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Antigamente as calçadas não eram para pedestres trafegarem, as ruas eram. Basta assistir um filme antigo retratando uma rua comercial qualquer e pode-se ver claramente que as calçadas serviam de espaço para o feirante colocar as mercadorias, o dono do bar colocar as mesas, o engraxate colocar sua cadeira, etc. As pessoas andavam na rua, negociando o espaço com os cavalos, bicicletas, crianças e com o incipiente tráfego de automóveis. A prática de jaywalking não era uma infração. As ruas eram o verdadeiro caos planejado.
Com o aumento do tráfego de automóveis e das velocidades, essa negociação se tornou impossível. Surgiu então um problema: onde colocar os pedestres? Mande-os para a calçada! E os ciclistas e as crianças? Ah, esses é melhor ficarem em casa para não incomodar!
Hoje em dia, no Brasil, vivemos um dilema: a maioria dos municípios atribui ao proprietário do lote a construção e manutenção da calçada, definindo somente alguns parâmetros básicos como largura. Essa transmissão de responsabilidade mostra claramente o valor que damos ao pedestre — basicamente nenhum — pois nem sequer nos preocupamos em disponibilizar uma via decente para ele trafegar em segurança. O respeito pelas calçadas é um bom indicador do nível de democracia de uma nação.
Esse é um dos motivos pelo qual os shoppings se mostram tão apelativos numa democracia instável como a nossa. Por que será isso? Por que as pessoas gostam tanto de shoppings? Porque o shopping é um empilhamento de ruas comerciais perfeitas. Calçadas (os corredores do shopping) largas, limpas, iluminadas e o melhor que ninguém nota: sem carros pra atrapalhar, logo sem poluição e com muita segurança.
No entanto, muitas cidades não caíram na tentação dessas “catedrais do consumo” e conseguiram manter o comércio de rua vivo, através de ruas exclusivas para pedestres. As Ramblas em Barcelona, com um tráfego de 3.500 pedestres/hora, A Oxford Street em Londres, que apesar de não ser fechada ao trânsito tem um tráfego de pedestres intenso, e a Zeil em Frankfurt são alguns exemplos de ruas para pedestres de sucesso.
Apesar da longa experiência internacional, muitos políticos, comerciantes e população em geral ainda têm um certo medo em restringir o tráfego ou retirar o estacionamento em frente às lojas, basta ver a discussão acalorada a respeito do plano cicloviário de São Paulo. Porém, na maioria das vezes, a situação melhora muito.
Um bom exemplo para ilustrar esse debate é a recente intervenção levada a cabo pela Comissária de Transportes de Nova York, Janette Sadik-Khan. No vídeo abaixo pode-se ver a distribuição do espaço antes e depois da intervenção. As pessoas que usam as calçadas são muitas e têm pouco espaço, já as pessoas que usam a rua (dentro dos carros) são poucas e têm muito espaço. É muito importante fazer esta distinção que normalmente passa batida: queremos transportar pessoas e não carros ou bicicletas ou ônibus. Esses são só veículos, são os meios de transporte e não o transporte em si!
Quando se atribui muito espaço para poucos (que vão dentro do carro) e pouco espaço para muitos (que vão a pé pela calçada) notamos a desigualdade de distribuição de espaço na cidade, algo pouco democrático. Infelizmente vemos gente que ainda acredita no contrário. A Prefeitura de Porto Alegre decidiu abrir ao tráfego de automóvel uma rua antes exclusiva para pedestres. Detalhe: um trecho de 100 metros custará R$3 milhões. Às vezes esqueço que somos um país rico.
Essas decisões de criar ou reabrir ruas para o tráfego automóvel são uma ilusão. O tráfego de uma cidade grande como Porto Alegre é muito mais complexo, mais estocástico que se imagina. Logoessa rua vai estar congestionada pois vai se tornar alternativa para alguns motoristas que antes faziam outro percurso por ruas e avenidas de maior capacidade, criando um efeito de rat running, não se limitando à comportar a geração de tráfego local e sim servindo como um corta-caminho.
Aliado a isso, a taxa de motorização no Brasil está em franco crescimento, logo aumentar oferta viária no centro da cidade só vai induzir mais demanda. Ainda — e talvez esse seja o ponto fulcral dessas medidas esdrúxulas — é que vamos ter uma redução da capacidade viária, não um aumento.
Como eu escrevi acima, se pensarmos em pessoas transportadas por hora (e não carros/veículos, sendo sempre importante fazer essa distinção) uma rua para pedestres transporta muito mais que uma rua para carros. O caso das Ramblas é emblemático: para se conseguir transportar aquele volume de pessoas (3.500/hora) de automóvel, seria preciso uma verdadeira autoestrada urbana, acompanhada de todo o seu impacto visual, ambiental, etc.
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