Preservar o urbanismo de Brasília: as escolhas e seus preços
Victoria Camara/Wikimedia Commons

Preservar o urbanismo de Brasília: as escolhas e seus preços

O Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília (PPCUB) propõe a flexibilização de algumas limitações impostas no tombamento da cidade. Afinal, isso é positivo ou negativo para Brasília?

27 de junho de 2024

Morar no Plano Piloto, a área central de Brasília, encanta pela qualidade de vida oferecida: prédios integrados a áreas de lazer e convivência sem bloqueios, arborização bem cuidada, comércio próximo e boa segurança quando comparado a padrões brasileiros. Preservar essa qualidade de vida é uma preocupação de quem ama a capital federal, naturalmente.

Superquadra na Asa Sul, no Plano Piloto. Foto: Paulo H. Carvalho/Agência Brasília

Porém, como bem pontuado pelo secretário de Desenvolvimento Urbano e Habitação do Distrito Federal, Marcelo Vaz, “tombamento não pode significar engessamento, devendo ser garantido o desenvolvimento da cidade”. De fato, é preciso entender que a cidade de Brasília vem pagando um alto preço por esse engessamento ao longo dos anos. 

Na capital federal, o planejamento centrado no automóvel particular, que possibilitou a segregação de usos e um afastamento das pessoas e das edificações, criando vários “vazios” ou áreas verdes, tem diversas consequências. A densidade populacional (quantidade de pessoas por área), que se manteve baixíssima no Plano Piloto, assim como a mistura entre os usos residencial e comercial, é o que permite que mais pessoas morem em locais próximos das oportunidades e das suas necessidades diárias. Isso, por sua vez, possibilita a mobilidade a pé ou de bicicleta, e o transporte coletivo consegue ser mais eficiente e menos custoso. Essa é a direção para a qual as grandes cidades no mundo caminham hoje, na tentativa de promover qualidade de vida para seus moradores.

Leia mais: Brasília: A invenção da Superquadra

Preservar o centro de Brasília é um desafio ainda maior quando levamos em consideração que, dos 2,8 milhões de habitantes da cidade, apenas 224 mil vivem no Plano Piloto, apesar de nele estarem concentradas as melhores oportunidades de trabalho, lazer, comércio e serviços. Ressalta-se que a população da área metropolitana de Brasília recebe cerca de 45.000 novos habitantes por ano, segundo o Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal, com dados do Censo 2022. Onde essa nova população vai morar? Evidentemente, não há oferta de moradia crescendo nessa velocidade no Plano Piloto, que é limitado pelo tombamento, então essas pessoas vão para áreas mais distantes. Consequentemente, os desafios da mobilidade urbana se tornam maiores.

É com essas lentes que devemos analisar as críticas que estão sendo apresentadas ao Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB, elaborado pela Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDUH) do Governo do Distrito Federal. O PPCUB foi desenvolvido pelo governo ao longo de 12 anos, incluídas 8 audiências públicas, além de possuir anuência do IPHAN, que é o órgão responsável pela preservação do patrimônio, e tem como objetivo regulamentar parâmetros para a gestão do território na área do Conjunto Urbanístico Tombado de Brasília. A norma possibilitará uma maior eficiência e agilidade para a realização de um conjunto de procedimentos básicos da cidade, visando modernizar regulações bastante defasadas. Existem lotes, por exemplo, que são regidos até hoje pelo Código de Edificações de Brasília de 1967.

É bastante clara a importância da manutenção das escalas, perspectivas e da paisagem pensadas por Lucio Costa, e o plano não fere isso de forma alguma, pelo contrário, tem isso como uma de suas finalidades. Mas não é justo com a sociedade um engessamento completo da cidade, enquanto as demandas diárias das mais de 4 milhões de pessoas que moram em toda a área metropolitana não são as mesmas das de 60 anos atrás. 

Algumas das propostas do PPCUB e suas emendas foram, por exemplo: a permissão de hotéis e pousadas em lotes específicos de áreas institucionais fora do setores hoteleiros; a possibilidade de áreas comerciais acessórias em lotes específicos no setor de embaixadas; e a possibilidade de uso residencial no setor comercial sul. São ideias simples, que buscam endereçar uma parte das necessidades das pessoas, repensando o engessamento da cidade, mas que, mesmo não afetando em nada a paisagem, geraram polêmica.

