Resiliência urbana e o impacto da Covid-19 nas cidades
Imagem: Mick De Paola/Unsplash.

Resiliência urbana e o impacto da Covid-19 nas cidades

Cidades resilientes se reinventarão após a pandemia de coronavírus.

24 de setembro de 2020

A resiliência é tradicionalmente relacionada à elasticidade e possibilidade de um material retornar à sua forma original após uma tensão ou deformação. Etimologicamente, o termo resiliência deriva da palavra latina resilio: recuperar. Embora tenha sido difundido na física, ao longo do tempo esse conceito passou a ser utilizado em áreas diversas, como comportamento humano, gestão organizacional e até mesmo na área urbana.

Resiliência urbana é a capacidade dinâmica do sistema urbano, em todos os aspectos que o constituem, de manter, retornar, adaptar ou transformar rapidamente suas funções diante de um distúrbio ou mudança que limite suas possibilidades atuais ou futuras.

Modelo da OECD define que uma cidade resiliente é aquela com “capacidade de absorção, recuperação e preparação para choques futuros”, sejam eles de natureza econômica, ambiental, social ou institucional. Assim, a resiliência urbana está ligada à continuidade e sobrevivência de uma cidade, passando por uma reinvenção se preciso, diante da emergência ou desastre. É a capacidade de resposta em momentos de adversidade que definem um novo “antes e depois”, uma ruptura que se sobreponha à visão de futuro daquela cidade e mude seus rumos.

Milão, Itália. (Imagem: Mick de Paola/Unsplash)

As cidades são sistemas complexos, mas também vulneráveis, que precisam se transformar para enfrentar novos e incertos desafios que influenciam a qualidade de vida dos cidadãos no espaço urbano, os quais vão da desigualdade econômica e conflitos geopolíticos às mudanças climáticas e degradação ambiental. Isso quer dizer que, diferente de um material resiliente, uma cidade resiliente não retorna ao seu estado anterior após o processo de ruptura sofrido. Uma cidade resiliente se torna diversa.

Ao longo da história, cidades em diferentes regiões e continentes foram afetadas por guerras, crises e desastres, conseguindo se metamorfosear e sobreviver, como: Hiroshima, Berlim, Hong Kong, Medellín e Nova York.  Esta última, após o Onze de Setembro, foi o centro de uma crise internacional. A economia foi paralisada, houve uma crise imobiliária, a violência urbana se intensificou com a diminuição de policiais nas ruas — especialmente roubos, furtos e homicídios, o turismo sofreu com a perda de cerca de um milhão de turistas e, em pouco meses, foram necessários bilhões de dólares em obras de reconstrução que transformaram a paisagem urbana. Houve ainda o impacto emocional na comunidade, com o medo, a angústia, a insegurança e a sensação de que o mundo havia mudado para sempre. Apenas após um trabalho de longo prazo, sob uma liderança definida e com base na revitalização urbana, a maior cidade dos EUA pôde se recuperar.

Na década seguinte, em 2012, Nova York sofreu o impacto de um desastre natural: o furacão Sandy. Além de deixar vítimas fatais, milhões de cidadãos ficaram sem água e energia elétrica, inundações interromperam o transporte público, milhares de pessoas foram retiradas de áreas de risco, casas foram destruídas e os danos resultaram num prejuízo estimado em US$ 19 bilhões.

Maia, Portugal. (Imagem: Kaharlytskyi/Unsplash)

Após o desastre foi preciso fazer mais do que reconstruir. Esse acontecimento provocou o desenvolvimento de novos planos, políticas e ações voltadas à redefinição de sua infraestrutura para prevenir futuros incidentes e mitigar riscos de desastres, além de repensar a habitação, as características das construções em diferentes áreas, revisar zonas de evacuação, o sistema de atendimento à população e seus instrumentos reguladores. A necessidade de mudança em diferentes aspectos de sua infraestrutura tornou-se um consenso e os antigos modelos de planejamento urbano adotados na cidade passaram a ser vistos como causa das vulnerabilidades do momento. Os efeitos das ações conjuntas realizadas após o furacão Sandy transformaram Nova York.

