Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Um levantamento sobre a Paulista Aberta — projeto que permite a ocupação da avenida Paulista pelas pessoas aos domingos e feriados — revelou como a ressignificação das ruas com foco nos deslocamentos a pé levam a mudanças no comércio e no uso das fachadas.
30 de julho de 2020Pessoas na calçada em filas para comprar um sorvete e depois continuar caminhando, artesãos apoiando suas artes em muretas de prédios comerciais fechados, assim é como são ocupadas as fachadas e calçadas na avenida Paulista aos domingos, quando a via está aberta para as pessoas — pelo programa intitulado Paulista Aberta —, de forma a chamar atenção e atender as demandas do enorme contingente de pessoas que frequenta a avenida como destino de lazer.
Não à toa, o programa foi uma das primeiras iniciativas a ser “postergada” (sem prazo) com a chegada da pandemia do Covid-19 em São Paulo. Afinal, o espaço se consolidou na agenda da cidade como um dos programas preferidos, aglomerando muitas pessoas nos seus 2,7 km de extensão.
Mas, antes disso, foi possível constatar como os últimos 5 anos de tal política pública moldaram as fachadas a avenida no nível da rua — acessada pelos pedestres — e estimulam novos usos aos domingos. O levantamento, realizado pelo Paulista Aberta LAB — Laboratório de análises e experimentações a partir do espaço e dinâmicas da Paulista Aberta — em janeiro de 2020, descobriu duas esferas de mudança: a primeira, estrutural, na qual observou-se alterações de uso, atividade, materiais e tamanho das fachadas; a segunda, efêmera, estabelecidas por dinâmicas de ocupação e ressignificação das fachadas durante a abertura da avenida aos domingos.
Comer na rua se tornou tendência. Em média, a cada 200 metros é possível encontrar um estabelecimento que tenha suas vendas voltadas diretamente para o espaço das calçadas, mediadas por um balcão. Dessa forma, os estabelecimentos não precisam ter espaço para que as pessoas se sentem, acessem, e nem mesmo ter banheiros e outras facilidades, pois a clientela faz todo o processo de escolha, compra e consumo na rua — a rua é o destino.
Ressignificar “espaços vazios” com exposição de artesanato cria vitalidade à rua: metade das fachadas inativas aos domingos — ou seja, frentes de lote que são acessos a estacionamentos, prédios comerciais fechados e muros — são apropriadas por vendedores e comerciantes ambulantes como “vitrines” de produtos. Essas constatações fazem parte dos achados do estudo sobre fachadas do Paulista Aberta LAB.
Tais levantamentos podem ajudar urbanistas, comerciantes, gestores e gestoras públicas e a cidadania a criar melhores políticas e usos das ruas da cidade, considerando esse espaço público como um ativo valioso para melhorar a qualidade de vida, como foi a transformação da Times Square.
Um marco na transformação de espaços para veículos em espaço de permanência para as pessoas foi a simbólica e icônica Times Square, em Nova York. A partir de 2007, o Departamento de Transportes da cidade de Nova York (NYC DOT), sob o comando de Janette Sadik-Khan, começou a promover a implantação de uma série de novas praças públicas em ruas e avenidas, transformando o asfalto em espaço de permanência por meio de intervenções simples e rápidas. Espaços antes ociosos, tornaram-se praças com uso e novas atividades por meio da reorganização do tráfego viário, redistribuição do espaço e utilizando materiais básicos como tinta, vasos de plantas, cadeiras e mesas dobráveis.
Tais ações, foram parte da estratégia da cidade de redução em 30% de gases de efeito estufa e de preparação da cidade para novos migrantes até 2030, do plano chamado PlanNYC. O plano traçou estratégias para diversas camadas de desenvolvimento da cidade, dentro da frente sobre parques e espaços públicos criou-se o projeto de ativação do espaço das ruas (streetscape) de forma que todos os habitantes da cidade tivessem acesso a espaços públicos a menos de 10 minutos a pé de suas residências.