Setor Comercial Sul. Foto: Mercado Viagens/Flickr

Quanto à altura de prédios, vemos a controvérsia a respeito dos hotéis que serão autorizados a passarem de 3 para 12 pavimentos. Incrivelmente, numa mesma porção do território (setor hoteleiro), há edificações autorizadas a terem 3 pavimentos e outras, exatamente ao lado, autorizadas a terem 12 pavimentos. Manter o bloqueio de construção nos prédios de 3 pavimentos consiste, em última instância, em uma reserva de mercado (uma proteção contra a concorrência) em benefício dos que já foram construídos, sem qualquer amparo em aspectos urbanísticos ou sociais. Novamente, não há nenhum motivo para acreditar que esse tipo de mudança seja uma “ameaça” para a cidade.

Eixo Monumental de Brasília com os Setores Hoteleiros Sul e Norte. Foto: Wikimedia Commons

Dentre os inúmeros anexos que compõem o Projeto de Lei, também encontram-se os parâmetros para o uso e ocupação do solo em áreas historicamente dotadas de conflitos fundiários. Um exemplo é a Vila Planalto. Já faz décadas que os moradores dessa porção do Plano Piloto enfrentam uma burocracia desproporcional para realizar procedimentos simples como a emissão de alvarás de funcionamento para atividades econômicas. Igualmente, a publicação do PPCUB permitirá a regularização de outras ocupações e atividades econômicas já consolidadas, que refletem uma demanda existente, mas que, por não haver uma norma de uso e ocupação vigente, apresentam algum nível de irregularidade, gerando insegurança aos moradores e comerciantes.

É necessário frisar que o PPCUB, ainda que muito meritório, é um pequeno passo para democratizar o acesso da população ao coração do Distrito Federal, o Plano Piloto. Não há proposta de lotear áreas verdes ou aumentar gabaritos (a altura dos prédios) em superquadras, por exemplo.

Não obstante os avanços presentes no PPCUB, os maiores problemas de habitação, como ausência de oferta de moradias a preços razoáveis em regiões já servidas de infraestrutura de qualidade e próximas de empregos, pouco são enfrentados, tendo em vista que imensas áreas verdes (gramas batatais, sejamos francos) na área central de Brasília, hoje restritas exclusivamente a clubes recreativos, de golfe (!), setor de garagens, setor de embaixadas, etc., continuarão servindo a poucos ou a ninguém. 

Será que a melhor alternativa é continuarmos deixando a demanda por moradia ser alocada distante da área central, em regiões que não apresentam o equivalente ao Plano Piloto em termos de infraestrutura de serviços e bens públicos, como hospitais, ruas, iluminação, acesso rápido a empregos, saneamento, museus, teatros, praças e árvores? Será que não são justamente o planejamento focado no carro e esse congelamento do número de moradias no centro, espalhando as pessoas pelo território, que agravam os problemas de congestionamento, exigem elevados custos do transporte coletivo e promovem impacto ambiental e perda de qualidade de vida?

Complexo Viário Governador Roriz, em Brasília. Foto: Renato Alves/Agência Brasília

A sociedade brasiliense parece aceitar como natural que a “preservação” atual do Plano Piloto imponha, por meio do tombamento, extensos gramados dedicados a um clube de golfe, situado a 4 km do Congresso Nacional, com vistas para o lago Paranoá, e ao mesmo tempo impeça que as pessoas habitem no setor comercial, próximo das oportunidades de trabalho. Essa setorização excessiva, típica de burocratas super confiantes na capacidade de microgerenciar a vida da população, e a proibição do uso misto de espaços são práticas já conhecidas na literatura de urbanismo como responsáveis por efeitos prejudiciais na vida das cidades, como a insegurança nas ruas, a ineficiência no transporte e um maior custo da infraestrutura urbana. Além disso, áreas sem nenhuma flexibilidade de uso correm risco de abandono conforme as demandas dos moradores mudam, algo que é natural nas cidades.

Leia mais: Brasília: uma cidade que não faríamos de novo

Brasília precisa superar o planejamento urbano do século 20, pensado para automóveis, com a criação de bolsões de estacionamento, viadutos e segregação de usos, e começar a se adequar ao planejamento urbano do presente, pensado nas pessoas, com a criação de praças de qualidade, ciclovias, setores de uso misto e ruas caminháveis. Esse é o modelo de cidades inovadoras e de sucesso que atraem investimentos, prosperam e promovem a qualidade de vida de toda a população, não de apenas uma parte dela.

Thiago Costa Monteiro Caldeira é doutor em Economia, Professor no IDP e Consultor Legislativo na Câmara dos Deputados. Conduz estudos e pesquisas em regulação econômica e direito regulatório em cursos de pós-graduação no IDP. 

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