Bairros nunca tiveram o propósito de serem imutáveis
As mudanças nos bairros e nas cidades ao longo dos anos é natural e tentar impor restrições para elas é um equívoco.
A capital maranhense já foi conhecida como a cidade dos bondes, mas a exemplo de outras cidades, foi gradualmente adotando um modelo rodoviarista.
25 de setembro de 2019Atualmente, São Luís detém um modelo rodoviarista de mobilidade urbana, focado no automóvel particular, assim como boa parte das capitais brasileiras. Contudo, nem sempre foi assim. A capital maranhense já foi conhecida como a cidade dos bondes que, devido a compactação de seu núcleo urbano, desempenhavam um papel muito eficiente de mobilidade urbana, levando os cidadãos da urbe para todo território do até então pequeno núcleo urbano.
Mas o que mudou na cidade de São Luís para que os trilhos fossem inviabilizados? O que fez a cidade se tornar mais um modelo rodoviarista, embora tivesse um sistema completo, complexo e eficiente de mobilidade sobre os trilhos? De que maneira essas questões podem nos auxiliar a entender e gerir uma melhor mobilidade urbana? Para responder estas questões, é necessário entender o contexto em que tais ações aconteceram.
Ao longo do século XVIII e XIX, o estado do Maranhão vivenciou um rápido crescimento econômico, o que Pereira destaca como “A idade do Ouro” da cidade. Este crescimento era baseado sobretudo na mão de obra escrava e na agricultura do algodão, o qual exportou de forma majoritária para a Inglaterra, quase sem competição, enquanto durou a Guerra Civil Americana (1861–1865) e até a plena recuperação das terras produtivas do sul dos EUA.
Tal enriquecimento fez com que a elite da cidade enviasse seus filhos para estudar nas maiores universidades do país (Recife e Rio de Janeiro) e na Europa, especialmente em Portugal. Tal fato fez com que a cidade recebesse a alcunha de “Atenas Brasileira”, uma vez que esse investimento em capital humano possibilitou que aqui surgisse, no período citado, uma grande geração de escritores e poetas, como Graça Aranha, Coelho Neto, Arthur Azevedo, Aluísio de Azevedo e muitos outros.
Além disso, por exigência das elites, os gestores aplicaram na capital maranhense elementos que viam nas cidades europeias durante a sua viagem, como sistema de iluminação pública, companhia de telefones e telégrafos e os bondes. O dinheiro do algodão, que colocava São Luís como uma das capitais mais ricas do país, possibilitou a introdução destas novas tecnologias. Além disso, praças, monumentos e edificações, como o Teatro Arthur Azevedo (em estilo neoclássico) foram obras deste momento histórico.
Desse modo, segundo o professor Luiz Phelipe Andrés, em 1868 foi criado o primeiro sistema de transporte coletivo do Norte e Nordeste na cidade de São Luís — os bondes de tração animal, também conhecidos como ”tramwais”. Posteriormente, já na década de 1920, os bondes passaram a ser elétricos, o que tornou o transporte ainda mais eficiente.
Ademais, segundo o professor Lopes, durante a década de 1940, a cidade de São Luís começou a se expandir para além do núcleo inicial, ao qual se manteve concentrado desde a fundação da cidade e a criação do ordenamento urbano por Frias de Mesquita. Essa expansão, em boa parte, foi possível graças aos bondes elétricos, que iam até a região do Anil. Outros fatores, como abertura de novas avenidas (Avenida João Pessoa e Getúlio Vargas) e a ferrovia São Luís–Teresina também foram importantes no processo.
Durante as décadas anteriores ao fechamento das linhas de bondes, as empresas que participavam da manutenção e gestão das linhas passaram por inúmeros problemas, até que no ano de 1966, o último bonde circulou na cidade de São Luís. O argumento utilizado para tal foi que eles causavam transtorno no tráfego da cidade.
Ao longo das décadas seguintes, alguns gestores, como Fecury, chegaram a cogitar a volta de algumas das linhas de bondes, mas não saiu do papel e hoje as linhas dos antigos bondes estão cobertas pelo asfalto. A retirada dos bondes, como se pode imaginar, não foi capaz de resolver o problema do trânsito, que só piorou com o passar dos tempos.