O sucesso das primeiras experiências levou o departamento a dar um passo além e propor repensar um dos espaços mais emblemáticos da cidade: a Times Square. Localizada em um dos “nós” viários mais congestionados e conflituosos de Nova York, o espaço está no encontro da Avenidas Broadway com a Sétima (Seventh Avenue). A solução dada pelo departamento para os conflitos entre o tráfego intenso de veículos e pedestres foi priorizar as pessoas e ativar aquele espaço, limitando a circulação de carros.
A nova Times Square começou a ser implantada em 2009, ainda com caráter temporário, nos moldes das experiências anteriores: o asfalto foi pintado de vermelho sinalizando o novo uso e cadeiras de praia e vasos de plantas foram posicionadas no espaço. Tal ação demandou muito pouco do ponto de vista de investimento e estrutura, mas o suficiente para que as pessoas ocupassem espontaneamente, evidenciando a demanda de uso do espaço para permanência. Em dezembro de 2013 foi inaugurada a versão definitiva da Times Square para as pessoas, com novo mobiliário urbano e o mesmo desenho de piso em nível com a calçada em toda a área da nova praça, se consolidando como um dos espaços públicos com mais pessoas na cidade.
Dessa forma, o caso da transformação da Times Square se tornou um modelo global, por um lado porque foi realizada em um lugar icônico da cidade, e por outro porque evidenciou muitos benefícios práticos e simbólicos para criar uma cidade com melhor qualidade de vida. Justamente por entender a importância de identificar os impactos positivos de sua implantação também foi uma transformação muito estudada e monitorada. Um exemplo foram os levantamentos sobre a praça, que demonstraram que depois da pedestrianização houve um aumento de 50% da receita dos comerciantes locais. Além disso, outro ponto a destacar, é o fato da transformação não ter sido uma ação isolada, e fazer parte de um programa chamado NYC Plaza Program que deu continuidade de diversas transformações de espaço viário em praças de forma pulverizada por toda a cidade e com apoio a ONGs e associações de bairro para fazê-lo até hoje.
A experiência de transformar os espaços de circulação de veículos temporariamente em espaço para as pessoas, no entanto, é bastante anterior aos ensaios iniciados em Nova York a partir de 2007. Na América Latina, antes da cidade norte americana transformar trechos de asfalto em praças, já se explorava um modelo de transformação temporária — por algumas horas por semanas — de avenidas inteiras em espaços para lazer.
O formato do programa paulistano “Ruas Abertas”, que ganhou notoriedade com a Paulista Aberta, não é novidade. Abertura de ruas de forma temporária para as pessoas têm início em manifestações culturais e religiosas, movimentos espontâneos das práticas sociais e de lazer nos espaços livres públicos da cidade. Da perspectiva das políticas públicas de abertura de ruas, São Paulo foi bastante pioneira ao implantar o programa “Ruas de Lazer” em meados dos anos 1970, e vigente até hoje. O programa possibilita que os próprios moradores solicitem a abertura de suas ruas (desde que ela cumpra alguns requisitos, como não ter comércio e ser de acesso local) para o uso de lazer aos domingos.
Desde a perspectiva de mobilidade, da proposição de uso de grandes avenidas e de enfrentar o problema de distribuição do espaço viário, Bogotá foi pioneira. Nos anos 1970, Bogotá começou o programa de Ciclovías Recreativas, com intuito de promover a mobilidade em bicicleta para melhorar a saúde e oportunidades de práticas esportivas na cidade — atualmente o programa oferece mais de 120 km de rotas temporárias. Passados 50 anos, a iniciativa está presente em diversas cidades das Américas Latina e do Norte e em Bogotá impulsionou a criação de um calçadão permanente em uma das ruas na região central com maior movimento a pé (a Carrera Séptima).
Na cidade do México, o projeto denominado “Muévete en bici” promovido pela Secretaria do Meio Ambiente existe desde 2007 e conta com aproximadamente com 55 km de vias dedicadas ao lazer todos os domingos. No Rio de Janeiro, a abertura das avenidas que margeiam as praias acontece desde 2010 por meio de uma lei de áreas de lazer, coordenada pela Secretaria Municipal de Transportes.