Com uma ruptura de natureza diversa, Medellín, segunda maior cidade colombiana, é mais uma das que utilizaram a resiliência urbana para se reinventar. Na década de 90, sob a influência do narcotráfico, a cidade era considerada a mais violenta e insegura do mundo. Duas décadas depois, em 2013, totalmente transformada, foi premiada como a mais inovadora.

Foi apenas após o início dos anos 2000 que a visão sobre essa cidade, fortemente influenciada pela violência e corrupção, começou a ser transformada. Utilizando soluções inovadoras em mobilidade como o Metrocable e as escadas rolantes da Comuna 13, novas políticas para inclusão social, recuperação de espaços públicos, melhorias nos bairros periféricos, investimento em transparência e engajamento cidadão, foi possível transformar o espaço urbano e atrair a atenção internacional para o modelo de sucesso da cidade. Uma nova Medellín.

Nova York, EUA. (Imagem: Michael Walter/Unsplash)

Agora o mundo enfrenta um desafio que impacta diretamente as cidades: a pandemia do coronavírus (COVID-19). O vírus se espalhou rapidamente por todos os continentes nos últimos quatro meses e o número de casos se aproxima de dois milhões, paralisando um terço da população.

A indicação de governantes e cientistas é mantermos distância, enquanto uma das características principais da cidade é estarmos juntos, convivermos. Pesquisas apontam que as medidas restritivas impostas à população, como distância social e quarentena, podem se prolongar por anos até que haja um tratamento adequado para a doença. Apesar de algumas cidades despontarem no momento, como Bergamo, Wuhan e Teerã, esse é um problema global.

Canadá. (Imagem: Jonathan Cooper/Unsplash)

Por um lado, a disseminação do vírus expõe vulnerabilidades e provoca a reflexão sobre características específicas das cidades que poderiam ou não ter propiciado a disseminação do vírus, tais como densidade, faixa etária da população, condições de habitação e circulação de viajantes; por outro, nos desperta para uma realidade conhecida, mas subestimada pelas cidades até então.

Distância social e a mobilidade urbana

Algumas situações em curso já começam a alterar o cenário atual como, por exemplo, a mobilidade urbana. Enquanto algumas cidades passaram a adotar rapidamente medidas para permitir maior distanciamento social, tais como novas ciclovias, alargamento das calçadasfechamento de ruas e criação de espaços sem carros para que os pedestres possam circular com uma distância de pelo menos um metro e meio, outras sentem um profundo impacto no transporte público.

Liverpool, Inglaterra. (Imagem: Ben Garratt/Unsplash)

Budapeste sofreu uma redução de 90% no uso de ônibus e 50% no tráfego rodoviário. Nas cidades chinesas, após o fim das restrições e quarentena, o medo de contágio na população fez com que o uso de transporte público fosse reduzido pela metade e corridas de táxis se tornassem menos frequentes, duplicando o uso de carros particulares nas ruas. Isso indica que com a pandemia há um movimento em direção ao transporte individual, como carro e bicicleta, abandonando o transporte público e opções de compartilhamento. O resultado dessa mudança será sentido negativamente no tráfego urbano, nos índices de poluição, na crise climática global e na saúde da população. Fica claro que expandir a caminhabilidade urbana, nesse contexto, torna-se cada vez mais urgente.

#stayhome e o “morar bem”

A pandemia trouxe à tona outras questões ligadas à densidade e habitação nas cidades. A densidade não é um problema, mas depende das condições de vida para a população. Londres, uma das principais metrópoles mundiais, tem 16% de suas famílias vivendo em acomodações superlotadas, um índice quase três vezes maior que outras regiões do Reino Unido. Relatório publicado na última semana indicou que, na Inglaterra, locais compartilhados pelas pessoas com menos quartos e banheiros sofreram taxas mais altas do vírus.

