Oportunidades para o Brasil e as cidades de língua portuguesa na África
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Oportunidades para o Brasil e as cidades de língua portuguesa na África

Laços históricos possibilitam o intercâmbio de conhecimento entre países do Sul Global

11 de janeiro de 2024

Até o fim do século, o continente africano deve representar 40% da população mundial. O crescimento populacional ocorrerá especialmente na África Subsaariana (ou seja, os países que estão localizados ao sul do deserto do Saara), região onde o crescimento populacional médio anual é de 2,5% (a título de comparação, o Brasil tem crescimento na média de 0,5% ao ano). 

Essa dinâmica tem um impacto direto nos processos de urbanização – por ano, mais de 15 milhões de pessoas migram ou nascem nas cidades da África Subsaariana, somando mais 900 milhões de habitantes urbanos até 2050. Portanto, não é difícil concluir que a escala e a rapidez em que a urbanização ocorre na região é um dos maiores desafios que a humanidade já enfrentou.

Tudo isso tem consequências globais: a urbanização, caso bem galgada, pode ser o motor para o continente se tornar uma potência mundial. Caso contrário, pode significar não só uma oportunidade perdida, mas maiores índices de pobreza, maiores fluxos de emigração (associada a fuga de cérebros), e maiores impactos ao meio ambiente e ao clima.

Boa Vista, Cabo Verde. Foto por: Evandro Holz

Pessoalmente, inclusive, a minha paixão pelo urbanismo e guinada de carreira ocorreu justamente ao ver em primeira mão o impacto do urbanismo em um país – África do Sul, onde morei por dois anos, e onde pude investigar a fundo como a segregação imposta pelo apartheid tem raízes no planejamento urbano, com uma influência que irá perdurar por muitas gerações.

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Naturalmente, a urbanização tem uma dinâmica diferente em cada país. Ao considerarmos os nossos irmãos lusófonos, denominados conjuntamente de PALOPs (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa – Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe), a pluralidade de contextos fica evidente. Angola e Moçambique, por exemplo, são países de porte médio (entre 30-35 milhões cada um), porém com níveis de urbanização significativamente diferentes (37,1% e 66,8%, respectivamente).

Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, por outro lado, são países pequenos, com populações variando entre 200 mil e 2 milhões, e também com diferentes índices de urbanização. 

A nível local as diferenças também são significativas: A área metropolitana de Luanda, em Angola, tem uma população maior que 5 milhões de pessoas, enquanto a capital moçambicana, Maputo, agrupa cerca de 1,7 milhões de pessoas em seus arredores.  Tanto Angola quanto Moçambique veem o crescimento constante de uma série de cidades secundárias (entre 500 mil e 1 milhão de pessoas), enquanto em Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe, as cidades mais importantes, possuem entre 20 e 100 mil habitantes.

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O tamanho do desafio, porém, é comum a todos os países – com poucas exceções, as cidades convivem com porcentagens altíssimas, de até 90%, de famílias vivendo em moradias inadequadas, sem acesso à transporte, saneamento e outros serviços públicos de qualidade.

Luanda, Angola. Foto por: Evandro Holz

As diferentes realidades se revelam também na forma como a urbanização é gerida: Cabo Verde, por exemplo, já conta com uma série de políticas e regulamentos que regem o desenvolvimento urbano e habitacional no país, e seus municípios têm governantes eleitos pelo povo. Grande parte dos outros países ainda depende de um número limitado de instrumentos, ou de diplomas que foram estabelecidos ainda na sua época colonial, antes que esses países alcançassem sua independência nas décadas de 1960 e 1970.

Poucos possuem autarquias estabelecidas, e algumas dessas administrações locais nem sequer contam com eletricidade. A diversidade vai além disso: a origem e o significado da palavra que se usa para identificar o que chamamos de “favela” também é diferente para cada contexto: são os caniços em Moçambique, os musseques em Angola, e os bairros de lata em Cabo Verde. Interessante dizer também que o termo “favela” é tido como pejorativo em muitos lugares.

