A “função social da cidade” no ENEM: um caso de desinformação urbanística
Imagem: Rillke/Flickr.

A “função social da cidade” no ENEM: um caso de desinformação urbanística

Victor Carvalho Pinto, Consultor Legislativo do Senado Federal na área de Desenvolvimento Urbano, comenta sobre a questão do ENEM que tratou sobre urbanismo.

28 de novembro de 2016

A prova do Exame Nacional do Ensino Médio de 2016 contou com uma questão sobre política urbana. Poderia ter sido uma oportunidade de sensibilização da juventude para o urbanismo, tema pouco conhecido, apesar de fundamental para a qualidade de vida de milhões de pessoas. O que se verificou, no entanto, foi uma questão mal formulada, cujo gabarito indica como correta uma frase que em nada contribui para a compreensão do fenômeno urbano.

Passemos à mencionada questão, que recebeu a numeração “15” na prova branca:

enem

Deve-se observar que a questão se encontra na prova relativa à área do conhecimento de “Ciências Humanas e suas Tecnologias” e não “Linguagem, Códigos e suas Tecnologias”. O que se pretende com essa questão não é, portanto, avaliar o candidato quanto à interpretação do texto, mas quanto ao conhecimento da realidade brasileira e às políticas públicas adequadas a esse contexto[i].

A Constituição e o Estatuto da Cidade

A expressão “funções sociais da cidade” consta do art. 182 da Constituição Federal, ao lado da expressão “função social da propriedade”:

Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes.

§ 2º A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.

A função social da propriedade é um conceito bem estabelecido no meio jurídico. Basicamente, significa que os bens privados devem ser utilizados não segundo a vontade de seus detentores, mas segundo um plano ditado pelo Estado. No caso da Constituição brasileira, tal conceito é atenuado pela consagração do direito de propriedade como direito fundamental e da livre iniciativa como princípio da ordem econômica. De todo modo, no âmbito da política urbana, a Constituição deixa claro que os imóveis urbanos devem respeitar o disposto no plano diretor, que é um documento de urbanismo aprovado pela Câmara Municipal.

A expressão “funções sociais da cidade”, por sua vez, não era empregada anteriormente à Constituição, seja no campo do Direito, seja no do Urbanismo. Por esse motivo, é possível cogitar de mais de uma interpretação, mediante associação a conceitos correlatos:

A. as funções urbanas de habitação, trabalho, lazer e circulação, tal como propostas pelo urbanista Le Coubusier na Carta de Atenas (1933), a serem ordenadas com vistas aos objetivos do urbanismo: proteção da paisagem, do meio ambiente e do patrimônio cultural, resiliência, fluidez do trânsito, salubridade, conforto e segurança das edificações, redução dos custos de urbanização e melhoria da qualidade de vida em geral;

B. a posição da cidade na rede urbana e na economia regional e nacional: metrópole, capital regional, centro sub-regional, centro de zona e centro local (Estudo Regiões de Influência das Cidades – REGIC, do IBGE: 2007); vocação industrial, portuária, turística, administrativa, etc.

C. a provisão de bens e serviços públicos para todos, independentemente o nível de renda, contribuindo, assim, para a erradicação da miséria e a redução das desigualdades.

No âmbito legal, o conceito foi detalhado pela Lei nº 10.257/01, conhecida como Estatuto da Cidade, por meio de diretrizes gerais de política urbana. As diretrizes encontram-se distribuídas entre 18 incisos do art. 2º, que abarcam praticamente todo o universo do urbanismo. Tal condição, somada ao fato de que a expressão é sempre empregada no plural, permite que se conclua ter o legislador optado pela interpretação “A” acima: a cidade não tem uma única, mas várias, “funções sociais”, a serem “plenamente desenvolvidas” segundo as técnicas do urbanismo.

Levando-se em consideração a Constituição Brasileira e o Estatuto da Cidade, únicas fontes autorizadas de interpretação da expressão “funções sociais da cidade”, nenhuma das respostas à questão pode ser claramente apontada como errada:

> A “qualificação de serviços públicos em bairros periféricos” (resposta “A”) é compatível com as diretrizes de “direito aos serviços públicos” e de “oferta de serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população” (art. 2º, I e II).

> A “implantação de centros comerciais em eixos rodoviários” (resposta “B”) é compatível com a diretriz de “controle do uso do solo, de forma a evitar a instalação de polos geradores de tráfego sem a infraestrutura correspondente” (art. 2º, VI, “d”). Trata-se de evitar, por exemplo, que o fluxo de consumidores em shopping centers provoque o congestionamento de vias locais.

> A proibição de construções residenciais em regiões íngremes (resposta “C”) é compatível com a diretriz de “controle do uso do solo, de forma a evitar a exposição da população a riscos de desastres” (art. 2º, VI, “h”). Trata-se de uma medida preventiva de defesa civil e proteção de recursos hídricos, também prevista nas leis de parcelamento do solo (6.766/79), regularização fundiária (11.977/09) e proteção da vegetação nativa (12.651/12). Tais áreas são consideradas de risco, por estarem sujeitas a deslizamentos e desmoronamentos.

