Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Em seu novo livro, Florida sugere que estamos vivendo uma Nova Crise Urbana. De que crise ele está falando? O que nós achamos disso?
6 de junho de 2017Richard Florida é famoso por escrever sobre a “classe criativa” — muitas vezes representada sob o estereótipo do jovem urbano progressista. Mas em seu novo livro, The New Urban Crisis (A Nova Crise Urbana, tradução livre), Florida segue uma direção bem diferente, redesenhando a classe criativa como as classes altas com mais acesso a educação. Seus mapas de várias áreas metropolitanas, por exemplo, frequentemente descrevem como bairros da “classe criativa” os subúrbios ricos mais afastados.
Qual é a crise de que Richard Florida está falando? Em primeiro lugar, o custo de vida em áreas metropolitanas badaladas, que cresce de maneira explosiva, e o (altamente relacionado) aumento da desigualdade de renda e da segregação residencial.
Como muitos outros comentaristas (incluindo o deste texto), Florida enfatiza os efeitos negativos do NIMBYismo[1]. Ele aponta que proprietários “têm mais a ganhar ao aumentar a escassez de terra utilizável do que ao maximizar seus usos produtivos e econômicos”. Como resultado, eles apoiam zoneamentos que limitam a oferta artificialmente. Richard Florida vai ainda mais longe ao sugerir que essas políticas prejudicam a economia como um todo.
Por exemplo, se “todo mundo que quisesse morar em São Francisco tivesse condições financeiras de viver lá, a cidade veria um aumento de 500% no número de empregos…No âmbito nacional, [resultados parecidos] somariam um aumento anual de $8.775 para cada trabalhador médio, acrescentando 13.5 por cento ao PIB dos Estados Unidos — um ganho total de quase $2 trilhões” (p. 27).
Mas na próxima página, Richard Florida critica a ideia de que “nós podemos deixar nossas cidades mais acessíveis… simplesmente se livrando de restrições de terreno existentes” porque “o alto custo das terras em bairros badalados faz com que seja praticamente impossível para o setor privado criar moradia acessível na sua proximidade. Combine o alto custo do terreno com o alto custo da construção de arranha-céus e o resultado é mais moradia de luxo” (p. 28).
Por outro lado, os preços dos terrenos são, frequentemente, bem voláteis. Mais importante, a grande maioria das casas de qualquer região não é exatamente nova; mesmo em regiões que crescem muito, como Houston, só 2 por cento das novas moradias foram construídas depois de 2010. Deste modo, novas unidades a preço de mercado tendem a diminuir os valores dos aluguéis afetando o preço de unidades mais antigas, e não trazendo novas unidades mais baratas.
Então mesmo que essas novas moradias estejam caras, elas podem estabilizar os preços de moradias mais antigas. Dito isso, eu não acho que Richard Florida seja contra diminuir as regulações; na verdade, ele parece estar dizendo que reduzir regulações pode ter um papel em estabilizar preços, mas elas deveriam estar combinadas com outras políticas, como um imposto sobre o valor do terreno.
Florida também escreve que “muita densidade pode, na verdade, anestesiar regiões” porque “os lugares mais inovadores e criativos não são os paredões das cidades asiáticas, mas os bairros mais caminháveis e com maior variedade de usos de São Francisco, Nova York e Londres” (p. 28).
Isso significa que regiões mais verticalizadas não podem ser caminháveis e multiuso? Ou que Nova York não tem “paredões” de arranha-céus”? E que evidência há de que cidades asiáticas são menos “criativas” que as americanas?[2] Como Richard Florida não explica esses pontos, não sei ao certo o que ele está pensando.
Richard Florida prossegue para uma discussão sobre desigualdade; ele começa pontuando que regiões mais caras são, na verdade, uma ótima opção para o trabalhador médio, mesmo com aluguéis altos.
Em São Francisco e Nova York, por exemplo, sobram ao trabalhador $40-46.000 depois de pagar por moradia, enquanto em cidades que crescem mais e custam menos, como Virginia Beach, Orlando e Las Vegas, sobram apenas $25.000-29.000.
Especialmente para trabalhadores da “Classe Criativa” (definidos na p. 217 como trabalhadores de uma lista variada de ocupações); o trabalhador criativo médio tem $71.141 em, por exemplo, São Francisco, enquanto em regiões metropolitanas de custo mais baixo ele tem $50-55.000.
Por outro lado, trabalhadores de serviços mais convencionais têm uma leve vantagem em São Francisco; $16.806 depois de pagar por moradia em São Francisco, e $12-15.000 em três cidades de custo mais baixo.