Em tempos de pandemia, todos estes programas foram suspendidos temporariamente, assim como a Paulista Aberta, mas mais uma vez Bogotá se mostrou pioneira na resignificação e distribuição do espaço viário. Logo no início do isolamento social e quarentena na cidade pela crise do Covid-19, a prefeitura criou uma grande rede de ciclovias temporárias para estimular que trabalhadores e trabalhadoras dos serviços essenciais chegassem ao trabalho de bicicleta. Desta vez, é claro, a iniciativa tem outro caráter, com intuito de que as ciclovias sejam utilizadas apenas em caso de necessidade, com estímulo à mobilidade ativa e limpa. Ainda, foram doadas 400 bicicletas elétricas para pessoas que trabalham na rede de saúde, para aumentar sua segurança no ir e vir do trabalho e atividades.
Diferentemente dos exemplos destacados nas outras cidades, a abertura da Paulista gerou o uso do espaço de forma mais “desacelerada”, ou seja, se tornou destino para sentar, ficar e não apenas se deslocar. O programa, chamado Paulista Aberta, abre a avenida para as pessoas das 10h às 18h todos os domingos e feriados por meio, apenas, de operação da companhia de engenharia de trânsito da cidade (CET). Isso quer dizer que, não conta com nenhuma política e organização que planeje os usos e a programação da Paulista Aberta, que se dá de forma espontânea a partir de atores privados.
Desde sua criação, em 2015, por mobilização social, as pessoas deitam para tomar sol, sentam para assistir a shows de músicos e artistas, mesmo sem nenhuma mudança estrutural, ou seja, sem bancos ou outros mobiliários que poderiam facilitar a permanência. Desta forma, é possível identificar características do programa de Bogotá combinadas ao de Nova York, já que a Paulista Aberta promove a abertura temporária da avenida Paulista para as pessoas e com isso, atrai comportamentos equivalentes aos de grandes parques e/ou praças, além de estar em um dos lugares mais icônicos da cidade (considerado o principal destino turístico).
O maior tempo de permanência de pessoas na avenida aos domingos — 64% dos frequentadores afirmam ficar ao menos 2 horas (Avaliação de Impacto da Paulista Aberta, 2018) — gerou impactos nas formas de ocupação das fachadas dos prédios localizados na Avenida Paulista, ampliando sua ativação, além de influenciar nos tipos de comércio e no formato de vendas que ocorrem aos domingos. O estudo mencionado justamente procurou identificar tais impactos e rastrear as forma de ativação das fachadas no nível da rua.
O conceito de fachadas ativas se tornou amplamente usado pelos urbanistas para discutir e propor melhorias na vitalidade das ruas, estimular o deslocamento a pé e a economia. Em São Paulo, o Plano Diretor Estratégico (PDE 2014) vigente, por exemplo, oferece incentivos como a diminuição do valor do IPTU para novos prédios que implantem de térreos comerciais.
Embora o termo seja recente, a discussão sobre o seus efeitos na segurança e vitalidade das cidades não é nova. Nos anos 1960, a jornalista norte americana Jane Jacobs criticou fortemente o processo de transformação urbana que a cidade de Nova York estava sofrendo, no qual as ruas passavam a ser, cada vez mais, espaço prioritário do transporte motorizado e os bairros setorizados e monofuncionais, acabando com o uso misto e a diversidade de comércio e atividades disponíveis a distâncias caminháveis. A autora, referindo-se a sua própria rua, apontou as diversas vantagens de viver em um local com diversidade de usos. Para ela, os moradores, grupo a qual pertencia, dispunham de “mais facilidades, animação, variedade e opções” do que “merecem”, assim como as pessoas que trabalham na vizinhança. E que isso tudo é mantido por todos “ juntos, cooperando inconscientemente no campo econômico.” Ou seja, havia mais comércio, fachadas ativas e “olhos nas ruas” garantindo segurança e qualidade tanto para quem vivia como para quem frequentava, pois era um local de uso misto — trabalho, residência, comércio e serviços.