Embora muito rico, o Maranhão do século XVIII era um estado isolado. Não existiam estradas ou ferrovias em boas condições que ligassem o estado a outras regiões do país. Desse modo, o principal contato externo do Maranhão acabava sendo com a Europa, tendo em vista a localização privilegiada da cidade de São Luís.
Segundo Gualhardo, para escoar a produção de cana-de-açúcar, arroz e, principalmente, algodão, os rios eram utilizados para o transporte do interior do estado para a capital maranhense. Contudo, a navegação no período da estiagem era difícil e alguns deles se encontravam assoreados devido à atividade humana próxima às suas margens.
Desse modo, cresceu a demanda por uma ferrovia que ligasse a produção do interior ao porto da capital. Além disso, outras demandas, como a conexão de São Luís com o interior do estado e outras capitais próximas foram incluídas no pacote. Contudo, devido a inúmeros fatores, como a própria degradação da economia local, a tão sonhada ferrovia demorou muito tempo para ser concluída.
Conforme destaca o autor, a ferrovia São Luís–Teresina foi completada com muitos anos de atraso, em 1930, quando a principal justificava, de escoar a produção, já não fazia tanto sentido. Entretanto, não se pode afirmar que ela não teve papel importante para a cidade de São Luís. Por muitas décadas, foi a principal via de ligação da capital maranhense com o interior do estado e a cidade de Teresina.
A última estação em São Luís se encontrava em um belo prédio na atual Avenida Beira Mar. Além de escoar a produção de insumos agrícolas, como babaçu, para a capital, a ferrovia serviu como instrumento para integrar São Luís com o restante da região e também como meio de transporte para que as pessoas fugiam da seca do interior do Nordeste. Além disso, teve impacto significativo na cultura local, influenciando um baião de João do Vale sobre a ferrovia.
A Estação João Pessoa, no coração da cidade de São Luís, funcionou até a década de 1980, quando a estação foi transferida para uma região mais afastada da cidade, o Tirirical. Allen Morrison, americano que estudou e publicou sobre as ferrovias brasileiras, destacou que a Estação do Tirirical funcionou somente até o ano de 1983 e nunca mais foi reaberta.
A partir de então, com a prioridade ao transporte rodoviário, a ferrovia passou a sumir gradativamente da memória dos cidadãos da cidade de São Luís, de forma que as pessoas nascidas após a década de 1980 pouco conhecem sobre nosso passado ferroviário.
Para os gregos, utopia podia significar “um bom lugar” (eu-topos), ou “lugar que não existe” (ou-topos). Nas teorias urbanas apresentadas ao longo da história, muitas vezes a utopia foi evocada para persuadir o público em prol da aceitação de seus planos, ainda que a palavra utopia não estivesse manifestada explicitamente. Em nosso maior exemplo, Brasília, podemos observar isso de forma muito clara.
Afinal, como não encarar como utopia um plano que prevê uma cidade estática? Esse “bom lugar” simplesmente “não existe”. Um dos maiores equívocos das teorias urbanas se deu exatamente nesse sentido — a tentativa de congelar uma ideia, um sonho de “bom lugar”, além de necessitar de uma ampla restrição do controle da cidade e das pessoas, se mostrou impossível na prática.
Em São Luís, esta construção utópica se fez presenta durante a construção do ideal da “capital moderna”, cujo ápice se deu na elaboração do Plano de Expansão da Cidade de São Luís, do Eng. Ruy Mesquita. Inspirado nos princípios do urbanismo de Le Corbusier e no Plano Piloto da Capital Federal, o Engenheiro desenvolveu um Plano para São Luís baseado na distribuição dos espaços da cidade de acordo com suas funções, na hierarquia viária e na preservação de áreas verdes entre conjuntos habitacionais distantes.
Assim como o modelo rodoviarista foi priorizado no Brasil desde pelo menos os anos 1930, sob a política do“Governar é abrir estradas”, e posteriormente no urbanismo que teve na construção de Brasília, uma cidade sem calçadas, seu ponto mais alto, os gestores da cidade de São Luís enxergavam no rodoviarismo o sonho de reconstruir a urbanidade da cidade de outrora.
