Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
Valorização da vida urbana na cidade de São Paulo também passa pela melhor integração dos shoppings centers ao seu entorno.
3 de julho de 2023Por mais que eu seja crítico ao impacto dos shopping centers na vida urbana paulistana, ainda não consigo evitá-los completamente. Seja porque tenho pouco tempo, mas preciso passar no supermercado e também comprar um presente de aniversário; seja porque o filme que quero ver só está sendo exibido naquele horário e naquele shopping; seja porque meus filhos adoram o espaço de brincar no terraço do Shopping Pátio Higienópolis e, como preciso mesmo comprar um tênis novo, acabamos indo lá.
Enfim, são a praticidade e a comodidade oferecidas pelos shopping centers que explicam, ao menos em parte, seu enorme sucesso entre os paulistanos. Enquanto muito se fala na “morte dos shoppings na América do Norte”, por exemplo, conforme analisado por Nolan Gray em artigo publicado aqui no Caos Planejado, os shoppings daqui seguem como uma das opções preferidas de lazer e consumo dos moradores da Grande São Paulo.
Sempre que vou a um shopping, contudo, não consigo evitar a mesma pergunta: já pensou se todas estas pessoas estivessem passeando, comendo ou fazendo compras em lojas de rua em vez de estarem aqui, confinadas em um shopping center? A cidade, sem dúvida, ganharia muito em vitalidade urbana.
É até estranho imaginar que, quando surgiu o Iguatemi, o primeiro shopping center de São Paulo, inaugurado em 1966, o modelo chegou a ser desacreditado por lojistas e consumidores paulistanos. Afinal, “a moda, na época, era fazer compras e andar com suas melhores roupas e joias pelas butiques da Rua Augusta”, nos lembra artigo do site São Paulo in Foco.
Há uma frase famosa do escritor francês Victor Hugo segundo a qual nada seria mais poderoso do que uma ideia cujo tempo é chegado. Com a forte expansão da indústria automobilística a partir da década de 1950 e cada vez mais carros nas ruas somados ao aumento da violência e da sensação de insegurança na cidade, especialmente a partir da década de 1980, o shopping center se apresentou como o modelo ideal de centro de compras: uma grande diversidade de estabelecimentos do setor de comércio e serviços reunida em um único lugar que conta com segurança, vagas de estacionamento e proteção contra o calor excessivo ou o mau tempo.
Se no pioneiro Shopping Iguatemi ainda houve alguma preocupação com a qualidade arquitetônica do projeto — que privilegiou luz e ventilação naturais, por exemplo — e sua relação com a rua, os shoppings que surgiram a partir da década de 1970 (como o Ibirapuera, de 1976; o Eldorado, de 1981; e o Morumbi, de 1982, por exemplo), com raras exceções, se configuram como verdadeiros bunkers protegidos por muros e grades ou cercados por vagas de estacionamento, sendo que muitos deles estão hoje localizados em regiões populosas ou bastante movimentadas da cidade.
Este modelo arquitetônico do tipo bunker tornou-se praticamente um padrão e é o predominante nos mais de 50 empreendimentos do tipo existentes na capital. Tanto que até o Shopping Cidade de São Paulo, inaugurado há poucos anos, em 2015, em plena Avenida Paulista, foi construído com um recuo em relação à calçada, sem permeabilidade visual, lojas, mesinhas ou vitrines voltadas para a movimentada avenida. A praça construída ao lado do shopping, verde e sempre cheia de gente, evidencia o potencial urbano desperdiçado com o recuo frontal do empreendimento.
Um amigo arquiteto costuma brincar que o shopping center é um dos quatro cavaleiros do apocalipse urbano paulistano, ao lado dos estacionamentos, das torres espelhadas exclusivamente comerciais sem vida no térreo e dos condomínios-clube protegidos por muros elevados (ainda poderíamos incluir as exigências de recuos frontais e laterais, o zoneamento entre atividades comerciais e residenciais, a forte limitação do potencial construtivo e o rodoviarismo, entre outros).
A preocupação com a vitalidade urbana e a ideia de uma cidade voltada para as pessoas vêm, felizmente, ganhando força nos últimos anos. O Plano Diretor vigente em São Paulo desde 2014, por exemplo, trouxe incentivos à fruição pública, permeabilidade visual e fachada ativa nos novos empreendimentos imobiliários. Mas o que fazer com as construções anteriores ao Plano?
Em outro artigo publicado aqui no Caos Planejado, fiz uma provocação bem-humorada envolvendo a criação de um imposto sobre os muros dos condomínios. Brincadeiras à parte, realmente acredito que seja preciso pensar não somente nas características desejáveis dos novos empreendimentos imobiliários, mas também em formas de melhorar as construções já existentes, entre as quais os shopping centers.
Modelos alternativos de shoppings, bem integrados ao entorno, que favorecem a vitalidade urbana, já existem — na Avenida Paulista, inclusive. É o caso do Conjunto Nacional, repleto de lojas voltadas para a rua, com a entrada do estacionamento subterrâneo “escondido” em uma das ruas laterais e com passagens livres que permitem aos pedestres atravessarem por dentro dele até a Rua Augusta ou a Alameda Santos. Logo em frente ao Conjunto Nacional, o Shopping Center 3 me parece outro bom modelo de fluidez, permeabilidade visual e integração com o entorno.
É bastante emblemático que o debochado grupo musical Mamonas Assassinas tenha escolhido o “Chopis centis” como tema de uma de suas músicas. O barulho da praça de alimentação cercada por lojas de redes de fast food e a artificialidade da iluminação e da climatização são imagens de uma alegria triste, cafona, consumista, meio deprimente, em nada comparada à beleza e ao entusiasmo de uma rua cheia de gente, aberta, democrática.
Não estou aqui, contudo, a propor a demolição dos shoppings; nem para julgar seus frequentadores — eu mesmo, afinal, sou um deles. Apenas acredito que, nas discussões a respeito da valorização da vida urbana, não podemos esquecer de levar em consideração as construções já existentes, entre as quais os shoppings, especialmente os localizados em áreas de alta densidade populacional ou onde é grande o fluxo de pessoas nas ruas do entorno.
Afinal, é inegável a contribuição da permeabilidade visual e da fruição pública para a qualidade de vida na cidade, em especial para quem caminha pelas calçadas. Por que, então, não trocar as grades que “protegem” o Bourbon Shopping, na Rua Palestra Itália, por exemplo, por uma fachada ativa repleta de lojas, vitrines e restaurantes? Por que não tornar as entradas dos shoppings mais amplas, convidativas e amigáveis para os pedestres, como no Conjunto Nacional e no Center 3, por exemplo? Por que não trocar vagas de estacionamento no térreo por mais espaços para as pessoas? Por que, por fim, não tornar as fachadas mais bonitas e esconder as vagas de garagem e aquelas medonhas rampas de estacionamento em caracol?
É possível? Talvez seja preciso ajustar legislações, criar incentivos específicos (desconto em impostos, liberação de potencial construtivo?), mas acredito que seja, sim, possível encontrar uma solução que agrade proprietários dos shoppings, lojistas e, principalmente, que colabore para a vitalidade urbana e a qualidade de vida na cidade. Quanto aos projetos, deixo o desafio para os meus colegas arquitetos e urbanistas leitores do Caos Planejado.
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