Analisando tempos semafóricos para promover travessias mais seguras
A pesquisa do Instituto Corrida Amiga revela vários desafios e falhas nos tempos para a travessia de pedestres nas cidades, que são, muitas vezes, insuficientes.
Considerar as particularidades e ritmos dos mais novos é o passo decisivo para um planejamento urbano inclusivo.
7 de agosto de 2025As crianças não caminham sozinhas pelas cidades. Em seus primeiros anos estão acompanhadas por adultos, responsáveis também pelos deslocamentos. Entre as novidades do lado de fora, estão sons, cores, imagens e, com o passar dos meses, desafios corporais e possibilidades de encantamento.
A relação com o território em que se vive começa a ser desenhada na infância. Conforto e segurança são fundamentais para se deslocar, e o que afeta o adulto responsável pelo trajeto – como longos tempos de espera pelo transporte e calçadas irregulares – afetará também a criança. Nessa simbiose, ambos precisam estar contemplados pelo desenho urbano, mas os parâmetros para sinalização, faixas e tempos semafóricos devem priorizar as peculiaridades de um corpo em desenvolvimento. Com essa decisão, todos são incluídos.
Esse é o ponto central de Francesco Tonucci. O chargista e pedagogo italiano defende, há décadas, que “uma cidade boa para as crianças é boa para todos”. Seus personagens têm traços simples e falas certeiras, como um garoto que diz: ”Senhor prefeito, não queremos escorregadores, nem balanços, queremos a cidade”. Hoje ele coordena uma rede internacional, a Cidade das Crianças, que promove encontros, trocas de metodologias e a sensibilização de gestores públicos sobre a questão urbana.
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Já é consenso entre especialistas que os primeiros anos são fundamentais para um desenvolvimento saudável. Entre 0 e 3 anos, o cérebro é muito maleável e vive uma atividade tão intensa que nunca mais se repetirá. O aprendizado vai acontecendo em camadas, como se um conhecimento ou interação positiva se sobrepusesse à outra. Traumas e privações prejudicam essa estrutura.
A questão central é: o que acontece nos primeiros anos tem um forte impacto na vida futura. Circular pelas cidades e não ser contemplado por elas em sua organização – ou pior, ser excluído – é fator gerador de instabilidade, perda de direitos e riscos de acidentes. Entre os principais motivos de mortalidade infantil estão “causas externas”, grupo que inclui colisões e atropelamentos por veículos motorizados. Por ano, no Brasil, mais de 3.300 meninas e meninos perdem a vida e outros 112 mil são internadas em estado grave.
O urbanista dinamarquês Jan Gehl, que vem se debruçando sobre planos urbanísticos e a necessidade de se olhar com atenção para pedestres, ciclistas, crianças e idosos, é autor de “Cidades para pessoas”. O título fala dos convites que as cidades devem fazer. A falta de um mobiliário urbano adequado e iluminação afastam as pessoas dos espaços públicos. Já bancos dispostos em áreas de grande circulação, calçadas alargadas e a priorização de quem está a pé funcionam como chamados: “venha, caminhe, você terá onde se sentar se sentir cansaço”. Ele defende que “o pré-requisito para a existência da vida urbana é oferecer boas oportunidades de caminhar”.
Boa Vista (RR) e Recife (PE) resolveram mudar e definiram seus pilares: redesenho do espaço público atendendo as crianças, requalificação urbana e protagonismo comunitário, além de técnicas do urbanismo social.
A capital de Roraima investe, há pelo menos duas décadas, em elementos lúdicos, mobiliário, abrigos de espera para transporte público (com ar-condicionado e energia solar) e caminhos amigáveis. Há “selvinhas amazônicas” espalhadas e convidativas para a aproximação (são réplicas de animais em tamanho gigante, com possibilidade de interação e iluminação à noite).
Vale a observação de que a ocupação urbana do município é horizontalizada (expansão para os lados, sem edifícios altos) e as ruas têm formato radial (irradiam de um ponto central para os limites da cidade). Essas condições podem ter facilitado a requalificação do espaço, mas foram as políticas públicas e as parcerias que transformaram Boa Vista num território melhor para seus pequenos cidadãos.
O Plano Municipal pela Primeira Infância (2019) apresenta 13 eixos prioritários, entre eles “A criança e o espaço – A cidade e o meio ambiente”, que defende a promoção e capacitação de técnicos da área de planejamento urbano. Houve também o programa de escuta Braços Abertos, que reuniu moradores de áreas vulneráveis, ouviu as demandas locais e fez uso de “mapas falados”.