No entanto, importantes economistas urbanos, como Edward Glaeser, afirmam que esse é o erro mais comum em cidades decadentes: o investimento em infraestrutura com o intuito de revitalizar e reconstruir a cidade, quando na verdade, deveriam se ater as condicionantes que fizeram um dia a cidade se tornar um exemplo de urbanidade.
A cidade de São Luís não melhorou com os pesados investimentos em infraestrutura, mas criou inúmeros outros problemas. Diante de tal situação, não é incomum vermos no meio político, acadêmico e popular a indagação sobre a volta dos bondes, a fim de resolver o problema da mobilidade urbana “pelo menos na região central”. Mas afinal, seria uma boa ideia?
Muitas vezes o que se busca é a reconstrução de um passado que não existiu, baseado naquilo que queremos acreditar. E que quando funcionou de certa forma, não serviria mais para os tempos atuais. Porque o tempo é o fator mais relevante para se analisar uma mesma cidade em épocas diferentes. As estradas romanas, por exemplo, funcionavam muito bem, mas ninguém se propõe a reutilizá-las, por exemplo.
Em São Luís, os antigos bondes foram e são defendidos continuamente como a solução que resolveria o problema de mobilidade no Centro, competindo com outras soluções mirabolantes importadas de outras realidades e outros contextos. Mas o importante não é inserir elementos que, pontualmente, podem servir como atenuante para determinado problema, mas entender os princípios e fundamentos para uma boa urbanidade de outros tempos.
A mobilidade urbana em São Luís não era boa por conta exclusiva dos bondes e da existência da ferrovia São Luís-Teresina, mas porque a cidade era adensada, viva e com a área de trabalho e serviço bem próximas, às vezes no mesmo local de moradia, visto que os muitos casarões atendiam tanto ao propósito do comércio, no andar térreo, quanto de moradia, nos andares superiores. Os bondes, portanto, naquele contexto, serviam muito bem para as curtas distâncias da nossa ainda pequena cidade.
Contudo, atualmente, a cidade não se resume mais ao Centro. Tudo que for proposto para a região deve ser incorporado à lógica da atual metrópole, integrando a região central aos demais modais que o conectam ao restante da cidade. Desse modo, outras soluções não seriam mais simples e mais fáceis de serem implementadas na região?
Entre as soluções, podemos destacar que as calçadas — reduzidas durante o século XX para alargar as avenidas, e ciclovias, praticamente inexistentes, deveriam ser pensadas antes de qualquer solução mais robusta. Além disso, outras soluções, como a cobrança de taxa de congestão e das vagas de estacionamento poderiam ser adotadas para coibir os engarrafamentos na região, além de servir como instrumento de financiamento e manutenção da infraestrutura no local.
Construir novas linhas de bondes na área central da cidade demandaria um grande transtorno em uma região já conturbada, além de um investimento adicional em infraestrutura. Dessa forma, talvez soluções sobre rodas sejam mais fáceis e rápidas de serem implementadas, como é o caso dos micro-ônibus, embora estes não sejam tão atraentes visualmente quanto os bondes.
Por fim, destacamos que muitas vezes a tentativa de recriar um passado que não existe serve a propósitos turísticos. Nosso Centro é prova disso, tendo diversos elementos “novos-antigos”, isto é, novas produções reproduzindo uma atmosfera de outros tempos, o que contribuiu com a “musealização do Centro”. Mas importante que criar um museu a céu aberto é dar novamente ao Centro uma dinâmica orgânica de cidade. Afinal, assim como qualquer bairro e cidade, ele deve servir aos seus moradores e não aos seus prédios, bondes ou qualquer outro elemento físico.
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vide São Paulo X LIGHT X abrir avenidas
Muito bem escrito, só discordo de que solução da mobilidade urbana seja resolvida apenas com o modal sob pneus.
Nenhuma solução que desconsidere o modal sobre trilhos, integrado com os demais modais de Mobilidade Urbana, terá sucesso.
Esse é o grande problema das capitais brasileiras que só investem em paliativos.