Anti-cidades digitais?
Foto: Wolf Art/Pexels

Anti-cidades digitais?

Promoções e praticidade do comércio eletrônico podem esconder impactos negativos da modalidade para a vida urbana das grandes cidades.

17 de novembro de 2025

Acho a velocidade um prazer de cretinos”. Foi nessa famosa frase do Nelson Rodrigues que pensei ao ler coluna recente do Mauro Calliari na qual, ao analisar propagandas de aplicativos de entrega prometendo mercadorias e comidas em até dez minutos (dez minutos!), ele questionava: “Pra que tanta pressa?”.

Especialmente porque essa pressa, mais do que simples reflexo de um estilo de vida acelerado, pode ter consequências negativas para as cidades. Calliari aponta, por exemplo, a deterioração da rua como espaço de permanência e convivência decorrente das inúmeras motocicletas cruzando os bairros de forma imprudente. Sem falar no elevado nível de ruído causado por elas, conforme mencionei na minha coluna no Caos Planejado.

A consequência mais grave desse alto número de motocicletas, entretanto, são os acidentes no trânsito. Segundo estimativas do FGV Cidades, somente os sinistros e atropelamentos causados pelas motos gerariam um custo anual na casa dos R$ 160 milhões para a cidade de São Paulo. Esses custos representam em Economia o que chamamos de externalidades negativas, que nada mais são do que efeitos colaterais negativos de uma decisão de consumo ou produção sobre aqueles que não participaram dela nem são recompensados de alguma forma por esses efeitos negativos que elas causam.

O e-commerce e o delivery de refeições apresentaram um enorme crescimento nos últimos anos, impulsionados por avanços tecnológicos e mudança de hábito dos consumidores, além de terem contado com o empurrãozinho da pandemia. Para os consumidores, além da comodidade das compras sem sair de casa, eles podem representar uma economia significativa. Por não ter os mesmos custos associados a itens como aluguel e pessoal, o e-commerce costuma oferecer preços mais baixos em comparação às lojas físicas. Por mais alto que seja o custo da entrega, refeições em casa também costumam sair muito mais em conta do que fora.

Contudo, podemos dizer que preços baixos e comodidade muitas vezes escondem custos que são compartilhados por toda a coletividade. Enquanto os consumidores ganham individualmente, há risco de prejuízos significativos para a cidade, a quem é imposta não somente os custos associados às motocicletas já mencionados, mas também outros, como os relacionados à concorrência com o comércio local, que não somente é um importante empregador, como também tem papel fundamental para a vitalidade dos bairros.

Além disso, a cadeia logística necessária para viabilizar entregas cada vez mais rápidas também pode ter impactos negativos nas cidades. Afinal, imóveis utilizados apenas para estoque de mercadorias praticamente não geram efeitos positivos para o entorno, ao contrário de residências e estabelecimentos de comércio e serviços. O mesmo pode ser dito das dark kitchens, cozinhas exclusivamente para delivery, sem área de atendimento ao público.

Leia mais: Espaços para lojas vazios X Espaços vazios ocupados por lojas

Mudanças na dinâmica econômica

Embora seja difícil mensurar o impacto da expansão do comércio eletrônico na vitalidade urbana, os dados da Relação Anual de Informações Sociais trabalhados pelo Observatório do Trabalho do Município de São Paulo nos dão algumas pistas da transformação em curso na dinâmica econômica setorial e territorial da capital paulista.

Entre 2013 e 2023, a quantidade de estabelecimentos formais no Comércio caiu de 110.899 para 64.340. A queda foi acompanhada pelo recuo de 930.096 para 902.096 no número de empregos formais. Essas quedas, contudo, foram em grande medida compensadas pelo aumento significativo do número de estabelecimentos e empregos formais no Setor de Serviços, no qual foram criados 113.293 novos estabelecimentos e 39.610 empregos formais no mesmo período.

Ainda que os números indiquem uma transição do setor do comércio para o de serviços, a eliminação de estabelecimentos e postos de trabalho em segmentos econômicos específicos é um fator preocupante do ponto de vista urbano, particularmente em tradicionais polos de comércio varejista como os distritos da Sé, Brás ou Lapa, onde, em uma breve caminhada, é possível observar muitos estabelecimentos fechados e diversas placas de “aluga-se”. 

Rua no Brás, em São Paulo, com lojas fechadas. Foto: Google Earth

Em 2013, a Sé, com 3.808 estabelecimentos, era o distrito com maior número de estabelecimentos formais da cidade no setor de Comércio. Em 2023, esse número caiu para 1.848, o que derrubou o distrito para a quinta posição. Tendência semelhante foi observada no Brás, onde o número de estabelecimentos formais do setor caiu de 3.041 em 2013 para 2.338 em 2023. Na Lapa, o número recuou de 2.121 para 1.167.