A intersetorialidade (dentro da estrutura de governo) e o trabalho conjunto com outros atores (como organizações sociais e iniciativa privada) têm estruturado programas e ações de maneira territorializada e efetiva. Boa Vista, Recife e outras 30 cidades brasileiras integram a rede Urban 95, da Fundação Van Leer, iniciativa que considera a cidade sob o ponto de vista de quem tem 95 cm, a altura média de uma criança de 3 anos. A partir do mapeamento e diagnóstico iniciais, com a comunidade, acontecem as intervenções.
Recife apresentava outro nível de complexidade: é a segunda capital mais desigual do país, e seu estado, Pernambuco, tem quase 20% da população vivendo na extrema pobreza, além de ter uma topografia desafiadora (67% de seu território é região montanhosa). Em 2015, a Prefeitura lançou o “Mais Vida nos Morros”. Entraram em ação: cor, grafite, novas quadras e praças, espaços sugeridos pelos mais novos (como varandas brincantes, brinquedos adaptados aos desníveis do morro, feitos como PVC, e cabos de vassoura) e um mobiliário urbano confortável. Isso depois de amplo diálogo com os moradores das 56 comunidades. Como resultado, mais de 40 mil pessoas foram impactadas diretamente. Tulio Ponzi, idealizador do programa e Secretário Executivo de Inovação Urbana, definiu a política como uma “estratégia de convivência comunitária” e uma “estratégia reversa de segurança pública”.
Outras iniciativas recifenses merecem destaque: a construção de seis COMPAZ – Centros Comunitários da Paz, inspirados nas Biblioteca-Parques de Medellín. Seu idealizador, Murilo Cavalcanti, fez mais de 40 viagens ao país vizinho para entender a dinâmica. Os equipamentos têm estrutura de alta qualidade, bibliotecas e bebetecas amplas e iluminadas, portões e muros baixos e estão nas áreas mais carentes de infraestrutura e da presença do Estado.
As Praças da Infância combinam natureza, brincadeiras e tradições culturais. As definições sobre o mobiliário, piso, arbustos, sinalização e cores foram feitas em prol do brincar livre e do contato com elementos naturais, como troncos de árvores e bambu. Um detalhado manual (para replicação) foi elaborado pela Prefeitura, em parceria com a Van Leer e está disponível para download gratuito.
Pequenas intervenções voltadas a tornar a cidade mais amigável para as crianças podem beneficiar a todos. Um tempo maior para o semáforo de pedestres, pensando na travessia mais lenta das crianças, por exemplo, facilita também o trajeto dos idosos. Será que os adultos não se sentiriam melhores se o entorno da escola de seus filhos ou centro educacional próximo a sua casa tivesse área de convivência, muros coloridos, lixo recolhido e um jardim na calçada? O impacto positivo desse tipo de transformação não é sentido apenas por quem está vivendo a infância.
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Outro ponto fundamental é a promoção de uma mobilidade urbana menos focada no automóvel particular. Não deve causar estranheza a afirmação de que os carros passaram a dominar as áreas urbanas. Houve uma inversão sobre os usos, prioridades e gestão do trânsito. A estrutura viária olha prioritariamente para o fluxo dos automóveis (que ocupam também as calçadas como estacionamento). Enquanto isso, o tempo médio de travessia para um pedestre no semáforo é de apenas dez segundos, e muitas ruas nem sequer possuem calçadas com largura suficiente para duas pessoas.
Cidades que priorizam a vida nas calçadas e os deslocamentos a pé têm, não por acaso, melhor qualidade do ar, menos mortes no trânsito e comércios mais movimentados. Pinturas de faixas, cores nos muros, lugares para se sentar, melhoria na iluminação pública e abrigos sombreados não são intervenções vultuosas e não demandam arranjos muito complexos. São obras próprias das gestões municipais e possíveis de serem realizadas em um curto espaço de tempo e a baixo/médio custo. Precisam ser feitas.
A conexão com as cidades vai além da infraestrutura: passa pela sensação de pertencimento, noções de cidadania e atenção e cuidado com o espaço público. Há experiências exitosas acontecendo em diversos municípios brasileiros. Pessoas deveriam ser a bússola para a tomada de decisões de gestores públicos sobre áreas urbanas. E as crianças, o farol que não se apaga.
Para entender mais sobre os desafios e oportunidades do planejamento urbano nas cidades brasileiras, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“.
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