> A “disseminação de equipamentos culturais em locais turísticos” (resposta “D”) é compatível com as diretrizes de “direito ao lazer” e de “desenvolvimento socioeconômico do Município” (art. 2º, I e VII). A construção do Museu do Amanhã no Rio de Janeiro é um exemplo desse tipo de política, que não apenas favorece a população, mas também promove a economia local, pela atração de turistas.

> A “desregulamentação do setor imobiliário em áreas favelizadas” (resposta “E”) é compatível com as diretrizes de “regularização fundiária” e de “simplificação da legislação” (art. 2º, XIV e XV). Diante da impossibilidade de remoção ou reconstrução integral dos assentamentos irregulares, altera-se a legislação urbanística para viabilizar, tanto quanto possível, a sua regularização e urbanização.

Qualquer das medidas citadas pode vir a ser considerada uma política urbana adequada, tendo em vista que nenhuma delas é manifestamente contrária às diretrizes de política urbana e que esta só pode ser definida no contexto de cada cidade.

O paradigma da reforma urbana

Considerando-se o texto de apoio, é possível supor que o elaborador da questão tenha adotado uma versão simplista da vertente teórica e política da chamada “reforma urbana”, segundo a qual a cidade teria uma única “função social”, qual seja, a de reduzir as desigualdades sociais mediante a oferta de bens de consumo coletivo a toda a população.

Essa abordagem, de viés marxista, vê no “modo de produção capitalista” a causa do que denomina “espoliação urbana”, que seria uma forma de exploração dos habitantes da cidade pelo capital imobiliário, análoga à dos trabalhadores pela “burguesia”, detentora dos “meios de produção”. A espoliação decorreria de uma ilegítima apropriação da valorização imobiliária gerada por investimentos públicos e seria a causa da segregação espacial da população de baixa renda, que não teria poder aquisitivo suficiente para adquirir um imóvel regular no mercado.

A abordagem da reforma urbana é particularmente crítica da regulação urbanística, conforme evidenciado no próprio texto de apoio à questão. O zoneamento urbano, veiculado por normas de parcelamento, uso e ocupação do solo, assim como os códigos de obra, voltados para a disciplina da estrutura interna das edificações, são vistos como instrumentos de segregação social, destinados a promover a valorização dos imóveis, expulsar os pobres das áreas nobres da cidade e criminalizar os assentamentos irregulares em que vivem..

Do ponto de vista normativo, o paradigma da reforma urbana defende a construção de moradias populares nas áreas ociosas da cidade e a urbanização dos assentamentos informais, mediante sua inclusão no zoneamento urbano sob a forma de zonas especiais de interesse social (ZEIS), nas quais deixariam de ser aplicadas as normas estabelecidas para a cidade em geral, admitindo-se o assentamento existente como legítimo, ainda que formado à margem da lei.

Embora o paradigma da reforma urbana seja amplamente disseminado nos meios acadêmico e profissional, ele não é o único existente. Sua crítica aos mercados imobiliário e financeiro, assim como a defesa incondicional da ocupação irregular do solo, contrariam conceitos elementares de economia, finanças, urbanismo e gestão ambiental. Os defensores da reforma urbana são críticos, por exemplo, das operações urbanas consorciadas, que visam revitalizar áreas degradadas, como a Zona Portuária do Rio de Janeiro, com recursos privados. Combatem, ainda, qualquer tipo de remoção de assentamentos irregulares, mesmo quando estes colocam em risco os mananciais de abastecimento de água da cidade ou geram erosão capaz de assorear os cursos d’água e provocar alagamentos. Trata-se, portanto, de uma abordagem de política urbana “radical” e, no mínimo, polêmica, que não deveria ser apresentada no ENEM como verdade absoluta.

De todo modo, ainda que analisada a questão sob a perspectiva restrita da reforma urbana três respostas à questão podem ser consideradas corretas:

> a “qualificação de serviços públicos em bairros periféricos” (resposta “A”) é aceitável admitindo-se o pressuposto de que esses bairros seriam carentes de infraestrutura e de que seus moradores seriam pessoas pobres, “expulsas” das áreas nobres da cidade;

> a “proibição de construções residenciais em regiões íngremes” (resposta “C”) é pertinente, tendo em vista que os moradores de baixa renda são o segmento mais vulnerável aos desastres naturais;

> a “desregulamentação do setor imobiliário em áreas favelizadas” (resposta “E”), é compatível com a proposta de delimitação dessas áreas como ZEIS, às quais não se aplica a legislação urbanística ordinária.


Embora o paradigma da reforma urbana seja amplamente disseminado nos meios acadêmico e profissional, ele não é o único existente.


