Praça Pôr do Sol cercada há 4 anos: a direção oposta do direito à cidade
Foto: Coletivo Pôr do Sol Sem Cerca

Praça Pôr do Sol cercada há 4 anos: a direção oposta do direito à cidade

O gradil foi instalado sem qualquer consulta pública, sem projeto técnico e interfere radicalmente no acesso e na visibilidade do local. Cercar é a representação máxima de uma visão de cidade excludente.

30 de outubro de 2025

A Praça Pôr do Sol, no Alto de Pinheiros (zona oeste de SP), se tornou um cartão postal de São Paulo. Tecnicamente nomeada Praça Coronel Custódio Fernandes Pinheiro, ela ganhou esse apelido pelo espetáculo visual que oferece ao cair da tarde, pela sua topografia e horizonte livre de prédios altos; se mantém como um importante ponto de encontro e contato com a natureza há décadas. Foi projetada e teve seu paisagismo assinado pela conceituada dupla de arquitetas da FAU/USP Rosa Kliass e Miranda Magnoli, nos anos 1970.

No entanto, há uma barreira que tem separado os cerca de 30 mil m² que a compõem de quem anda pelos seus arredores, de quem quer cortar caminho ou simplesmente se sentar em um dos bancos em formato de arquibancada. O ponto central desse embate é o que a decisão em cercar uma área pública (verde) realmente significa. 

Leia mais: Cercar espaços públicos é errado em todos os sentidos imagináveis

Espaço público X “não no meu quintal”

A Pôr do Sol fica em um local repleto de serviços, infraestrutura, grandes lotes, casas e apartamentos povoados pelas classes A e B. O bairro, plano e às margens do Rio Pinheiros, foi urbanizado pela Companhia City, nos anos 1920/1930 e norteado pelo conceito de “cidades-jardins”: as ruas são largas e sinuosas, com canteiros, árvores e jardins. Não por acaso, o bairro tem uma das mais altas taxas de área verde por habitante: 82,3 m², enquanto a média da cidade é 16,5 m².

Pela Praça Pôr do Sol passam dezenas de milhares de pessoas por mês, principalmente aos finais de semana. De segunda à sexta, a praça era utilizada para facilitar o deslocamento a pé: uma de suas avenidas limítrofes (Av. Diógenes Ribeiro de Lima) faz a conexão bairro–centro, com pontos de ônibus, proximidade às estações de metrô das linhas amarela e verde, terminal Pinheiros e circuito de bicicletas, levando à Ciclovia do Rio Pinheiros. Era, no passado.

Esse fluxo livre e orgânico está fechado. Há quatro anos, durante a pandemia, a Prefeitura de São Paulo achou por bem gradear toda a extensão da praça. A princípio, isso foi feito com tapumes e tinha como argumento “evitar aglomeração”. Meses depois, no entanto, na virada do ano, sem nenhuma consulta ou participação popular, a estrutura metálica começou a despontar por detrás das tábuas de madeira. A placa que acompanhava a “obra” falava em revitalização. Quando a Pôr do Sol foi finalmente reaberta, no entanto, ficou evidente que a intenção não era requalificar. O que se passou foi exclusivamente a instalação de um gradil, de maneira atabalhoada e com péssima qualidade. 

Grade instalada na Praça Pôr do Sol. Foto: Regina Cintra

Ficou claro, já na ocasião, que a Prefeitura estava acatando o pedido de um pequeno grupo de moradores vizinhos à praça que integram a Associação dos  Amigos de Alto dos Pinheiros (SAAP). Há anos é desejo deles o controle dos horários de entrada e saída, a proibição da permanência na madrugada e a transmissão de uma mensagem incisiva de que aquele enorme gramado não é para todos. A questão é que, em nenhuma medida, a SAAP tem legitimidade e número suficiente de adesão para definir o que é melhor para uma área pública.

Em 2015, a Praça Pôr do Sol foi oficialmente convertida em parque através de um decreto. Com essa alteração, a gestão saiu das mãos da Subprefeitura de Pinheiros e passou à Secretaria Municipal de Verde e Meio Ambiente. Assim, ela poderia ter sido gradeada – já que a legislação permite a instalação de gradis em torno de parques públicos –, mas não foi. E rapidamente voltou ao seu status original como praça.

Praças e parques têm definições, dimensões, gestões e relações com os munícipes diferentes. Um ponto nevrálgico é que praças, diferente dos parques, não podem ser gradeadas – a não ser por justificativas específicas e ampla consulta popular, o que definitivamente não aconteceu. Atualmente, não por acaso, há um Projeto de Lei que tenta, mais uma vez, transformar a Pôr do Sol em parque. A razão parece clara: legitimar o gradil considerado “manifestamente irregular” pelo Ministério Público em 2021 e 2025. 

Fato é que os moradores vizinhos não favoráveis ao espaço público aberto de maneira integral parecem ter incorporado o conceito do “não no meu quintal” (NIMBY – not in my backyard), nascido nos Estados Unidos, que representa um conflito entre moradores de uma determinada região e mudanças urbanísticas que podem alterar o cenário. Por vezes, o que desponta é um viés elitista de luta pela preservação de espaços e regramentos de acordo com os desejos de poucos. A questão é manter privilégios a despeito do que é mais justo e necessário para uma cidade menos desigual e mais acolhedora.

