As esquinas por que passei
Como as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
Carros passam a maior parte do tempo parados. Cobrar o estacionamento estimula o uso consciente e pode promover a mobilidade sustentável.
21 de outubro de 2021Quando parte das ruas é dedicada ao estacionamento, opta-se por dar uma destinação privada a um dos ativos mais valiosos da cidade. De ciclovias e faixas dedicadas para ônibus a calçadas mais espaçosas, parklets ou mesmo faixas de tráfego veicular misto, o cardápio de usos mais benéficos à coletividade é vasto. Mais do que nunca, é preciso repensar a mobilidade em nome de cidades mais prósperas e inclusivas. E a cobrança do estacionamento rotativo é um bom ponto de partida.
O transporte coletivo, a bicicleta e a caminhada são as opções mais sustentáveis na mobilidade urbana. Porém, enquanto sistemas de ônibus definham em meio à falta de recursos e à queda na demanda, e ciclistas e pedestres dispõem de infraestrutura precária em seus deslocamentos, cidades investem recursos vultosos na manutenção das vias — e ainda reservam parcela significativa para motoristas armazenarem um bem privado.
Trata-se de um investimento na mobilidade às avessas, já que um automóvel permanece até 95% do tempo estacionado. E de um incentivo a um modo de transporte que não pode ser a prioridade em um momento em que cidades buscam, além de eficiência e inclusão, a transição para o desenvolvimento de baixo carbono.
Mais carros nas ruas significam mais emissões, poluição, congestionamentos, sinistros e mortes no trânsito. Em São Paulo, por exemplo, os carros ocupam 88% das vias públicas e transportam somente 30% das pessoas. Para transportar um passageiro, um carro emite cerca de 4 vezes mais poluentes locais e 2 vezes mais poluentes de efeito estufa do que um ônibus.
A cobrança pelo estacionamento em vias públicas incentiva a migração para os modos sustentáveis. Como a maioria dos clientes do comércio local usa a mobilidade ativa, trata-se também de uma forma de estimular a economia.
Atualmente, talvez o motivo mais urgente para aprimorar as políticas de estacionamento em áreas públicas no Brasil seja a crise no transporte coletivo. É que, além de permitir a gestão da mobilidade, os valores arrecadados podem ser reinvestidos nos sistemas de ônibus urbanos.
Algumas cidades estão redesenhando as suas políticas de estacionamento rotativo para que se tornem, de fato, instrumentos de gestão e apoiem a construção de uma mobilidade mais sustentável e justa para todas as pessoas.
São José dos Campos é uma cidade pioneira na implementação de novas tecnologias e uma referência em inovação. Em 2020, a cidade paulista licitou seu estacionamento rotativo com uma sinalização clara de preocupação ambiental e de valorização do transporte coletivo e de qualidade. A outorga inicial de R$ 9,2 milhões da concessão foi revertida para a aquisição de ônibus elétricos e a cidade garantiu o repasse mensal de 38,5% da receita do estacionamento rotativo para o Fundo Municipal de Transportes.
A Zona Azul Eletrônica conta com mais de 5 mil vagas de estacionamento distribuídas pela cidade e utiliza um sistema moderno de monitoramento. A ocupação das vagas é monitorada por sensores instalados no pavimento que retornam ao sistema a taxa de ocupação em tempo real.
A informação do número de vagas é disponibilizada em sete painéis espalhados nas principais avenidas da cidade e por um app para smartphone, o que contribui para a eficiência e fluidez do tráfego, já que motoristas passam menos tempo procurando vagas ou parados em fila dupla. A fiscalização é realizada por quatro carros elétricos que capturam a imagens dos veículos estacionados, enviam para o sistema de retaguarda e permitem a autuação de veículos infratores sem necessidade de fiscais nas ruas. Recentemente, a cidade também reformulou os contratos de concessão do transporte coletivo.
A cidade de São Francisco implementou em 2011 o programa SFpark com um grande diferencial: a tarifa dinâmica, regulada pela demanda da hora e do local. Viabilizada por sensores que monitoram a disponibilidade de vagas, a tarifa é reajustada periodicamente com base nas taxas de ocupação. No geral, os preços são menores no período da manhã, mais caros entre meio dia e três da tarde e menores após esse horário.
A agência de transporte da cidade tem como meta estipular preços que levem a uma ocupação de 60% a 80% das vagas por quarteirão, de forma que não haja escassez nem excesso de oferta. Quando a taxa de ocupação se enquadra nessa faixa, o preço não é alterado. As receitas de estacionamento são geridas pela agência de transporte e uma parte significativa é destinada à operação do transporte coletivo na cidade.