A minha experiência revela uma clara e crescente oportunidade de colaboração entre o Brasil e os PALOPs em termos de urbanismo. Primeiro, porque a história nos une e, apesar de caminhos diferentes, resquícios do período colonial, seja em legislação, seja em cultura ou perspectiva, em diferentes níveis, continuam lá. Em segundo lugar, porque de certa maneira o Brasil tem muito de toda a diversidade que menciono acima – que vai muito além do processo da urbanização em si, obviamente, dado a grande influência histórica que o Brasil tem das mais variadas culturas africanas. Finalmente, porque existe uma troca crescente entre os países, que vai desde pessoas que estudaram no Brasil (grande parte das pessoas com quem trabalho, inclusive), até a influência de novelas, youtubers e outros influencers.

Essa conexão histórica e contextual faz com que a cooperação entre países do Sul Global ganhe cada vez mais relevância, em comparação com a cooperação mais “tradicional”, onde países mais desenvolvidos são os que tendem a “transferir conhecimento” ao restante.

Praia, Cabo Verde. Foto por: Evandro Holz

Agora, como isso se desenrola na prática?

A nível de cooperação internacional, campo onde trabalho, iniciativas como o programa Simetria Urbana promovido pela Agência Brasileira de Cooperação (ABC), através do Programa das Nações Unidas para Assentamentos Humanos (ONU-Habitat), por exemplo, serve de plataforma de colaboração entre cidades dos PALOPs (e outros países) e instituições brasileiras em temas que são definidos como prioridade nos países e cidades beneficiárias.

Pessoalmente, já pude participar de várias atividades desse tipo, como o intercâmbio entre técnicos da cidade da Praia (Cabo Verde) e São Paulo (Brasil) no tema de resíduos, que ocorreu em 2022. No passado, a mesma ABC já apoiou, no mesmo país, a estruturação de um programa de moradias de interesse social com base no Minha Casa, Minha Vida (o Casa para Todos, o qual, não sei se por coincidência ou não, teve sucessos – e desafios – muito parecidos com o seu homólogo tupiniquim).

Outra oportunidade de intercâmbio, dessa vez a distância, foi o Circuito Urbano, promovido também pelo ONU-Habitat no Brasil no âmbito do Outubro Urbano, que no ano de 2020 contou com a participação de todos os PALOPs.

Claro que essa interação vai muito além da cooperação internacional: conforme já mencionei acima, há muita conexão entre professores, estudantes e pesquisadores no meio acadêmico; uma série de conferências e encontros entre políticos e técnicos dos governos; e, obviamente, trocas cada vez mais facilitadas pelos diferentes canais online disponíveis, entre profissionais, ONGs, associações comunitárias e qualquer pessoa interessada no assunto.

Bissau, Guié-Bissau. Foto por: Evandro Holz

Não há dúvidas que essa troca é valiosa e traz muito a todos os países envolvidos. Contudo, naturalmente, cada país vai encontrando seu próprio caminho, de acordo com a sua cultura, contexto, geografia, economia e recursos. O tempo, todavia, é curto, e o “backlog” já é significativo.

O desafio então é duplo: como desenvolver seu próprio modelo, enquanto se resolvem problemas históricos e presentes – isso tudo em um ambiente político (e global) muitas vezes não favorável? Uma resposta definitiva certamente não existe, especialmente uma que se aplique a todos os países, mas tentativas existem, e muitas.

O bom é que, se há um local onde a relevância de se trabalhar em conjunto é valorizada é na África – algo explícito através de filosofias de vida como Ubuntu, e ditados como “Se quer ir rápido, vá sozinho. Se quer ir longe, vá em grupo”. Então, não nos resta nada mais que respeitar a cultura local e nos unir nesse “djunta mon” (o nosso “mutirão”), como se diz no crioulo cabo-verdiano e bissau-guineense.

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