No caso, alguns moradores do Alto de Pinheiros querem decidir o público e o horário dos visitantes. Jovens de diversos pontos da cidade, idades e músicas em suas caixas de som incomodavam os nobres vizinhos. Quem estava ocupando o local aos finais de semana não eram os moradores do entorno, seus cachorros de raça e os exclusivos da zona oeste.

Jovens utilizando a praça durante o pôr do sol. Foto: Regina Cintra

Anos atrás, uma parcela dos moradores de Higienópolis não quis que o metrô chegasse até a Av. Angelica porque não queria “gente diferenciada” num território que considerava de uso restrito. Os vizinhos da praça, da mesma forma, desejam apenas seus pares por ali. O “não no meu quintal” foi adaptado às desigualdades brasileiras.

Praças se relacionam com o entorno: pedestres, calçadas e surpresas

Nos últimos anos, o número de frequentadores da Pôr do Sol aumentou e os gramados passaram a ficar ainda mais cheios (a Copa do Mundo de 2014 contribuiu para esse inchaço). Havia lixo em excesso, barulho, uma movimentação intensa nas calçadas adjacentes à praça, carros mal estacionados. Ainda assim, é inegável a importância de espaços públicos como áreas de convivência, permanência e de manifestações cívicas. A Praça Pôr do Sol é um deles, e isso deve se sobrepor a interesses absolutamente particulares. 

Na lógica das cidades brasileiras, em que o sistema viário é priorizado, há décadas as calçadas seguem maltratadas e estreitas em muitos bairros, faltam pontos de ônibus e terminais confortáveis, há uma carência enorme por mobiliário. As pessoas precisam descansar em seus trajetos, sentar e ter uma área sombreada. As praças são elementos públicos fundamentais: se relacionam integralmente com seu entorno, dialogam com quem está dentro e fora delas, quase convidam para uma “entradinha”.

Para além do caráter estético – uma grade em torno de uma área verde é inegavelmente desagradável –, há o impedimento à circulação em determinados horários (os portões são fechados às 20h, mas cerca de uma hora antes alguns deles já estão trancados). A barreira por si só cria um espaço morto: a área colada à cerca é evitada pelos pedestres, em ambos os lados. À noite, as calçadas estão vazias e ficam bastante escuras em certos pontos. O legado de Jane Jacobs é inegável aqui: os “olhos da rua”, formados por quem circula na área, é uma importante e natural estratégia de segurança e proteção coletiva.

Um dos portões estreitos no gradil da praça. Foto: Regina Cintra

Durante o dia, com as portas abertas, os poucos acessos são de péssima qualidade, desconexos e sem uma lógica que facilite a chegada a pontos estratégicos. A praça tem um terreno íngreme, com algumas escadas, e por essa configuração já oferece desafios naturais para carrinhos de bebê, cadeirantes e/ou quem tem mobilidade reduzida. 

Raquel Rolnik, arquiteta urbanista e professora da FAU/USP, afirma: “É claro que a Praça Pôr do Sol precisa de intervenções, cuidados, gestão”, mas “enfrentar estes desafios instalando uma grade contraria a base de seu projeto – com uma intervenção de baixíssima qualidade que não resolve o conflito”.

Leia mais: Em São Paulo, a praça é nossa?

Como anda o caso

Há quatro anos cercada, a Praça Pôr do Sol tem gerado movimentação de coletivos, associações, ações na justiça, matérias na imprensa, reuniões na Subprefeitura de Pinheiros (responsável pela sua gestão) e conversas com vereadores. A existência do gradeamento é inegociável para quem defende o direito à cidade e acredita em outras soluções para o conflito. Já a SAAP aposta nele e segue na pressão para que seja mantido.

O coletivo Pôr do Sol Sem Cerca, por exemplo, nasceu nessa conjuntura. Realizou um abraço coletivo, em 2021, com bastante repercussão. Um abaixo-assinado foi lançado e hoje acumula mais de 5 mil assinaturas contrárias à cerca. E enquanto existe possibilidade de alteração na lei, nada pode ser feito. Os acessos descabidos e portões capengas se mantêm: o único da Av. Diógenes Ribeiro de Lima, por exemplo, passa o dia aberto segurado por uma pedra. 

Portão da Av. Diógenes Ribeiro de Lima. Foto: Regina Cintra

O curioso é que o Plano Municipal de Áreas Protegidas, Áreas Verdes e Espaços Livres (PLANPAVEL), de redação e responsabilidade da própria Prefeitura, lançado em 2022, é claro: “Embora o caráter público das praças/largos remeta ao acesso irrestrito, houve período em que parte significativa delas permanecia cercada por gradil e com horário de uso limitado.” Ora, acesso irrestrito é o oposto do que vem acontecendo no local. A gestão participativa das praças também vai em sentido oposto ao que tem sido visto na prática: a revitalização, fiscalização e conservação não tem acontecido de maneira conjunta entre poder público e a população. A seguir, cenas do próximo capítulo: que seja sem cerca, como as praças devem ser.

Para saber mais sobre como o planejamento urbano deve lidar com espaços públicos como parques e praças, conheça o curso “Do Planejamento ao Caos“.

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