A cidade de 15 minutos: mito e realidade
Foto: Daria Agafonova/Pexels

A cidade de 15 minutos: mito e realidade

Poder ter todas as necessidades diárias supridas a apenas 15 minutos de caminhada de casa é uma ideia muito atraente. Mas será que o planejamento urbano é capaz de alcançar isso plenamente?

22 de maio de 2025

A ideia da “cidade de 15 minutos” ganhou destaque durante a campanha de reeleição da prefeita de Paris, Anne Hidalgo, em 2020. Em 2024, seu principal conselheiro de planejamento urbano, Carlos Moreno, publicou o livro de título modesto “A Cidade de 15 Minutos: Uma Solução para Salvar Nosso Tempo e Nosso Planeta”, no qual aprofunda o conceito. O argumento central de Moreno é que precisamos de planejadores urbanos competentes para organizar bairros onde tudo o que necessitamos — inclusive nossos empregos — esteja a no máximo 15 minutos a pé de casa. Outros livros foram publicados para reforçar sua tese, como Shrink the City: The 15-Minute Urban Experiment and the Cities of the Future”, de Natalie Whittle (2024).

É difícil imaginar alguém se opondo à ideia de uma cidade em que tudo que precisamos está a 15 minutos de caminhada de casa. Críticos da ideia de Moreno, no entanto, argumentam que essa proposta exigiria uma intervenção excessiva do governo na economia urbana e poderia gerar gentrificação, fazendo os aluguéis aumentarem nesses bairros “ideais”. Alguns chegaram a insinuar que a cidade de 15 minutos é parte de uma conspiração sombria para estabelecer controle governamental sobre a população urbana.

Eu não acredito que a cidade de 15 minutos seja uma conspiração; vejo-a como uma utopia simpaticamente ingênua. E como todas as utopias, ela desvia a atenção dos verdadeiros problemas das cidades. Eis os meus argumentos:

Os defensores da cidade de 15 minutos fazem duas promessas. Primeiro, que os urbanistas podem garantir que tudo que consumimos — alimentos, roupas, eletrodomésticos, lazer, cultura — esteja a até 15 minutos a pé de casa. E segundo, que esses mesmos urbanistas poderão alocar o emprego que nós preferimos — dentre os vários possíveis em uma grande área metropolitana como Paris — também a uma caminhada de 15 minutos da nossa casa.

Todo o consumo diário deve estar a até 15 minutos a pé?

Comecemos pelo consumo rotineiro mais típico: supermercado, padaria e serviços como barbearia e salão de beleza. Em uma economia de mercado, empreendedores privados criam e operam esses tipos de comércio. Eles decidem a localização das lojas com base no número de potenciais clientes que podem atrair.

Na cidade de 15 minutos, esses empreendedores dependeriam da quantidade de clientes residindo em um raio de aproximadamente 1 km — a distância aproximada que um pedestre alcança em 15 minutos a uma velocidade média de 4 km/h. A renda média das famílias dentro desse raio acessível vão determinar o tipo de loja e os produtos vendidos. Quanto mais pessoas nesse círculo, maior a probabilidade das lojas concorrerem entre si,  e mais atrativas elas serão aos potenciais clientes.

A possibilidade de ter produtos e serviços do dia a dia a 15 minutos de casa depende da densidade residencial em uma área de cerca de 314 hectares. Para ter viabilidade econômica, cada tipo de negócio exige um número diferente de consumidores em potencial. Uma rede de fast-food e um restaurante japonês sofisticado, por exemplo, precisam de números diferentes de clientes, com níveis de renda distintos, para serem economicamente sustentáveis atraindo pessoas da área circundante.

Portanto, a capacidade de criar bairros de 15 minutos não depende de um urbanista determinando a área certa para alocar uma padaria, restaurante ou bar. Na verdade, depende inteiramente da densidade populacional, da renda dos moradores e da decisão de empreendedores privados sobre quantos clientes em potencial são necessários para que o negócio funcione. Urbanistas não têm controle sobre nenhuma dessas variáveis. Densidade, renda domiciliar e decisões de empreendedores fazem parte da ordem espontânea que contribui para a própria existência das cidades.

Como tanto as densidades quanto as rendas variam amplamente entre bairros da mesma cidade, deveríamos falar em “bairros de 15 minutos” ao invés de “cidades de 15 minutos”.

Paris é uma cidade excepcionalmente densa — com uma média de 210 habitantes por hectare, chegando a 411 em alguns bairros — e com uma alta renda domiciliar mediana, de 42.260 dólares por ano. Consequentemente, é de se esperar que existam muitas lojas, restaurantes e serviços acessíveis a pé em uma área de 314 hectares. De fato, dados do Atelier Parisien d’Urbanisme (APUR) confirmam que os parisienses têm acesso a cerca de 59 padarias e 197 mercearias a até 15 minutos de caminhada da residência. Essa abundância de comércio não é resultado de um planejamento urbano inteligente, mas sim da alta densidade e alta renda da cidade.