O famoso urbanista dinamarquês Jan Gehl também valoriza as fachadas ativas como indutoras de cidades caminháveis. Gehl defende a adoção de fachadas menores como forma de intensificar as possibilidades de interação entre ruas e fachadas e diminuir as distâncias a serem percorridas pelos pedestres para acessar mais serviços, equipamentos e comércio.
O livro “A cidade no nível dos olhos”, que compila vários exemplos e discussões neste tema, ressalta que as fachadas, apesar de serem parte do espaço privado, compõe a esfera pública e por isso impactam na qualidade da rua. Entre os exemplos apontados, os autores destacam ruas que devido à diversidade de fachadas ativas têm melhores resultados de interação social, estímulo à economia local e segurança pública. Jacobs entende que para que se criem ruas e cidades com uso misto, fachadas ativas e diversidade o poder público deve colocar as “peças” corretas no “xadrez” da cidade, alocando de forma estratégica equipamentos públicos e políticas públicas.
Neste sentido, a Paulista Aberta atua como uma importante peça desse “xadrez” que não precisa de um lote privado para se tornar um equipamento público, e que a partir da disponibilização da rua para a cidadania possibilitou diversas transformações urbanas positivas naquele espaço. Para além de aumentar a disponibilidade de espaços livres públicos para uso de lazer aos finais de semana, a abertura de ruas e avenidas pode contribuir para as discussões da sustentabilidade, saúde pública no espaço urbano e, como apontou o estudo aqui apresentado, em alternativas de diversidade econômica e usos das fachadas nos edifícios privados.
O levantamento, realizado em 26 de janeiro de 2020 pelo SampaPé!, com foco nas fachadas dos edifícios da Avenida Paulista, permitiu perceber transformações significativas neste aspecto. Em comparação com 2015, identificou-se o aumento de 42% de estabelecimentos de alimentação nos térreos dos edifícios localizados na Avenida Paulista e também se verificou a criação de novas formas de interação das fachada com as ruas como balcões que atendem direto nas calçadas, mesas nas calçadas e fachadas envidraçadas. Vale destacar que a situação da pandemia da COVID-19 levou a uma “balconização” forçada dos estabelecimentos de alimentação, modificando fachadas e podendo influenciar a alterações urbanas futuras.
Desde a perspectiva focada no uso aos domingos percebeu-se a ativação das fachadas de forma temporária, sendo uma oportunidade para a flexibilidade de usos nas cidades e de oportunidades para microempreendedores. O comércio ambulante, presente em menor escala nos demais dias da semana, ganha ainda mais espaço e clientes aos domingos. Dessa forma, os acessos a garagens e edifícios comerciais fechados, muros e gradis ociosos se tornaram suportes possíveis para artistas e artesãos que divulgam seus trabalhos para o grande público a passeio durante a Paulista Aberta.
Esse estudo demonstrou a relação direta entre as alterações no comércio e nas fachadas com programas de ressignificação das ruas como espaço de encontro e permanência, assim como, os diversos benefícios à coletividade da cidade, em 5 anos. A partir disso há muitos cenários possíveis.
Todo programa de caráter temporário deve ser pensado em fases de transformação e evolução a médio e longo prazo, como foi o caso da Times Square. Mas, mais do que nunca, o futuro das dinâmicas de encontro nos espaços públicos estão incertos, assim como mostrou-se uma necessidade por espaços híbridos (que atendam a mais de um uso) nas cidades, devido a pandemia. Por um lado, não se pode perder as duras conquistas dos últimos anos nas cidades brasileiras, como a abertura de avenidas para as pessoas, o carnaval de rua, entre outras políticas. Por outro, não sabemos como o encontro de pessoas vai acontecer no futuro próximo. O fato é que vivemos em cidades e precisamos de espaços de qualidade para estar, conviver, reafirmar a nossa coletividade e enfrentar os problemas de forma coletiva — ainda mais evidenciado pelo momento atual. O futuro é caminhável e coletivo.
Artigo publicado originalmente no blog do SampaPé em 9 de junho de 2020.
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