou a concentração urbana global. Pode-se esperar um efeito ‘rebote’ do tele-trabalho? Como a desigualdade entre ‘aqueles que tele-trabalham’ e ‘os trabalhadores presenciais’ pode influenciar a segregação futura? O quanto as condições ambientais permitirão o espalhamento das cidades em cada região? O quanto os custos energéticos (e em carbono) da urbanização dispersa serão tolerados em uma sociedade que se vê na sombra da crise climática?
    Mais uma vez, obrigado pela reflexão. Um abraço.

    • Oi Alexandre
      Obrigado pelas tuas questões e críticas; são pertinentes, claro.

      Acho que pandemias e epidemias anteriores deixaram marcas profundas sim – como menciono, alimentando sentimentos anti-urbanos que por sua vez alimentaram utopias e o próprio ideário do movimento urbano moderno. Se essa cadeia de conexões faz sentido, como me parece o caso (aliás, a questão sanitária é explícita para proponentes como Le Corbusier – incluindo a linguagem preconceituosa que ele usava contra a cidade tradicional), os impactos sobre cidades foram enormes. A própria ideia de suburbanização, algo forte por exemplo para Frank Lloyd Right, parece ancorada nesse sentimento anti-urbano. Provavelmente há outros componentes nele, mas acho difícil ignorar as ondas de cólera do século XIX e a pandemia do Influenza em 1918-20.

      O texto lida com prospectos, levanta possibilidades, tenta identificar elementos de gênese de movimentos. O que podemos fazer nesse momento é a prospecção – além de colher dados urbanos e acompanhar a evolução desses movimentos de saída da cidade, uso de transportes públicos, retorno ou não de trabalho às sedes de empresas etc. Nesse caráter de prospecção, minha hipótese é a de que nada tão radical quando as baixas densidades do urbanismo moderno vai acontecer. Mas a suburbanização já vinha como movimento forte em diversos países, com variações, e parece ganhar mais um vetor com a pandemia e as condições do tele-trabalho. De novo, é questão de olhar os dados.

      O dado que vi sobre Nova York, onde vivia quando escrevi o texto (em maio), indicava evasão expressiva de Manhattan e de outras áreas da cidade. Isso era visível inclusive no bairro onde eu morava. Muitas dessas pessoas deverão retornar agora que a pandemia está sob controle em NYC, mas há casos de famílias (conforme notícias na imprensa e do nosso contato pessoal) que saíram de NYC de vez. Esse é apenas um caso. Como disse, precisamos de dados para ver se esse comportamento se repete e generaliza.

      Há um fato simples nisso tudo: as pessoas, empresas e instituições estão aprendendo que o tele-trabalho funciona e que tem vantagens – reduz tempo de transporte para as pessoas, corta custos em espaço imobiliário para empresas. A própria necessidade de viagens aéreas está sendo discutida e revista por empresas e universidades, como vi na imprensa (posso buscar links, se quiseres). Ou seja, a demanda por solo em lugares centrais pode realmente cair.

      Note ainda que se o tele-trabalho alivia a necessidade de viagens, isso deve reduzir o impacto ambiental da suburbanização. Pode na verdade levar a melhor desempenho nas emissões. Além de tudo, essas dinâmicas são governadas sobretudo bottom-up, portanto vão depender de como populações (ou parte dela, parte da classe informacional) vai reagir e se comportar nos próximos anos.

      Note que não se trata de ‘torcer’ por cidades ou contra cidades e densidades – trata-se de levantar possibilidades e acompanhar a evolução do problema.

      Como coloquei, teremos de ver como esse jogo de (novas) forças centrífugas e as tradicionais forças centrípetas vão se desenrolar. Cidades devem continuar sendo centros pulsantes, mas pode haver menos estímulo à densificação; dependência maior entre centros e clusters suburbanos, com trabalho cooperado à distância e consumo local; e um mudança, mesmo que sutil, nos pesos nessa hierarquia entre cidades (pensando aqui em Christaller).

      Sobre correlação entre densidade e contágio na pandemia, outros estudos que mostram que há sim, e ela é positiva, incluindo para o Brasil (veja links abaixo). Vou ler o paper que indicaste, mas adianto que o segundo dado, que usa médias de densidades nacionais, não parece fazer muito sentido pra mim, considerando a agregação nacional, limiares de tamanho de população pra que efeitos de escala aparecem, e o ruído que esses dados têm.
      Nós também estamos olhando para o problema do tamanho das cidades e o das densidades, e encontramos correlações positivas entre ambas variáveis e contágios para 291 cidades brasileiras acima de 100k habitantes.

      Veja:
      Cardoso, B. H. F., & Gonçalves, S. (2020). Urban Scaling of COVID-19 epidemics. arXiv preprint arXiv:2005.07791.
      Ribeiro, H. V., Sunahara, A. S., Sutton, J., Perc, M., & Hanley, Q. S. (2020). City size and the spreading of COVID-19 in Brazil. arXiv preprint arXiv:2005.13892.
      A. J. Stier, M. G. Berman, and L. M. A. Bettencourt (2020) COVID-19 attack rate increases with city size. ArXiv preprint

      Veja ainda nosso estudo em andamento: https://caosplanejado.com/as-cidades-na-pandemia-o-papel-do-tamanho-e-da-densidade-urbana/

      A pandemia ainda está em evolução, logo todos esses achados são preliminares. Logo publicaremos nossos achados no arXiv.

      No contexto de um fenômeno de enorme escala e em movimento como é o caso de uma pandemia, o que podemos dizer com certeza é que há muito a fazer em pesquisa.

  • Eu discordo que as cidades vão perder força. Elas continuarão sendo o foco. Todos nós estamos ávidos para voltar à vida urbana normal, a abraçar amigos, apertar mãos, ir para bares, fazer happy hour. Na verdade, pelo que vejo, as pessoas nunca deram tanto valor para estar na rua como têm dado agora. Aliás, é só ver o que acontece quando as medidas são “relaxadas”. Os bares lotam. E se algumas cidades diminuem de tamanho, isso está muito mais ligado ao fato de que perderam a capacidade de gerar mercado de trabalho do que porque as pessoas querem se isolar. Dificuldade de se conseguir emprego e imóveis muito caros (em virtude de regras que impedem a construção de novas casas, etc.), é o que diminui o tamanho das cidades. É o caso de Detroit, por ex.. A tecnologia ainda não é capaz de substituir o prazer de estar na companhia de outras pessoas 😉

    • Caro, também acredito que cidades não ‘perderão força’ (essas palavras não são minhas) – mas há sinais de que empresas, por exemplo, venham a precisar de menos espaço (veja matéria sobre a Petrobrás, no link acima), e há dados mostrando evasão de moradores em Nova York (onde eu vivia quando escrevi o artigo).

      Note que o objetivo desse texto não é afirmar que certa tendência vai ocorrer, mas levantar possibilidades.