Me surpreendi ao ler que trabalhadores se dão melhor em áreas metropolitanas de maior custo, mas dois detalhes em especial chamaram a minha atenção. Em primeiro lugar, se Richard Florida usasse renda média ao invés de média das rendas, os trabalhadores ainda sairiam melhor em regiões de maior custo, ou os aparentes alto salários dos trabalhadores dessas cidades são resultado de alguns salários maiores aumentando a média da região?
Em segundo lugar, a qualidade da moradia é comparável em áreas de maior crescimento — ou o trabalhador médio de São Francisco está dividindo quarto enquanto seu homólogo em Virginia Beach compra uma casa grande para si?
Florida, então, dedica um capítulo à desigualdade: ele escreve que esse problema é mais agudo em “áreas metropolitanas grandes, densas e com economias baseadas na produção de conhecimento”. No entanto, esses dados revelam uma imagem mais complicada.
Uma medida de desigualdade é o coeficiente de Gini; por essa medida as regiões metropolitanas mais desiguais incluem não só cidades densas como Nova York, São Francisco e Boston, mas também as espraiadas Birmingham, Memphis e Houston.
De qualquer maneira, Richard Florida poderia explicar de maneira mais clara por que isso importa; ele escreve que “os mesmos fatores que conduzem o crescimento econômico também conduzem a desigualdade” (p. 88) mas “um nível maior de desigualdade de renda …pode ser, e muitas vezes é, um empecilho ao crescimento econômico” (p. 90). Não tenho certeza de como essas duas afirmações se encaixam.
Richard Florida também se preocupa com segregação; ele escreve que a classe criativa é mais segregada em polos tecnológicos e cidades badaladas (p. 108). Mas seus próprios gráficos deixam claro que outros tipos de segregação são mais fortes em regiões metropolitanas menos atraentes.
Por exemplo, a segregação dos mais pobres é maior na região metropolitana de Rust Belt: Florida lista as cinco piores regiões metropolitanas nesse ponto como Milwaukee, Hartford, Filadélfia, Cleveland e Detroit — todas áreas com crescimento lento ou cidades centrais decadentes (p. 1010). Não fica claro para mim o porquê do primeiro tipo de segregação ser mais danoso que o segundo.
Perto do final do livro, Florida inclui um capítulo sobre a “crise urbana global”. Ele afirma que, enquanto o desenvolvimento econômico tem historicamente “andando de mãos dadas com a urbanização… A conexão entre urbanização e crescimento se tornou muito mais tênue, produzindo um novo padrão problemático de ‘urbanização sem crescimento'” (p. 174). Mas apenas uma página depois, ele escreve que “mesmo se a urbanização não é uma receita infalível para a prosperidade, ela ainda é melhor que a alternativa” (p. 175).
Ele afirma que cidades de terceiro mundo tendem a ser muito mais produtivas que as áreas rurais dos mesmos países; enquanto a típica região metropolitana americana é no máximo 50% mais produtiva que a média nacional, muitas regiões metropolitanas do Terceiro Mundo são duas, três ou ainda dez vezes mais produtivas que a média dos seus países. Qual é o ponto de Richard Florida, então? Eu acho que ele está tentando dizer que urbanização no Terceiro Mundo melhora a vida das pessoas, mas o status quo poderia ser melhorado.
Seu último capítulo tem o título “Urbanismo para Todos”: esse é, na maior parte, um amontoado de políticas progressistas (como mais transporte público, mais vouchers para moradia, alguma forma de renda básica garantida para todos).
Contudo, ele é menos pró-regulação que os progressistas mais extremos, sugerindo que controle de aluguéis pode desencorajar a renovação dos aluguéis das propriedades, e que zoneamento inclusivo tende a aumentar a oferta apenas nos mercados mais aquecidos.
Para colocar de outra forma, o instinto de Richard Florida parece ser moderadamente mas não extremamente progressista; ele defende diversos gastos por parte do governo em infraestrutura e redução da pobreza, mas se preocupa em não sufocar o setor privado com regulações excessivas.
1. Not In My Backyward (No Meu Quintal Não, tradução livre) é um fenômeno organizado por moradores que se opõem à construção de desenvolvimentos/empreendimentos na sua região.
2. Honestamente, Richard Florida argumenta em algum lugar no seu livro que as regiões metropolitanas mais prósperas dos Estados Unidos recebem mais investimentos de risco que Xangai e Pequim (p. 44). Isso também é verdade nas não-tão-caminháveis Los Angeles e San Diego, mas a noção de que urbanismo menos vertical causa essa diferença me parece bem questionável. Além disso, o fato de que os Estados Unidos é, no geral, um país muito mais rico que a China, pode ser relevante para essa questão.
Este artigo foi originalmente publicado no site Planetizen por Michael Lewyn em 2 de maio de 2017. Foi traduzido por Gabriel Prates e revisado por Anthony Ling.
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