Esse fechamento de estabelecimentos comerciais em áreas com grande concentração de estabelecimentos de um setor específico pode exigir atenção, uma vez que o desenvolvimento de novas vocações econômicas e urbanas para um determinado território não é automático nem imediato (basta pensar que até hoje enormes áreas da região metropolitana de São Paulo ainda sofrem com os vazios urbanos causados pela desindustrialização).

A importância da vitalidade urbana e das interações sociais

Para além da frieza dos números, há elementos ainda menos tangíveis relacionados a essas transformações que também podem ter impacto na vitalidade das grandes cidades – e, por isso, merecem nossa consideração. 

A presença de mais pessoas na rua, afinal, pode ser uma externalidade positiva não apenas em termos de vitalidade urbana, mas também de segurança. Conforme escreveu Jane Jacobs, “a paz nas calçadas […] é mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presente em meio ao próprio povo e por ele aplicados”.

O consumo digital, ao levar ao fechamento de lojas físicas e manter as pessoas mais tempo em casa, também prejudica as interações sociais e os encontros espontâneos que as cidades podem proporcionar.

Mais e-commerce e tempo gasto nas plataformas digitais, por sua vez, pode significar não somente menos lojas, como já comentamos, mas também menos gente na rua. Além disso, o consumo digital, ao levar ao fechamento de lojas físicas e manter as pessoas mais tempo em casa, também prejudica as interações sociais e os encontros espontâneos que as cidades podem proporcionar – e que fazem delas locais não somente interessantes e estimulantes, mas também mais produtivos.

Pode-se dizer inclusive que esse é o entendimento de grandes executivos do setor de tecnologia, para quem a redução dos contatos sociais prejudicaria a criatividade e a cultura corporativa de suas empresas – e que, por isso, estão determinando a volta ao trabalho presencial, conforme analisei em outro artigo.

É no mínimo curioso, portanto, que os próprios gurus das empresas de tecnologia reconheçam a importância dos contatos sociais, tendo em vista que os negócios liderados por eles parecem trabalhar exatamente na direção contrária. É curioso também o fato de as mesmas pessoas que desperdiçam horas e horas nas redes sociais optarem pela compra no comércio eletrônico por causa de uma suposta falta de tempo para ir ao supermercado ou ao restaurante mais próximo, conforme apontado por Calliari. Mundo estranho este em que estamos vivendo…

Leia mais: Abrir ruas para as pessoas estimula o comércio e ativa as fachadas

Como mitigar o impacto negativo do comércio eletrônico

Seja como for, independentemente de preferências ou estilos de vida, parece inegável que as transformações em curso podem ter impacto nas cidades e demandar, portanto, ações do poder público, desde medidas que combatam a concorrência desleal do comércio eletrônico, como no caso dos livros, até ações que estimulem a vitalidade urbana com novos usos e ocupações para os vazios deixados pelo fechamento de muitos estabelecimentos comerciais.

Tendo em vista o grande número de acidentes envolvendo motocicletas, também parecem necessárias uma revisão e maior fiscalização das regras e incentivos que as empresas de entrega dão para motoristas, de forma a desestimular comportamentos agressivos. O mesmo vale para a questão do barulho excessivo causado por esse meio de transporte.

Paralisação de entregadores de aplicativo por melhores condições de trabalho (2025). Foto: Paulo Pinto / Agência Brasil

Além disso, políticas públicas que repensem o uso das vias, incentivando tanto as bicicletas (que podem ser uma alternativa mais segura às entregas de moto) quanto a caminhabilidade (com fachadas ativas e calçadas melhores, por exemplo) são fundamentais para manter a atratividade das lojas de rua e, consequentemente, a vitalidade urbana.

No mais, ainda que decisões individuais isoladas não sejam capazes de resolver os problemas relacionados a externalidades, hoje em dia, quando tanto se fala em responsabilidade socioambiental, me parece importante que também os consumidores (ao menos os apaixonados por cidades, como os leitores do Caos Planejado) levem em conta as implicações de suas decisões para a cidade, sejam elas positivas ou negativas.

Eu, por exemplo, apaixonado que sou por livros e livrarias de rua – e mesmo sendo economista, vejam só –, prefiro pagar mais caro por livros em livrarias de rua a comprar nas grandes plataformas de comércio eletrônico. Pode parecer pouco, é verdade, mas ainda é a melhor forma de cada um de nós contribuir para a manutenção desses maravilhosos espaços de convivência, permanência e encontros, que trazem vitalidade e ajudam a tornar as cidades lugares muito mais agradáveis e interessantes.

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