Após ser testado em 7 mil das 28,8 mil vagas da cidade, o programa foi expandindo em 2018 para a totalidade das vagas. Os impactos são muito positivos. Nas áreas onde vigora o SFpark, houve uma redução de 8% do tráfego e de 30% nas emissões de gases de efeito estufa. A arrecadação anual é da ordem de US$ 1,9 milhões.
Lisboa conta com mais de 90 mil vagas de estacionamento pagas, geridas pela Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa (EMEL). A tarifa horária do estacionamento varia de acordo com o local, contemplando cinco zonas tarifárias: verde, amarela, vermelha, castanha e preta — da mais barata para a mais cara. A diferenciação busca adequar a oferta à demanda e atender as diferentes realidades socioeconômicas da cidade.
A zona verde corresponde a locais predominantemente residenciais e permite um maior tempo máximo de permanência — até quatro horas. No outro extremo, estão as zonas castanhas e pretas. Por estarem localizadas em áreas mais centrais e de caráter mais comercial, onde há o maior desequilíbrio entre a procura e a oferta de vagas, estão sujeitas às maiores tarifas — 3 € por hora — e permitem permanência máxima de duas horas. Residentes em áreas de cobrança têm gratuidade para uma vaga, sendo necessário pagar por um passe anual caso possuam mais de um veículo.
O valor arrecadado em 2015 foi de cerca de 21 milhões de euros — antes da criação das zonas castanha e preta, em 2021. A EMEL investe parte do valor arrecadado no estacionamento na gestão da mobilidade integrada em Lisboa e em formas mais saudáveis de deslocamento, como o sistema de bicicletas compartilhadas GIRA.
Para o incentivo ao transporte sustentável ser efetivo, o valor pago para estacionar um carro em via pública não pode ser meramente simbólico. A tarifa de estacionamento tem de contribuir para a competitividade, mas também para a qualificação do transporte coletivo e da mobilidade ativa.
São Francisco e Lisboa são exemplos dessa prática: nos horários de maior demanda (ou nas zonas, no caso de Lisboa), o valor do estacionamento por hora chega a ser algumas vezes o preço de uma passagem de transporte coletivo. Nas capitais brasileiras, à exceção de São Paulo, é mais barato pagar pelo estacionamento rotativo do que pela passagem.
É uma distorção que, se não endereçada, tende a se agravar. Enquanto as tarifas do transporte coletivo são reajustadas anualmente, as tarifas das zonas azuis pouco aumentam com o passar do tempo.
O quanto cobramos pelo estacionamento em comparação com o transporte coletivo também pode ser um indicador de equidade no transporte urbano. O fornecimento gratuito — ou a preços módicos — de armazenamento ilimitado de carros nas vias públicas é concedido às pessoas com renda suficiente para ter carros.
O caminho para uma mobilidade mais justa e sustentável passa pela cobrança do estacionamento em vias públicas. No Brasil, ainda há muito espaço para melhorias — e modos sustentáveis são as escolhas óbvias para receber os recursos gerados por essa gestão aprimorada.
Artigo publicado originalmente em WRI Brasil em 8 de setembro de 2021.
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarComo as esquinas, esse elemento urbano com tanto potencial econômico, cultural e paisagístico, podem ter sido ignoradas por tanto tempo pela produção imobiliária em São Paulo? É possível reverter essa situação?
Enquanto Nova York adia seus planos para reduzir o congestionamento, o sucesso de políticas de taxa de congestionamento em outras cidades prova que essa medida não é apenas inteligente — é popular.
As intervenções em assentamentos precários em bairros de maior e menor renda mostram que a política pública se dá de maneira distinta. Cabe questionarmos: o que leva a esse cenário? Quais forças devem influenciar a decisão de se urbanizar favelas em certos bairros e não em outros?
Para comemorar o aniversário de 10 anos, selecionamos artigos importantes de cada ano de existência do Caos Planejado.
A transformação da cidade de Medellín teve como inspiração um projeto brasileiro, mas é difícil reproduzir o modelo colombiano para obter resultados semelhantes aqui.
Garantir o direito das crianças ao brincar nos espaços urbanos vai muito além da construção de parques e playgrounds.
Nem tudo o que é prometido em termos de infraestrutura e serviços acaba sendo entregue pelas intervenções. Já a sensação de segurança, endereçada indiretamente pelas obras, pode aumentar, apesar de os problemas ligados à criminalidade persistirem nas comunidades.
Confira nossa conversa com Ricky Ribeiro e Marcos de Souza sobre o Mobilize Brasil, o primeiro portal brasileiro de conteúdo exclusivo sobre mobilidade urbana sustentável.
A criação de novas rotas de transporte informal pode ajudar a atender às necessidades de deslocamento de muitas pessoas.
Olá, aqui em Belém, não existe cobrança de estacionamento nas ruas da capital(na prática). Porque as cidades relutam em implantar a cobrança em estacionamento???