Além disso, os parisienses se beneficiam de uma regulação favorável em relação ao uso do solo. Negócios de varejo podem operar em qualquer parte de uma área residencial, sem as leis de zoneamento restringindo os usos, como ocorre nos Estados Unidos. Em Paris, apenas indústrias pesadas são proibidas em áreas residenciais. Portanto, embora urbanistas não possam criar cidades de 15 minutos, eles podem acabar impedindo que elas existam — por meio da regulação.

A localização de equipamentos públicos — como creches, escolas primárias e unidades de saúde — também depende da densidade populacional do bairro.

Uma escola não funciona sem um número mínimo de alunos. O Ministério da Educação francês recomenda pelo menos 200 crianças por escola primária. Em Paris, a média é de 180 alunos por escola, com um total de 657 escolas — aproximadamente 23 escolas primárias por raio de 15 minutos a pé.

A acessibilidade a pé a creches e escolas depende da densidade de crianças, que por sua vez depende da taxa de fecundidade e do perfil etário das mulheres no bairro. O 16º arrondissement, por exemplo, tem uma população mais envelhecida que a média da cidade e, portanto, menos crianças em idade escolar. Como resultado, algumas escolas estão sendo fechadas por falta de alunos. Quando isso acontece, a distância a pé até as escolas remanescentes aumenta para as crianças que frequentavam a que foi fechada. 

O tempo de caminhada até a escola, portanto, não depende do planejamento urbano, mas sim da idade e da fecundidade das mulheres que residem no bairro. Nenhum urbanista brilhante consegue influenciar isso.

Leia mais: Cidade de 15 minutos: a última utopia urbana

Utilizei Paris para testar a viabilidade da acessibilidade com 15 minutos de caminhada a estabelecimentos que vendem bens de consumo diário. Esse mesmo teste pode ser feito em outros bairros de diferentes partes do mundo.

A tabela abaixo mostra a densidade de diversos bairros, desde um subúrbio pouco denso de Nova York até uma área de alta densidade no centro de Hanói. Ela também indica o número de pessoas a até 15 minutos de caminhada de qualquer loja. É fácil inferir quais bairros já funcionam como “bairros de 15 minutos” e quais não. Mas o tipo de comércio também dependerá da renda média das famílias no bairro.

Tabela com densidades (hab/ha) de diferentes bairros e a população dentro de um círculo de 314 hectares. Fonte: Alain Bertaud, com base nos censos

Urbanistas podem prover o emprego que você deseja a 15 minutos da sua casa?

Embora seja possível, com densidade e renda suficientes, encontrar lojas e restaurantes a 15 minutos de casa, as chances de encontrar o emprego ideal a essa distância são muito pequenas em uma grande metrópole.

Pessoas se mudam para grandes cidades — mesmo enfrentando aluguel alto e trânsito — porque elas oferecem diversidade de oportunidades de emprego. Em meu livro “Ordem sem Design: Como os Mercados Moldam as Cidades”, argumento que cidades são, acima de tudo, mercados de trabalho. E a palavra-chave aqui é “mercado”.

Escolher um emprego no mercado significa ter várias opções concorrentes. Embora possamos estar satisfeitos com três ou quatro padarias, não estaríamos contentes com uma escolha restrita a apenas quatro opções de emprego. A motivação para morar em uma cidade grande é justamente o acesso a muitas oportunidades. Se o sistema de transporte da cidade é eficiente, podemos escolher um emprego ideal em qualquer parte da cidade — tornando irrelevante a localização da moradia. Se ele for ineficiente, limitamos nossa busca a empregos a até 1 hora de distância, reduzindo o leque de opções.

Com o tempo, podemos querer mudar de emprego. E novamente, queremos ter várias opções para poder avaliar o equilíbrio entre o tempo de deslocamento e a qualidade ou o interesse pelo trabalho. Embora possamos deixar de procurar empregos que exijam um tempo de deslocamento acima de um limite determinado — digamos, 1 hora —, um deslocamento muito curto, como uma caminhada de 15 minutos, dificilmente será o fator decisivo quando comparado a aspectos como salário, interesse pelo trabalho, possibilidades de crescimento, ambiente profissional etc.

Ao observar os padrões de deslocamento na região metropolitana de Paris, vemos que 30% dos parisienses empregados trabalham fora da cidade de Paris, apesar dela oferecer mais de 1,8 empregos para cada trabalhador.