O gabarito oficial

Como o gabarito oficial não vem acompanhado de qualquer comentário à questão ou defesa da resposta oficial, não temos como saber quais foram os pressupostos que presidiram sua elaboração. Informa-se apenas que a resposta correta é a “A”.

Analisada com algum rigor, no entanto, não se pode deixar de observar que essa alternativa apresenta uma grave falha. A caracterização dos “bairros periféricos” como carentes de infraestrutura e ocupados pela população de baixa renda pode ter sido uma razoável aproximação da realidade até a década de 1990. Atualmente, muitos bairros periféricos já tiveram seus serviços públicos “qualificados” e a população neles residente é de média renda. Além disso, disseminou-se pelo País a urbanização por meio de “condomínios fechados”, que são loteamentos de média e alta renda, dotados de ampla infraestrutura e situados a grande distância das áreas centrais, como os empreendimentos Alphaville existentes na Grande São Paulo. Ao mesmo tempo, grande parte da população pobre vive em áreas irregulares e cortiços situados em regiões centrais, a exemplo das favelas do Rio de Janeiro e da Cracolândia em São Paulo.

Para se admitir essa resposta como verdadeira, seria preciso adotar uma interpretação do termo “periférico” desvinculada do território, ou seja, “antropológica”. Pertenceriam à “periferia”, por definição, apenas e tão somente as regiões da cidade carentes de serviços públicos, mesmo que localizadas em áreas centrais. Tendo em vista que o assunto em questão (política urbana) tem por objeto, precisamente, o território, parece despropositado supor que um termo de conotação originalmente espacial (“periférico”) devesse ser interpretado em sentido antropológico.

Para acertar o gabarito, o candidato teria, portanto, que (i) responder à questão como interpretação de texto e não como conhecimento da realidade; (ii) compreender a expressão “função social da cidade” segundo o paradigma da reforma urbana, excluindo todos os demais; (iii) interpretá-lo de maneira estreita, de modo a excluir a preservação de áreas de risco e a crítica à aplicação da legislação urbanística em assentamentos irregulares; (iv) ignorar a menção explícita no texto de apoio à legislação urbanística; e (v) desconhecer os atuais padrões da urbanização brasileira ou (v) interpretar a expressão “bairro periférico” em sentido antropológico e não geográfico.


A questão em comento, além de mal formulada, difundirá entre os estudantes uma visão enviesada e defasada da urbanização brasileira e das políticas públicas voltadas para o seu controle.


O ENEM tem por finalidade selecionar candidatos para o ensino superior e apresenta extraordinário poder indutor sobre o ensino médio. A questão em comento, além de mal formulada, difundirá entre os estudantes uma visão enviesada e defasada da urbanização brasileira e das políticas públicas voltadas para o seu controle.

Corre-se o sério risco de que se passe a ensinar como verdade absoluta que o único problema das cidades é a segregação, gerada pela “produção capitalista da cidade”, entre ricos, residentes no centro, e pobres, residentes na periferia, carente de serviços públicos. O que se espera do ensino médio, pelo contrário, especialmente em matéria de políticas públicas, é o fomento ao debate, mediante a exposição do aluno às diversas perspectivas de análise da realidade. No âmbito urbano, isso implica em reconhecer os diversos objetivos perseguidos pelo urbanismo, que não se resume à redução das desigualdades sociais, por mais importante que seja essa diretriz constitucional.

Ao contrário de contribuir para sensibilizar a população brasileira para o tema do desenvolvimento urbano e para o urbanismo, o ENEM 2016 promoveu uma visão limitada, defasada e enviesada da urbanização brasileira, que não faz jus à reflexão acumulada sobre o assunto no âmbito das diversas ciências sociais aplicadas que tem a cidade como objeto.

Victor Carvalho Pinto é Consultor Legislativo do Senado Federal na área de Desenvolvimento Urbano; doutor em direito econômico e financeiro pela USP; autor do livro “Direito Urbanístico: Plano Diretor e Direito de Propriedade”, em 4ª edição.


[i] Nos termos das Matrizes de Referência do ENEM, trata-se de avaliar o conhecimento do candidato sobre o objeto “Vida urbana: redes e hierarquia nas cidades, pobreza e segregação espacial”, bem como sua competência para “compreender as transformações dos espaços geográficos como produto das relações socioeconômicas e culturais de poder” e “compreender a sociedade e a natureza, reconhecendo suas interações no espaço em diferentes contextos históricos e geográficos”.

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  • Victor, que baita texto! mas admiro ainda mais sua paciência para destrinchar a questão. depois dizem que não existe doutrinação nas escolas e que o ENEM não é enviesado. Como vi no Facebook em varias paginas não esquerdistas “quando fizer o Enem, pense igual ao seu professor de história”. e infelizmente, o que prejudica os mais pobres é justamente a excessiva regulação que os que dizem defende-los impõem sobre a cidade.