Um modelo de negócio para a cidade
Os governos municipais deveriam atuar como uma empresa que gerencia uma plataforma.
Como uma das séries de maior sucesso da história pode estar relacionada com o desenvolvimento urbano e as dinâmicas do mercado imobiliário de Nova York nas últimas décadas?
26 de maio de 2025“Friends” é uma das sitcoms mais populares da televisão mundial. A série de comédia norte-americana, exibida entre 1994 e 2004, acompanha o cotidiano de seis jovens adultos que vivem em Nova York e compartilham os desafios e alegrias da carreira e dos relacionamentos. “Friends” não apenas se tornou um ícone da cultura pop, como refletiu e até influenciou novos comportamentos que estão diretamente relacionados com o desenvolvimento urbano recente de Nova York.
Entre os anos 1970 e o início dos anos 1990, a cidade de Nova York foi marcada por um período de alta criminalidade. A recessão econômica global em 1975 se refletiu em uma crise fiscal e institucional na cidade. Entre 1975 e 1980, com vários cortes de gastos, a força policial foi reduzida em 34% enquanto o crime aumentou 40%. Prostituição, tráfico de drogas e assaltos ocupavam as ruas da cidade. A fuga para os subúrbios, historicamente desejada pelos norte-americanos, era reforçada e, ao mesmo tempo, também agravava o abandono das áreas centrais. O declínio de Nova York era refletido em produções como “Taxi Driver” (1976), “Fuga de Nova York” (1981) e “Duro de Matar” (1988).
Leia mais: A evolução de Nova York
Como consequência, os preços dos imóveis também eram bem menores que os atuais. Alguns momentos entre 1974 e 1996 registraram uma queda geral de preços, também influenciada por uma perda de mais de 800.000 residentes na cidade. Após o período, porém, a tendência se reverteu e o aumento dos preços dos imóveis foi exponencial e duradouro, acompanhado de um crescimento populacional.
A Nova York que conhecemos hoje em bairros como Village, Soho e Brooklyn é bem diferente da realidade de antes dos anos 1990, e seus imóveis concentram milionários e lojas de grife. Coincidentemente (ou não tanto), o início dessa gentrificação foi, justamente, o tempo em que a série “Friends” surgiu. Este artigo propõe uma reflexão cultural a respeito da vida urbana: os fatores que levam à gentrificação são muitos e complexos, mas a série reflete um momento importante na história da cidade.
Em 1994, ano de início da série, Rudy Giuliani virou prefeito de Nova York com a promessa de transformar a segurança pública da cidade. Entre 1993 e 1998, houve uma queda de 69,3% nos homicídios, de 54,9% nos roubos e de 66,3% nas vítimas de armas de fogo, segundo a prefeitura. Com políticas de aumento da força policial e uma abordagem mais rigorosa contra crimes menores, a imagem de Nova York começou a ser recuperada.
Enquanto isso, “Friends” retratava de forma leve e bem-humorada um estilo de vida que, à época, não era amplamente almejado no imaginário norte-americano. A série mostra amigos de 20-30 anos dividindo apartamentos espaçosos e bem localizados no Village, com algumas cenas dos personagens caminhando pelas ruas de Nova York, e o principal ponto de encontro do grupo é um café da cidade. Porém, em um contexto de declínio dos centros urbanos e de valorização do carro individual e da vida nos subúrbios, morar em uma grande cidade não era percebido pela população como algo positivo ou desejável. O sucesso de “Friends” acompanhou essa virada de chave, seja surfando uma nova onda cultural ou até mesmo contribuindo para a causalidade.
Durante a exibição da série, o cotidiano apresentado por ela passou a ser objeto de desejo de uma quantidade cada vez maior de pessoas, especialmente jovens adultos. Ir trabalhar a pé ou de metrô, parar para comprar um café, encontrar os amigos em algum bar local no fim do dia, passear no parque no fim de semana… “Friends” foi uma das pioneiras, mas a vida em Nova York começou a ser retratada de forma semelhante em várias outras produções, como “Sex and the City” (1998), “How I Met Your Mother” (2005), “Como Perder um Homem em 10 Dias” (2003) e “De Repente 30” (2004). Houve, nesse período, um enorme crescimento na demanda por moradia no centro da cidade por uma geração que cresceu com um olhar aspiracional àqueles personagens.
Essa mudança de comportamento, aliada a uma estagnação na construção de novas unidades em Nova York, ou seja, um aumento na demanda sem um acompanhamento correspondente da oferta, gerou um processo de gentrificação em vários bairros, que dura até hoje. Desde 1991, o número de unidades com aluguel acima de U$2.300 por mês quintuplicou (já considerando o ajuste pela inflação). Enquanto isso, apartamentos com aluguéis de até U$1.500 estão se tornando cada vez mais raros.