Em favelas brasileiras, onde muitos vivem em barracos e cortiços, não há rede de esgoto e acesso à água para todos, dificultando o cumprimento de medidas básicas para contenção do vírus. NY pedirá aos desenvolvedores de moradias acessíveis que reservem mais apartamentos aos sem-teto em edifícios que serão concluídos nos próximos meses para reduzir seu risco de contágio nas ruas. A chegada do coronavírus trouxe à tona problemas de habitação que há muito tempo precisam de resposta.

Quarentenas, lockdown e a estadia prolongada em casas e apartamentos também estimularam parte da população a repensar a qualidade e características de habitação. Em cidades italianas há indivíduos e famílias confinados há mais de quarenta dias num único espaço, o qual se torna espaço de lazer, trabalho, estudo, atividade física, confraternização e quase todas as atividades rotineiras dos moradores. Como está o bem-estar físico e mental dos confinados? As necessidades e desejos dos moradores mudaram.

Enquanto passava-se boa parte da jornada diária fora de casa, apenas condições mínimas de moradia pareciam ser suficientes para muitos na escolha de um espaço para viver. Agora, abarcando essas mudanças, o número e as dimensões das janelas, a disponibilidade de sacadas ou jardins para acessar o exterior, boa ventilação e acesso ao sol pelo menos parte do dia, passam a ter um novo peso e exigem outros critérios de avaliação.

Castelló, Espanha. (Manuel Peris Tirado/Unsplash)

Talvez a pandemia provoque o surgimento de uma nova arquitetura residencial, o abandono da vida vertical ou a saída de grandes centros para o interior. Há ainda a possibilidade de que parcela da população adote o home office definitivamente, empregadores estimulem o trabalho remoto, o desemprego provoque o surgimento de mais empresas domésticas e que estudantes passem a ter mais atividades virtuais, diminuindo seu tempo em sala de aula nas escolas e universidades. Nesse novo contexto, ainda fará sentido morar perto do trabalho? E da escola? Sem a necessidade de deslocamento diário à um escritório ou sala de aula, a escolha de uma região para morar será flexibilizada e o lar passará a abrigar novas atividades.

A resiliência urbana e as cidades 

Estes aspectos são apenas alguns envolvidos na crise do coronavírus. O impacto da pandemia nas cidades ainda não foi completamente compreendido e será necessário um balanço posterior que considere as características e os desafios de cada local, assim como em cidades que passaram por desastres e emergências.

Porém, mesmo ainda em crise, é necessário pensar e se preparar para as próximas semanas e meses em locais onde a Covid-19 teve maior choque. Exemplos de cidades na história mostram que é possível a recuperação e transformação do espaço urbano, inclusive aumentando a vitalidade urbana e a qualidade de vida da população. Algumas reflexões são possíveis e as cidades precisam ser parte da solução. Respostas rápidas são necessárias e deixarão mudanças no espaço urbano, daí a necessidade de resiliência urbana.

Parte importante do enfrentamento ao desafio da pandemia começa em aceitar que a vida não será como antes, mudanças são necessárias e, em alguns casos, inevitáveis. A partir disso, uma boa governança é a chave para a a tomada de decisão e elaboração de planos e políticas para a cidade pós-pandemia. A governança, por sua vez, deve ser orientada por uma visão estratégica e bom uso dos dados com transparência, aliando participação cidadã e engajamento civil para transformar as cidades. A população deve ter espaço e oportunidade para dizer qual cidade que deseja após a crise e como deseja passar por essa crise.

Ouvir e envolver os cidadãos é essencial na mudança de rumos de uma cidade, seja para sua recuperação ou para a criação de novas condições.

Artigo publicado originalmente em Via – Estação Conhecimento em 14 de abril de 2020.

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