Deslocamentos casa-trabalho na região metropolitana de Paris. Imagem: APUR

Devido à alta densidade de empregos disponíveis em Paris, cada trabalhador tem acesso a aproximadamente 50 mil empregos a uma caminhada de 15 minutos de sua residência. No entanto, apenas 12% dos trabalhadores tiram proveito dessa proximidade, e 88% optam por utilizar algum outro meio de transporte para chegar ao local de trabalho. Além disso, 8% dos trabalhadores gastam mais de 1 hora de deslocamento, apesar dos 50 mil empregos acessíveis a pé. Essa distribuição do tempo de deslocamento reflete as escolhas e renúncias encontradas em qualquer grande mercado de trabalho.

Até 30% dos trabalhadores parisienses escolhem trabalhar fora da cidade, mesmo diante da alta concentração de empregos em Paris.

A maioria dos empregos localizados no município de Paris (61%) é ocupada por trabalhadores que vivem na região metropolitana de Paris ou até mais longe.

Percebemos que a maioria dos parisienses e dos trabalhadores suburbanos faz escolhas para encontrar um equilíbrio entre distância e qualidade do emprego, não necessariamente priorizando a proximidade, mas sim a atratividade da oportunidade. O conceito de cidade de 15 minutos, quando aplicado ao trabalho, assume que a proximidade é o principal critério na hora de escolher um emprego.

Urbanistas têm a infeliz tendência paternalista de substituir as escolhas dos cidadãos por suas próprias preferências. Um estudo sobre os padrões de deslocamento revela com facilidade as preferências dos trabalhadores ao escolherem seus empregos em uma área metropolitana. Urbanistas podem melhorar a vida dos trabalhadores ao aumentar a velocidade dos meios de transporte, ao invés de tentar alocar empregos com base no local de moradia dos cidadãos.

A cidade de 15 minutos é boa demais para ser verdade?

A ideia de ter acesso a alimentos, serviços e emprego a apenas 15 minutos de caminhada de casa é, sem dúvida, atraente. Mas é evidente que os urbanistas não possuem as ferramentas necessárias para atingir isso. Em Paris, o acesso a bens e serviços cotidianos é conquistado não por causa de um planejamento urbano inteligente, mas por conta da histórica alta densidade e da elevada renda das famílias parisienses.

No futuro, com as mudanças nos padrões de consumo e a tecnologia de entregas, os urbanistas talvez nem consigam mais determinar quais densidades seriam necessárias para garantir que alimentos estivessem disponíveis a 15 minutos a pé. Cada vez mais as compras são feitas online, e alimentos e outros produtos são entregues diretamente em casa, sem que as pessoas precisem caminhar até um restaurante ou loja.

Será que essa tendência vai avançar até o ponto em que a produção de alimentos que distribui comida diretamente para as residências vai substituir muitos dos restaurantes existentes? Espero que não, mas ainda não sabemos. Serão as preferências dos consumidores, os níveis de renda e as restrições de oferta dos produtores que determinarão isso — e não os urbanistas.

Urbanistas que prometem empregos desejáveis a 15 minutos a pé de casa estão sendo ainda mais desonestos. O conceito ignora a forma como os mercados de trabalho realmente funcionam. No caso de Paris, quando Carlos Moreno afirma que vai prover empregos desejáveis a uma caminhada de 15 minutos, o que exatamente isso significa? Ele criará novos empregos em Paris, além dos que já existem? Na realidade, a maioria dos empregos em Paris já é ocupada por residentes dos subúrbios. E de qualquer forma, urbanistas não podem criar empregos em locais específicos. Seus instrumentos regulatórios só permitem que eles impeçam que empregos sejam criados em determinados lugares. Criar mais empregos dentro do município de Paris não tornaria o deslocamento ainda mais longo e congestionado para os trabalhadores suburbanos?

Suponhamos que urbanistas queiram reduzir as distâncias até lojas e restaurantes: eles poderiam flexibilizar as leis de zoneamento, que em muitas cidades restringem a localização de comércios em áreas residenciais. Essa restrição não existe em Paris.

Leia mais: A Cidade de 15 Minutos é um beco sem saída

Como em muitas outras áreas metropolitanas, os longos deslocamentos são, sem dúvida, um problema em Paris. Para reduzir os tempos de deslocamento, urbanistas podem melhorar a velocidade dos diferentes meios de transporte já existentes e, possivelmente, introduzir modais alternativos. Remover as restrições regulatórias que congelam o potencial construtivo para uso residencial permitiria que o setor privado construísse moradias mais acessíveis para um número maior de trabalhadores e em locais mais desejáveis, com acesso a empregos. 

Em resumo: o conceito da cidade de 15 minutos funciona como uma distração que desvia a atenção de outros problemas complexos — como o transporte metropolitano e a oferta de moradia acessível.

Artigo originalmente publicado em Ideas for Indian Cities, em maio de 2025.

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