Com a gentrificação, a vida de Rachel, Ross, Monica, Chandler, Joey e Phoebe dificilmente poderia ser reproduzida hoje. Ao menos não em Nova York, não no Village e não com os empregos que os personagens tinham. Um estudo da Clever Real Estate estimou os preços atuais de várias moradias de filmes e séries, considerando também o tipo de emprego de cada personagem e a renda provável. A conclusão foi que seria impossível Rachel e Monica (garçonete e chef de cozinha, respectivamente) custearem o apartamento que elas dividiam em “Friends”, que hoje teria um aluguel de aproximadamente U$7.500 mensais.
Leia mais: As consequências da estabilização de aluguéis em Nova York
Por um lado, a série trouxe um olhar positivo — e necessário na época — sobre a vida urbana. A cidade densa e verticalizada, antes sinônimo de caos, insegurança e estresse, passou a ser vista por muitos como um local vibrante e cheio de oportunidades. Na época, o custo de moradia na cidade também era compensado por salários proporcionalmente mais altos, que servia como um ímã a jovens profissionais. No entanto, como descrito em “Abundance”, livro recém publicado por Ezra Klein e Derek Thomson, Nova York hoje apresenta um desafio habitacional que já não compensa os salários que paga: hoje, é preciso pagar um prêmio para morar na Big Apple, como se fosse um produto de luxo.
Esse é um caso emblemático de como as referências culturais se relacionam com as diferentes transformações pelas quais as cidades passam. “Friends” acabou se tornando um importante retrato (e talvez até uma influência) da Nova York de seu tempo. A série representa um novo olhar sobre a cidade, um novo estilo de vida a ser conquistado e, consequentemente, uma nova fase para o desenvolvimento urbano.
Para entender processos de gentrificação como o de Nova York, é preciso aprender como as cidades realmente funcionam. O curso “Do Planejamento ao Caos” te ajuda a olhar para os problemas urbanos de uma forma diferente. Confira!
Somos um projeto sem fins lucrativos com o objetivo de trazer o debate qualificado sobre urbanismo e cidades para um público abrangente. Assim, acreditamos que todo conteúdo que produzimos deve ser gratuito e acessível para todos.
Em um momento de crise para publicações que priorizam a qualidade da informação, contamos com a sua ajuda para continuar produzindo conteúdos independentes, livres de vieses políticos ou interesses comerciais.
Gosta do nosso trabalho? Seja um apoiador do Caos Planejado e nos ajude a levar este debate a um número ainda maior de pessoas e a promover cidades mais acessíveis, humanas, diversas e dinâmicas.
Quero apoiarOs governos municipais deveriam atuar como uma empresa que gerencia uma plataforma.
Confira nossa conversa com Carlos Leite e Fabiana Tock sobre as iniciativas de urbanismo social no Brasil e no mundo.
No livro “Cidade Suave”, o urbanista David Sim aponta quais são as características de cidades que promovem conforto e acolhimento no cotidiano de seus habitantes.
O Jardins, em São Paulo, se tornou símbolo de ineficiência urbana: maior acessibilidade a empregos da cidade, escassez de moradias, exportação de congestionamentos e bilhões em valor que poderiam ser capturados e reinvestidos — até mesmo em uma nova linha de metrô.
Hong Kong enfrenta hoje grandes desafios de acessibilidade habitacional, que são um resultado da forma como suas regulações foram estabelecidas.
Em Dakar, há pouca regulação sobre os lotes privados, e os espaços públicos também não recebem a devida atenção. Quais são as consequências dessa ausência do poder público na prática?
Confira nossa conversa com Ruan Juliet, morador da Rocinha e comunicador, sobre os desafios da vida na favela.
Todo projeto de rede cicloviária deve ser conectado, direto, seguro, confortável e atrativo.
Cidades com áreas centrais mais adensadas permitem mais qualidade de vida, mais eficiência e menos impacto ambiental. Mas o crescimento das cidades brasileiras tem caminhado na direção oposta.
COMENTÁRIOS
Muito legal essa matéria e este site. Ainda bem q Google o indicou para mim. Sou fã de Friends e visitei NY em 1996. Uma matéria bem escrita e fundamentada, difícil de ver na web atualmente. Vou seguir o site. Abraço.
Que legal o seu feedback, Denise! Obrigado! Espero que goste dos demais conteúdos da nossa plataforma.
Grande abraço,
Anthony